A morte nos fustiga e, de quando em vez, vem aqui e busca alguém que a gente gosta
Millôr é o pai de todos, chamá-lo de gênio é reduzir a realidade, que, no caso dele, beirava o infinito das ideias. Declarava-se o criador do tamboréu, o Guru do Méier, um escritor sem estilo. E, de fato, como enquadrá-lo em uma coisa só, numa caixinha depositada no arquivo da combalida memória artístico-jornalística nacional? Ele é mais.
Conheci o véio mais jovem de que se tem notícia nos idos de 2003, na primeira Flip, bebia eu (que tinha 23 aninhos!) com meu irmão e mais dois amigos após a longa, e quase fatal, viagem de carro até Paraty, quando avistei em meio àqueles paralelepípedos gigantes e cheios de história o ídolo caminhando, se escorando na esposa, e ela se escorando nele. Gelei. Vou, não vou. Fui. E conversei com o Millôr. Ainda bem, ou essas lágrimas de agora incluiriam uma dose de arrependimento em sua composição.
Levei um guardanapo para pedir um autógrafo, mas a fala inebriante daquele cara me fez esquecer a tietagem. Disse ele que as ruas ali eram lindas, mas uma armadilha para alguém de sua idade. Lhe falei, meio emocionado, de como o adorava e como suas coisas me inspiravam a escrever e a enxergar além. Ele disse pra tomarmos uma mais tarde. Nunca mais o vi. Ou melhor, vi sim, nos desenhos, haikais, loucuras boas por onde ele retratava a realidade como é, de fato, e não como a gente enxerga.
A morte nos fustiga e, de quando em vez, vem aqui e busca alguém que a gente gosta, que no silêncio da memória nos ajuda a seguir em frente, quase como um anticorpo pra vida sem graça de cama, mesa e banho que inventaram pra gente passar em branco por estas terras.
Millôr é a vacina cujo beliscão, ao perfurar a pele, traz um sorriso pra minha cara. Pelos olhos dele aprendi a enxergar coisas que antes não via. Com seu “Lições de um Ignorante”, que li aos 14 anos, catando milho na Biblioteca Volante estacionada no Marapé, projeto social da prefeitura lá em Santos, que levava um ônibus cheio de livros para bairros menos abastados, escancarou algo na minha cabeça e essa janela nunca mais fechou.
Por ela entraram Ziraldo, Angeli, Luis Fernando Veríssimo, Laerte, Zuenir Ventura, Jaguar, Sergio Cabral, Carlos Heitor Cony, Glauco, Chico Buarque, Eric Hobsbawm, Pedro Juan Gutierrez, Adão Iturrusgarai, Mario Vargas Llosa, Guto Lacaz, José Arbex Jr, Arnaldo Jabor, Aroeira, Carlos Alberto Dines e tantos outros que não fizeram cerimônia e se abrigaram, cheios de convidados brilhantes, no espaço que o Millor abriu.
Ainda bem que naqueles dias não hesitei em falar com ele. Aos 14 e aos 23.
E você? Ainda dá tempo de conhecer o cara.
Texto originalmente publicado em 2012, na Nazco, um rio que passou em minha vida, e que meu coração se deixou levar ;)