Não, ninguém tá criando imposto só pro Netflix, como você pode estar imaginando. O debate é maior (e mais importante) do que isso, e deveria nos levar a discutir como o Brasil cobra seus impostos — inclusive daqueles seus joguinhos
“A casa caiu. Netflix vai pagar imposto. Meu Deus, a assinatura vai aumentar!”. Calma, pequeno gafanhoto. Nada disso aconteceu (ainda). Na verdade, o que está rolando na nossa Câmara dos Deputados é o debate sobre o Projeto de Lei Complementar 366, de 2013, que muda algumas regrinhas sobre a aplicação de um tal Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, cobrado por cada município pra gastar com coisas como saúde e educação de base e que provavelmente você já ouviu falar com o nome de ISS. E não envolve só um, mas todos os serviços de streaming que estão (ou vão chegar) no Brasil.
Veja bem, esse tipo de debate e de mudança na nossa legislação é um dos motivos para os quais os deputados e senadores foram eleitos. Até por isso o projeto que tá sendo votado agora é a junção de várias idéias e propostas feitas nos últimos dez anos. Porém, o grande problema aqui é que eles estão perdendo o ponto. Estão encarando streaming como serviço de tecnologia – algo que está na lei do ISS. Não é isso. Streaming é a circulação de entretenimento. É um serviço, sim, mas um serviço mais próximo de uma operadora de TV paga, de uma locadora ou daquela lojinha de DVDs que você ia – só que criado sob uma nova ótica. Novos tempos.
E, (não) surpreendentemente, pra nossa legislação isso é outra coisa — e que pode sair BEM mais cara.
Pra começar, vamos precisar entender o que é o ISS. Basicamente, é uma taxação sobre todo e qualquer serviço prestado. Ou seja, cortar o cabelo, fazer uma limpeza de uma empresa, detetização, dublagem, gravação e execução de músicas, cópia... Até o JUDÃO, quando presta ou recebe um serviço, paga o danado do ISS. É, de certa forma, o equivalente dos serviços para os impostos da indústria, como o IPI. A papelada que atualmente regula essa brincadeira é uma Lei Complementar.
Há dois probleminhas nessa lei, um na nossa visão, o outro na dos políticos. O primeiro é que ela, como acontece em boa parte da legislação brasileira, lista serviço por serviço a ser taxado. Simplesmente há alguns que foram propositalmente deixados de fora, muitas vezes pra “defesa de mercado”, enquanto outros não entraram por ainda não existirem. Esse último é o caso do streaming – seja de áudio ou vídeo.
O segundo é que, de acordo com o que tá escrito, cada cidade define o quanto cobrar de ISS. Por isso, foi iniciada uma verdadeira guerra fiscal. Municípios começaram a zerar a cobrança para atrair empresas pra lá, e assim gerar empregos. Em contrapartida, essas empresas pagavam (ou não) o ISS por onde elas passaram a fixar residência. Isso fez com que o Supremo Tribunal Federal se movimentasse no ano passado, decidindo que o imposto deveria ser pago pra cidade onde o serviço é contratado, e não onde fica a sede da empresa.
E aí chegamos no que rolou na última quinta-feira (10), quando a Câmara aprovou o que eles chamam de “texto-base” do PLP – ainda restam os destaques, ou seja, ou pontos mais polêmicos, que devem ser debatidos nesta terça-feira (15).
Como tá agora, o projeto de lei (que AINDA não foi aprovada) coloca que as cidades devem cobrar um mínimo de 2% de ISS, o que acabaria (ou, ao menos, reduziria) a guerra fiscal — resolvendo o problema dos políticos. Só que o mesmo texto não resolve o outro lado, apenas adiciona novos serviços pra lei taxar, como “aplicação” de tatuagens e piercings, e, claro, o streaming — seja de áudio, vídeo, imagem, texto (!!!!)... Tudo que vier via internet.
Netflix, Deezer, Napter, Spotfy, Rdio, A Casa das Brasileirinhas, todos vão ter que pagar o ISS, por esse texto. Assim como Amazon Video, HBO Now e qualquer serviço do tipo vão ter que pagar quando chegarem por aqui. E, no mínimo, a taxa vai ser de 2% que, na teoria, vai sair do bolso da empresa. Mas você sabe como essas coisas funcionam, né?
De qualquer forma, é possível acreditar que não haja nenhum impacto imediato no preço do Netflix, que é disparado o serviço mais assinado entre eles. Reajustes de preços deles tem acontecido anualmente, então é provável que o valor do ISS seja repassado para o consumidor quando isso acontecer novamente, em meados de 2016. Numa conta de R$ 30, seria um impacto de algo como entre R$ 0,60 e R$ 1,50 — só pensando nesse custo.
Mas... Se o nosso Supremo diz que o ISS deve ser pago na cidade onde o serviço é prestado, como fazer com o streaming? Os filmes, séries e músicas estão na nuvem. São do mundo. Aí você assiste na sua casa ou onde bem entender. O serviço tá rolando no seu APARATO. As empresas que trabalham com isso vão ter que pagar imposto em mais de 5,5 mil cidades, cada um com suas burocracias e taxas diferentes?
“Nos casos de serviços dispersos, como da disponibilização de conteúdo, o local de prestação é considerado a sede da empresa”, diz o deputado federal Walter Ihoshi, que é o relator da mudança da lei, numa entrevista exclusiva ao JUDÃO. Ou seja: ok, quem oferece esse tipo de serviço só pagaria numa cidade. Menos um problema.
Mas, vem então a pergunta: streaming é um serviço? É justo cobrar ISS desses caras?
“A cobrança se dá pelo serviço de acesso a uma biblioteca de dados (de áudio ou de vídeo)”, afirma o deputado. Para ele, streaming é parecido com uma locadora, que deveriam pagar o ISS.
Só que um dos vetos à lei original, aprovada em 2003, dizia que locação não entraria na brincadeira, por conta de uma decisão do Supremo. Na prática, muitas locadoras entraram na justiça contra o imposto, justamente usando como justificativa esse veto. Pois é.
Rolou também o mesmo veto ao trecho da lei que taxava a “produção, gravação, edição, legendagem e distribuição” em mídias como fitas, CDs e DVDs, já que tava decidido que essa galera pagaria uma outra sigla, o ICMS — Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços e é relativo ao que é “físico”. Ou seja, se vender um filme é “circular uma mercadoria/serviço”, streaming também não poderia ser considerado a mesma coisa — ainda mais agora, com a Amazon anunciando que dá pra baixar alguns filmes no serviço deles? Pode não estar dentro do conceito de mídia física, mas um episódio de uma série não é um serviço puro e simples, como cortar o cabelo. O resultado é tangível, é um produto pra ser vendido em massa.
“O ICMS é mais barato, né?”, pode perguntar um leitor mais desatento. Não, não é. Enquanto o ISS pode ser no máximo 5%, essa outra taxação (que é estadual) fica numa média de 18%. Numa assinatura de R$ 30, são mais R$ 5,40. Cuén.
Esses dias mesmo estávamos comparando o Netflix com um canal de TV pago, que são considerados “serviços de acesso condicionado”, com uma lei toda especial e pagando também o ICMS. Tanto é que Rafael Sgrott, representante da Vivo, defendeu recentemente que quem atua com VOD deveria pagar esse imposto.
A grande questão é que se Netflix for enquadrado como um canal, seria criado todo um outro problema. É que a lei que regulamenta eles coloca cotas de conteúdo nacional (entre outras coisas) em horário nobre. Como você faz cota em streaming? E o que é horário nobre quando o usuário faz a sua própria programação?
Walter Ihoshi tem um visão sobre isso, que, aliás, faz bastante sentido e resolve essa parte da polêmica: já pagamos o ICMS na conta da internet. Pronto. Não cabe pagar sobre a ~biblioteca que você também tá acessando. Além disso, o deputado diz que colocar o streaming no ISS evitaria que os estados se movimentem pra fazer a mesma analogia que tá aí em cima, cobrando o imposto mais caro.
Toda essa discussão tem ainda uma outra camada, não debatida pelos deputados e senadores: os games vendidos via Steam, Origin, Nuuvem, App Store e plataformas similares. A lei original do ISS (não é uma proposta feita agora, como teve gente comentando) fala que “licenciamento ou cessão de direito” de “programas de computação” também deve pagar o tal imposto. Um trecho dúbio, que não resolve o problema, principalmente quando o servidor tá lá fora.
Na prática, os joguinhos vendidos na caixinha pagam ICMS (como os DVDs de filmes) e, na internet, pagam nada, como revelou o Moacyr Alves, presidente da Acigames, numa polêmica entrevista em 2013.
A situação é a mesma com as lojas online de músicas e filmes, como o iTunes Store. Já reparou que todos os preços lá no lojinha do tio Steve são em dólar, mesmo usando a versão brasileira?
Que rolo, esse do digital. E no mundo todo: lá nos EUA, a cidade de Chicago decidiu que streaming é diversão e, assim como tal, os assinantes devem pagar uma taxa local de 9% já a partir de setembro.
A solução então é uma nova lei no Brasil, só pra isso? Uma nova sigla? Não, cara! Todo esse caso só serve pra mostrar que não precisamos de mais impostos, mais siglas, mais leis, mais polêmicas. O que precisamos é simplificar os tributos. Menos uma sopa de letras, mais transparência, mais igualdade pra todos, mais agilidade pra acompanhar a velocidade do mundo. Uma mudança mais profunda, que passa por quem você vota.
É uma discussão que precisa ser levantada pra ontem, caso contrário só vamos enxugar gelo — inclusive com casos como Uber, WhatsApp...
O certo, no final, é quem ganhar mais pagar mais. Seja uma empresa, seja eu, seja você.