TREZENTOS E OITENTA MILHÕES de visualizações depois, a ficha caiu
Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, já dizia o blue eyes Chico Buarque. O espelho é cruel nessas horas que a gente não sabe se vai o se fica, quando a gente olha e não se reconhece. Quando a gente escreve “a gente” quatro vezes (cinco, né?) logo no primeiro parágrafo do texto pra não se sentir sozinho nessa máxima.
Na teoria, uma coisa é uma coisa, mas, na prática, esta coisa é outra coisa. Escolher, estudar, estagiar, observar, se apaixonar, odiar e, na falta de coisa melhor, reaprender a gostar de uma profissão é parte da vida. A vida é a arte do encontro, declamou o poetinha Vinicius de Moraes. Um ofício vem de encontro a nós muito mais do que vamos de encontro a ele, mas é nossa fé no poder de transformação do que a gente faz que não nos deixa viver de uma forma absolutamente idiota.
No mundo, tudo acontece. Essa é do maestro da dor, salve, Cartola. Saravás à parte, as coisas aconteceram, acontecem e seguirão acontecendo no mundo, mas a real, quando estamos trocando uma ideia com nossos botões, é que se a gente não coloca nem um temperinho nosso no cotidiano, acaba sentindo que passa por esta vida besta sem deixar um quinhão pros bacuris que no futuro vão povoar esta terra de ninguém e de todo mundo ao mesmo tempo.
É nesse clima que a gente salva o mundo com os amigos na mesa do bar, tocando violão na praia, orando na missa, no culto, na macumba, pensando debaixo das cobertas ou até mesmo fazendo o amor, que é a melhor forma de revolucionar o mundo em dez minutos de que se tem notícia.
Enrolo vocês cinco que ainda me dão olhos e ouvidos por aqui, não vou negar. O que quero contar é que sentado ali no Parlapatões, na Praça Roosevelt, perímetro colorido da cinzenta SP, naquele tradicional circuito onde se reveza um trago, uma ideia, um trago, uma ideia e, enfim, uma ideia lhe trago, me caiu a ficha.
Quando somos crianças, sabemos exatamente o que fazer. Se queremos um chocolate, queremos um chocolate. Não há ponderação sobre quanto doce temos comido nos últimos tempos, se nossos dentes serão roídos por cáries ou mesmo quanto à quantidade de gordura hidrogenada contida naquela delícia. É o chocolate que a gente quer e faremos tudo ao nosso alcance (que, no caso de uma criança não é muito, se houver negação paterno-materna meio que só resta implorar ou chorar) para devorar o objeto do nosso desejo.
Daí você estuda, trabalha, ou só trabalha ou só estuda, e, quando vê, nem lembra mais por que está fazendo aquilo
Depois a gente vai crescendo e segue convicto do que quer, embora, no geral, dependa da autorização ou do dinheiro dos outros – pais, tios, avós, professores – para conseguir seja lá o que for. Neste momento, começa a fase idiota da vida, quando acreditamos que, para virar o jogo, vamos estudar e trabalhar, ou um dos dois, ganhar nossa grana e dizer adiós aos desmandos desses velhos de merda.
Daí você estuda, trabalha, ou só trabalha ou só estuda, e, quando vê, nem lembra mais por que está fazendo aquilo, mesmo enquanto toma uma gelada com os chegados na tal parte colorê da metrópole.
Então me cabe aqui invocar um mantra à la Simonal: nem vem que não tem, pra virar cinza a minha brasa demora. E nesse embalo eu vou botar pra quebrar.
No clima da piada do bambu, que, neste caso, é o sentido do clipe da Sia com meu fetiche existencial preferido, Shia Labeouf, bailando com essa pequena grande força da natureza que é Maddie Ziegler, deixei o melhor, ou o pior, depende mesmo do ponto de vista, para o final.
No vídeo, Shia Lalenda está confrontando essa força desembestada da infância, do desejo inexorável, da certeza, do querer acima de tudo, do amar sem cobrar, do cobrar sem rejeitar, do ser sem ter absolutamente nada. É ali, nos movimentos daquela pequenina alma contorcionista de peruca loira, que se esconde a chave para soprar nosso barquinho de papel mar adentro sem esperar, ou fingir que espera, por um iate no fim do arco-íris.
É fora da gaiola, enfim, meus caros, minhas caras, que a vida acontece.