O Ato de Matar e os sintomas de empatia | JUDAO.com.br

Documentário de 2012, disponível no Netflix, lembra a mim e a você, aquilo que toda máquina, estatal, comercial, religiosa, nacionalista, ideológica quer que esqueçamos: somos humanos.

Eu já tinha ouvido falar de um filme chamado O Ato de Matar, um documentário sobre os grupos de extermínio usados pelo governo da Indonésia para eliminar indesejados durante os anos 60, mas sempre empurrava com a barriga — não é um assunto festeiro. Mas aí, aproveitando que está no Netflix, sentei finalmente pra ver o filme, talvez motivado por tudo o que está povoando a coletividade midiática, dados os acontecimentos recentes no Brasil.

Talvez algo mais subconsciente.

Nos anos 60, na Indonésia, iniciou-se uma ditadura que estabelecia prisão e morte a determinadas faixas étnicas e ideológicas da sociedade. Uma ditadura que nunca acabou — o mesmo governo daquela época continua até hoje, e os verdugos que comandaram assassinatos em massa andam nas ruas aplaudidos como heróis — pelo menos por aqueles cujos parentes nunca se viram no lado errado de um arame de estrangulamento. Joshua Oppenheimer, documentarista americano, foi pra lá entrevistar as famílias das vítimas e, ao notar que seus entrevistados não paravam de ser presos, dificultando um pouco seu trabalho, teve a primeira e a menos bizarra de suas ideias: entrevistar os matadores. Começou a procurar então os “heróis” históricos que “limparam” a nação usando ferro, fogo e balas. No meio da busca, teve a segunda, e definitivamente a mais bizarra de suas ideias: uma vez que seus entrevistados eram, na maioria, fãs de cinema — de filmes de guerra, de máfia, de faroestes — alguém sugeriu reproduzir as matanças, os sentimentos, as memórias na forma de cinema de ficção. Refilmar os fatos sob um filtro “hollywoodiano”.

Daí então temos um filme duplo. Cenas surreais, num momento mostrando gângsters dignos de filmes noir assassinando pessoas, num outro imagens lisérgicas que exploram as consequências psicológicas dos assassinatos nos próprios assassinos, encenadas e dirigidas pelos próprios caras, tudo misturado com entrevistas onde simpáticos velhinhos, que onde quer que apareçam são saudados com honrarias, nos descrevem os processos práticos e teóricos de, por exemplo, qual a melhor maneira de matar uma pessoa sem fazer tanta sujeira; nos mostram os lugares onde decepavam pessoas que morriam implorando misericórdia; nos guiam por uma não tão sutil jornada de extorsão nos mercadinhos do bairro.

Vários dos entrevistados são “homens fortes” e “decididos”. Queimaram vilarejos inteiros, contam como piada as experiências de estupro das quais participaram e defendem de pés juntos e mão no peito o quão valoroso isto foi (e ainda é), tanto em termos nacionalistas quanto em termos pessoais. Não se arrependem. Não tem problemas para dormir. Não é pra menos: o filme observa os frutos sociais de décadas de ditadura, com uma juventude fanática, uniformizada, incrivelmente nacionalista e leal aos ideais do governo. Para esses jovens, os gângsters são modelos de cidadãos. De guerreiros.

O mais animado e mais falador dos gângsters é Anwar Congo. Um sujeito carismático, interessadíssimo não só em contar sua história, mas em transmití-la de uma maneira divertida através de seus “filmes”. O mais controverso dos personagens do filme, Anwar tem problemas para dormir. Numa de suas primeiras cenas ele fala de pesadelos. Reclama que suas noites de sono nunca são pacíficas. E uma das viradas mais interessantes do filme é ver o próprio Anwar sugerindo criar cenas surreais que tentam, simbolicamente, exorcizar seus demônios internos, até que Oppenheimer o coloca para interpretar a vítima em uma das reproduções.

Luzes. Câmera. Ação.

Um dos parceiros de Anwar tem de interrogá-lo, oprimí-lo, e simular sua execução com um arame de enforcamento. E o faz até que Anwar pede para parar. Ele não consegue continuar. Depois, ao rever as cenas, Anwar se abre: é assim que suas vítimas se sentiam? Essa angústia? Esse medo? Oppenheimer não perde tempo na resposta: “Não. O que elas sentiam era muito pior. Elas sabiam que iam morrer”.

Anwar então se quebra na frente das lentes de Oppenheimer. Todo o construto que passou décadas polindo e inventando é eliminado por causa de uma doença que o infectou, ninguém sabe exatamente quando. Anwar nunca tinha se visto no lugar de uma das vítimas. Nunca tinha percebido que os membros que cortou, as cabeças que jogou fora, o sangue que lavou de lajes anônimas, todos pertenciam a homens e mulheres que nem ele.

Tem um lado de O Ato de Matar no qual somos abordados com um certo tipo de fascínio imprevisível pela cultura pop. Somos confrontados com uma sociedade que conseguiu criar um tipo de pessoa capaz de usar a violência hollywoodiana, hora realista, hora glamurizada, hora caricata, como fonte de inspiração para uma aplicação bastante não-dramatizada da dita violência. Ao longo do filme, percebemos que isso tem menos a ver com a violência em si, que até mesmo os políticos locais preferem engavetar quando percebem que estão sob os olhares do resto do mundo, e tem mais a ver com “eu quero ser como esses caras na tela, só que me deram essa oportunidade de matar gente à rodo.” Recentemente, o velho argumento de que “filmes, games e ficção em geral geram violência no mundo real” voltou à tona pelo tipo de gente com preguiça e com descaso que gera desequilíbrio cultural e problemas profundos. Eles estão tão afoitos apontando para a violência em si e esquecem de apontar para o problema óbvio mais difícil de tratar, um dos assuntos submersos nas entrelinhas do filme: o ego.

Porém, o que faz de O Ato de Matar um filme eternamente relevante é ainda outra coisa, especialmente para nós. Não só porque muita, muita, muita coisa do filme soa familiar demais, próximo demais; mas porque os acontecimentos recentes da nossa sociedade brasileira, assim como as reações sobre esses fatos, são bastante reveladores. Quem temos aplaudido? Quem temos defenestrado? Quem queremos no nosso altar de adoração cívica, moral e social?

E o que aconteceria com todo o nosso foco de atenção, a direção de todas as discussões, as linhas de raciocínio, se nós sofrêssemos um tipo de epidemia? Até no coração de uma ditadura que se orgulha das cabeças no poste, e ensina esse orgulho para suas crianças, no ventre de um pobre assassino sanguinário, nasceu o vírus da empatia. E os sintomas começaram a assombrá-lo.

Esses sintomas lembram Anwar, e lembram a mim e a você, aquilo que toda máquina, estatal, comercial, religiosa, nacionalista, ideológica (ou todas as anteriores) quer que esqueçamos: somos humanos.