O ano dos Mascarados do rock | JUDAO.com.br

Em 2014, os mascarados fizeram a festa – e, com sua sinceridade monstruosa, derrubaram do topo alguns roqueiros que se vestem de outras coisas bem mais assustadoras

Eles sempre habitaram os nossos piores pesadelos, representações soturnas e macabras de tudo aquilo que mais nos assusta, que nos tira o chão, que nos arranca violentamente de nosso lugar comum. Vivendo nas sombras de nossa existência pacífica, os monstros parecem estar sempre prontos a saltar diante de nossos olhos para nos assustar com sua aparência aterradora e sobrenatural. Engraçado, no entanto, é constatar que, em pleno 2014, os monstros saltaram das sombras diretamente para debaixo dos holofotes. E a galera não ficou com medo, ao contrário; a galera foi ao delírio. Este ano, eles assumiram o lugar de destaque no palco e nos entregaram alguns dos mais memoráveis momentos musicais destes 12 meses.

2014 foi, definitivamente, o ano dos monstrengos mascarados do rock. A começar pelo Gwar.

Depois da inesperada morte de seu líder, Dave Brockie (que atendia pela alcunha monstruosa de Oderus Urungus), houve quem apostasse todas as fichas no fim das atividades do Gwar. Você sabe, aquela banda norte-americana que faz um thrash metal que chega a flertar com o crossover, numa mistura de metal e punk, e que se apresenta com roupas e máscaras de monstros – que, sejamos honestos, parecem ter saído de um episódio ruim dos Power Rangers. Naturalmente relegados ao status de cult/underground, o máximo que eles conseguiram foi ser a banda favorita da dupla Beavis e Butt-Head. E acho que vestindo aquelas roupas e cuspindo meleca e letras ofensivas na plateia, eles não estavam nem se preocupando com isso. No entanto, eis que surgiu em suas vidas a mulher que foi gloriosamente batizada como Vulvatron. A nova vocalista do grupo.

Talvez uma das notícias mais retumbantes do mundo da música em 2014 – bom, pelo menos do mundo do metal, isso com certeza – a amazona desafiou o sexismo imperante no meio e, sem medo de ser feliz, tratou de cobrir o corpo de sangue falso e espinhos, enquanto disparava líquidos grudentos e de qualidade duvidosa de seus enormes peitos falsos diretamente para um público em êxtase. O Gwar não apenas renasceu das cinzas de uma tragédia. Ele se renovou e se reinventou — e nós aguardamos ansiosos por um novo trabalho de inéditas.

Quem entregou um novo disco de inéditas e fez bonito foram os monstros finlandeses do Lordi. Em 2006, eles lançaram o brilhante The Arockalypse, ápice inconteste de sua carreira – e, depois disso, vinham tropeçando, disco após disco, entre faixas irregulares, tentando reencontrar seu caminho. Ano passado, com To Beast Or Not To Beast, retornaram à sua bem-sucedida mescla equilibrada de peso, melodia e bom-humor. O mesmo DNA de The Arockalypse pode ser sentido no recém-lançado Scare Force One (que chegou às lojas, adivinhem só, no Dia das Bruxas). O grupo acerta com riffs cantantes e refrões grudentos desde a politicamente incorreta, a la Jack, How to Slice a Whore, até a incontrolável Monster Is My Name – que faz você sair cantando junto sem nem pensar a respeito. Destaque ainda para Hell Sent in the Clowns e seu clima circense, versando sobre palhaços que vieram do inferno pra assustar as pobres criancinhas. Porque, afinal, todo mundo tem medo de palhaços, né?

Por falar em medo e em sobre dar a volta por cima, quem soube mostrar a que veio foram os suecos do Ghost. Bastante questionados por aqui depois de sua passagem pelo Rock in Rio – que, sejamos sinceros, foi equivocado ao colocar a banda de características bem mais intimistas no palco principal para abrir os trabalhos para o Metallica – eles fizeram uma turnê solo no Brasil, em casas fechadas (falamos sobre isso aqui). E calaram a boca de quem questionou a qualidade de seu trabalho. Afinal, todo mundo não diz que o Brasil é um mercado incrível para o rock pesado? Por que aceitar a reação negativa de uma plateia assim, tão fácil? Com maestria, Papa Emeritus conduziu sua missa sombria deixando os espectadores em êxtase com seu rock teatral que mistura a sonoridade do Blue Öyster Cult com a temática do King Diamond. Satã aprovou.

E já que o assunto é Satã, outros que tiveram um ano memorável foram os comandados de Nergal, os poloneses do Behemoth. Nos últimos anos, eles abandonaram a opção pelo som hermético do black metal e optaram por transitar entre a principal heresia metálica e as linhas intrincadas e densas do death metal. O resultado nos brindou com um dos melhores discos de metal extremo do ano, que leva o pouco sutil título de The Satanist. Intenso, profundo e de um bom gosto incrível, o disco tem uma produção limpa e cristalina que, ao invés de tirar a força do disco, só lhe dá mais méritos e deixa tudo ainda mais poderoso e sinistro. Quando a primeira faixa, Blow Your Trumpets Gabriel, começa a rolar, já é possível sentir um arrepio, como se as trevas começassem a surgir ao seu redor, prestes a tomar conta do seu corpo. Mas é nas duas canções finais, In the Absence ov Light e O Father O Satan O Sun!, que o bicho pega MESMO. Na atual turnê, o trio abandonou o clássico corpse paint do black metal e optou por máscaras com imensos chifres, deixando seu visual ainda mais assustador.

Os americanos do Slipknot também mudaram o visual de suas máscaras, cada vez mais macabras. E, da mesma forma que o Behemoth se agigantou depois da batalha que Nergal travou contra a leucemia, o Slipknot teve que aprender a fazer música sem a presença do baixista Paul Gray, falecido em 2010. Foram seis anos desde o último disco, All Hope Is Gone. Além de ter que se conformar com um novo baixista, a banda acabou incluindo um novo baterista à sua formação, já que aparentemente Joey Jordison foi demitido (as circunstâncias acerca de sua saída ainda são bastante obscuras). Com tantas novidades e um fardo de luto para carregar, os caras não se acovardaram. Encararam seu lado das trevas e apresentaram uma explosão de fúria chamada .5: The Gray Chapter, seu novo disco e que é, disparado, um dos melhores do ano. Arrisco dizer que está, no mínimo, entre os top 5.

Estamos diante de uma bolacha que está longe de optar por caminhos fáceis e óbvios. Denso, tenso, cru, instintivo, maduro. Dá pra dizer que The Gray Chapter é tudo isso – mesmo quando caminha, em faixas como Killpop e Goodbye, por uma trilha que chega a lembrar o Stone Sour, a outra banda do vocalista Corey Taylor. Ainda assim, o disco experimenta digerir seus próprios fantasmas de uma forma que remete imediatamente a Iowa, de 2001. Ouvir uma canção como AOV,  que dosa peso na sonoridade e melodia nos vocais, ou Custer e seu riff matador, é como participar de um processo coletivo de terapia. Que o futuro dos caras continue assim mesmo, por mais que eles superem a morte do grande amigo em algum momento.

Superação também foi a palavra-chave para os mascarados originais do Kiss. Depois de décadas sendo esnobados, uma das bandas mais populares do rock ‘n roll finalmente entrou pela porta da frente no chamado Rock and Roll Hall of Fame. Houve toda uma polêmica em torno de quais membros estariam presentes à cerimônia – afinal, era óbvio que Ace Frehley e Peter Criss, guitarrista e baterista originais, teriam que estar junto na homenagem, mas Paul Stanley e Gene Simmons defendiam que Tommy Thayer e Eric Singer, os atuais músicos, também estivessem presentes no palco. No final, depois de muitas trocas públicas de farpas, apenas os quatro originais subiram para fazer o discurso. E foi emocionante vê-los mais uma vez reunidos.

Simmons, Frehley e Criss falaram antes – e foram ao mesmo tempo tocantes e divertidos. Mas quando Stanley falou, cara, aí é que a história se fez. Afinal, Simmons é a cara do Kiss, o seu principal relações-públicas. Mas quem é fã da banda sabe que Stanley, nos bastidores, tem assumido a persona de poderoso chefão. E ele não teve medo de colocar o pau na mesa e questionar o método de escolha das bandas e artistas indicados, que partem essencialmente de profissionais do mercado de música. Para Stanley, falta um elemento importante nesta equação.

“Para nós, esta é uma noite especial, mas é realmente uma noite especial para os nossos fãs – isso é uma espécie de vingança. Não poderíamos ter feito isso sem vocês”, começou ele. “As pessoas, eu acredito que estou falando diretamente para o Rock and Roll Hall of Fame, elas querem mais. Elas merecem mais. Elas querem ser parte destas indicações. Elas não querem engolir a escolha de um pequeno grupo goela abaixo. Escolhas. As pessoas pagam os ingressos. Elas compram os discos. As pessoas que fazem as indicações aqui não fazem isso. Não vamos nos esquecer que são os fãs que fazem tudo isso possível. Eu olho nesta plateia e vejo muitas pessoas que me inspiraram. Pessoas que me fizeram quem eu sou. Mas também estou aqui por causa das pessoas que eu inspirei”. Em resumo: chupa, Rock and Roll Hall of Fame. :)

É impressionante que, num ano em que os heróis mascarados do rock surpreenderam, alguns outros, digamos, “mascarados” fracassaram miseravelmente. Os pretensos bons moços do Coldplay nos presentearam com o disco mais chato e sonolento do ano – conforme já falamos longamente aqui no JUDÃO. Mas foram os seus mestres inspiradores, os irlandeses do U2, que tentaram manter a todo custo a máscara da inovação e do bom-mocismo e, bingo, deram com os burros n’água.

A parceria com a Apple para o lançamento de Songs of Innocence forçou a banda a se desculpar porque, além do disco estar gratuitamente no iTunes, ele foi parar magicamente na lista de músicas de milhares de usuários de iPhones, sem que eles pedissem. “Foi uma mistura de autopromoção e megalomania”, disse ele.

BonoVox

Bono: o Messias mascarado

Eu até perdoaria o Bono se, pelo menos, o disco fosse bom. Mas, rapaz, por muito pouco o quarteto não roubou o título de Chris Martin e seus camaradas. O que nos foi entregue foi uma coleção de canções monocórdicas e sem graça, sem tempero, que simplesmente não decolam. Todas continuam colocando o vocalista como uma espécie de Messias, que declama as mazelas do mundo em trilhas sonoras construídas na medida para um clipe das Olimpíadas sobre a superação esportiva e pessoal. E a gente mal consegue ouvir as guitarras do The Edge, coitado, que não apresenta um único riffzinho que preste...

Bono tornou-se, de fato, um mascarado de marca maior. Mas aqui, o sentido da palavra é outro, Infelizmente. Preferia eu que ele pintasse o rosto ou usasse um par de frondosos chifres, como cabe na tradição celta aos grandes guerreiros. Tira a máscara de inocente, Bono. E veste uma máscara de demônio. Quem sabe você não desperta de novo o roqueiro adormecido dentro de você.