No meio do caminho do novo Tolkien, tinha um grupo de fãs :) | JUDAO.com.br

A ser publicado no Brasil, A História de Kullervo teve a honrosa contribuição de um dedicado grupo brasileiro de fanáticos pelo autor

Se a obra do escritor J.R.R.Tolkien já era objeto de devoção por um pequeno nicho de fãs e estudiosos, imagina só quando O Senhor dos Anéis e O Hobbit se transformaram em superproduções hollywoodianas... A tal devoção alcançou um público nunca antes sonhado, agora interessado em ler de onde vieram todos aqueles elfos e orcs. Se Peter Jackson raspou o tacho e esticou o quanto pôde nos cinemas, as editoras começaram a revirar todas as gavetas do velho mestre em busca de novas histórias, sejam elas romances ou pequenos contos, acabados ou inacabados...

Se tem gente pra ler, basta publicar até uma bula de remédio com o nome do cara que tá valendo. :D

Um dos exemplos mais recentes é A História de Kullervo, um dos primeiros trabalhos de Tolkien, pré Terra-Média. Publicado este ano pela inglesa Harper Collins no mercado internacional, ele deve chegar em 2016 ao Brasil, já que a Martins Fontes comunicou que conseguiu os direitos de tradução do livro.

O mais legal é que esta não é apenas a história do tal do Kullervo, mas também um pouco a história do Eduardo. No caso, Eduardo Ferreira, um advogado e professor mineiro que vem a ser membro da prestigiada The Tolkien Society, maior associação global de apreciadores da obra do escritor. E ainda administrador do site de fãs Tolkien Brasil. Porque foi a movimentação deles que influenciou, ainda que indiretamente, a decisão da Harper Collins em tornar A História de Kullervo mais uma obra do acervo oficial de Tolkien. A gente explica.

Ou melhor... ele explica. ;)

“Desde que criamos o site Tolkien Brasil, temos a ideia de que as obras de Tolkien deveriam ser melhor exploradas também em termos acadêmicos. Isso já acontece no mundo todo, especialmente na Europa e nos EUA. Mas aqui no Brasil o autor ainda é mais conhecido pelas adaptações dos cinemas”, conta Eduardo. Além do site, que tem um quadro de mais de trinta colaboradores do Brasil e de outros países, surgiria em 2013 um grupo de estudos para algumas obras que influenciaram Tolkien, no caso o Beowulf (poema épico anglo-saxão que foi um marco da literatura medieval) e o Kalevala (um poema épico com a visão mitológica dos finlandeses).

Story-of-Kullervo-Tolkien“Então, dentro desse projeto, foi sugerida a ideia de se publicar um livro com os artigos acadêmicos de Tolkien. A História de Kullervo já tinha sido publicada em um periódico acadêmico chamado Tolkien Studies”, explica Eduardo, contando ainda que entraram em contato com Verlyn Flieger, editora da publicação e professora na University of Maryland at College Park, e com a família Tolkien. A intenção era conseguir autorização para republicar os textos em um livro sem fins lucrativos e com tiragem de 100 exemplares.

A família Tolkien, no caso, são dois dos filhos de Tolkien ainda vivos (Christopher e Priscilla, ambos com mais de 80 anos) e os descendentes de seu outro filho, Michael Tolkien, morto em 1984. “Atualmente o líder da família é o Christopher Tolkien, que foi escolhido por seu pai em testamento para cuidar de todos os escritos e tudo relacionado às obras”, conta Eduardo, admitindo que, a princípio, não achou que fosse receber qualquer resposta. Afinal, ele sabe bem que a família Tolkien é bastante protecionista em relação aos direitos. “Por exemplo, eles não vendem os direitos autorais para novas produções dos filmes do Silmarillion e de outros livros do Tolkien. E já foram oferecidas maletas e maletas de dinheiro. Mas todas as propostas estão previamente recusadas”.

Mas o advogado soube falar a linguagem que os advogados entendem e tudo se resolveu de maneira bem simples. Só que, como fã, ele se sentiu obrigado a deixar a burocracia um pouco de lado e mandou uma carta para Priscilla Tolkien, que gentilmente respondeu, mandando ainda uma mensagem para os fãs brasileiros, publicada no site – o que acabou surpreendendo Eduardo. “A família Tolkien é muito reservada em geral. Eles não gostam de aparecer na mídia”. A única condição dos Tolkien para permitir o projeto? Que eles iriam ter acesso ao material antes de ser publicado. Quanto a isso, beleza. Além disso, o grupo brasileiro de estudos decidiu ser mais ousado e mandaria um exemplar para a Harper Collins como incentivo à publicação em larga escala mundial.

Com a ajuda de especialistas internacionais no universo tolkieniano (sim, este adjetivo existe, acredite) como John Garth, Christina Scull, Wayne Hammond e Oronzo Chilli, o projeto foi sendo desenvolvido e as traduções estavam concluídas e sendo editadas. Mas aí a trama sofreu uma reviravolta. “No final de 2014, recebemos a notícia de que a editora Harper Collins tinha a pretensão de publicar o livro, com o mesmo título e com a edição da Verlyn Flieger. Ficamos surpresos e ao mesmo tempo muito felizes”.

A coisa mais gratificante, no entanto, foi ler o seguinte comunicado dos advogados do espólio de Tolkien: “Seu interesse nessa obra, que foi comunicado aos editores britânicos da Harper Collins, irá certamente contribuir para a perspectiva da tradução da obra em português para os leitores brasileiros pelas editoras locais parceiras”. E como a Martins Fontes logo anunciaria o lançamento, bom, é natural que Eduardo e seus parceiros se sintam um pouco responsáveis pela chegada de Kullervo ao país. E que se mantenham empolgados, agora que existe um canal aberto com os parentes do Seu Jota Erre Erre para outros projetos. “Na carta que enviei para a Priscilla, eu relacionei outras coisas que pretendemos elaborar. E ela se mostrou bastante colaborativa com elas. Mas não podemos comentar ainda, pois está tudo sendo feito”, diz ele, todo misterioso. “Certamente não serão projetos tão ambiciosos como o História de Kullervo, mas creio que os fãs vão gostar de ler coisas novas”.

Uma coisa ele deixa clara, no entanto: a atuação do grupo tende a ser mais relacionada às obras que, em tese, não seriam de tamanho interesse das editoras, por serem muito específicas para os fãs ou “acadêmicas” demais. “O Brasil está entre os países com maior número de obras de Tolkien traduzidas e publicadas. Só esse ano teremos mais dois livros nas prateleiras: Beowulf – Tradução e Comentário e Ferreiro de Bosque Grande. [...] Queremos colaborar para que as editoras se sintam à vontade e tragam novos livros, que é o que todo fã deseja”.

O próprio, em seu momento de cachimbo hobbit

O próprio, em seu momento de cachimbo hobbit

Mas...e do que se trata A História de Kullervo, afinal?

Eduardo, como bom fã, se empolga ao falar sobre o assunto. Ele explica que Tolkien era um sujeito que gostava muito de estudar mitologias e línguas (esta parte a gente imagina). Em 1911, o professor teve acesso a um exemplar do Kalevala e começou a estudar a língua finlandesa para fazer sua própria leitura direto na língua original. “Trata-se de um poema que se parece muito com o que já conhecemos como a Ilíada, Odisseia, Lusíadas etc. Dentro do Kalevala, há a história de Kullervo. O Tolkien decidiu transformar essa parte da história em forma de prosa”.

A História de Kullervo é o único conto trágico dentro do Kalevala. Kullervo estava, na verdade, mais para um anti-herói: o sujeito cresce órfão de pai e mãe e sofre várias tentativas de assassinato vindas de Untamo, um mago das trevas – mas como Kullervo tem poderes sobrenaturais, desde então consegue escapar das garras do maligno inimigo. “Nisso, o mago Untamo o obriga a realizar trabalhos forçados e boa parte de sua vida é ligada à escravidão. As únicas demonstrações de carinho vêm de sua irmã e de seu fiel amigo, o cão Musti. Ao se libertar, promete vingança contra aquele que matou seus pais”, relata.

O próprio Tolkien afirmava que a história de Kullervo foi “o germe de minha tentativa de escrever minhas próprias lendas” e que foi “um tema importante nas lendas da Primeira Era”. A influência principal está relacionada ao personagem Túrin Turambar, que aparece em um capítulo do Silmarillion e que é protagonista do livro Os Filhos de Húrin, publicado em 2007.

Os escritos foram produzidos em 1914, antes mesmo da Primeira Guerra Mundial. Logo no dia 24 de setembro do mesmo ano, Tolkien escreveria seu primeiro texto relacionado à Terra-Média, que é um poema do personagem Earendil. Pouco tempo depois, o autor foi convocado para a batalha e teve que lutar como tenente, adiando seus planos. Quando retornou das trincheiras, começou a expandir sua mitologia ao longo de quase 60 anos de atividade, durante toda a sua vida.

“Estamos em uma época histórica, de 100 anos da criação da Terra-Média”, celebra Eduardo. Talvez fosse o caso de pedir que os Bolseiro façam uma festança no Condado. Aqueles sim manjam de uma boa comemoração, né? ;)