Pantera Negra e a identidade secreta de Kendrick Lamar

Um dos cantores e compositores mais importantes do rap contemporâneo, este nativo da icônica cidade de Compton usa o disco que é meio trilha-sonora e meio homenagem ao herói de Wakanda pra mostrar a poder de sua faceta de produtor numa clara mudança de PARADIGMAS na relação da Marvel com a música dos seus filmes

No nosso ASTERISCO desta semana, a gente definiu aqui no nosso CANON que, depois do filme do Pantera Negra, a cultura pop nunca mais será a mesma. E isso vale também para a Marvel, que se o bem-aventurado deus pantera Bast assim quiser, vai mudar pra sempre. Não apenas por conta de Pantera Negra, o filme. Mas também por conta de Pantera Negra, a trilha sonora.

Que este Black Panther: The Album – Music from and Inspired By é talvez um dos passos mais importantes da Marvel rumo a uma relação mais interessante com a trilha sonora de suas produções, ah, mas isso não dá pra negar MESMO.

Tirando Guardiões da Galáxia, que usa as canções efetivamente como PERSONAGENS da trama, o restante das produções do estúdio entregava um monte de faixas de fundo genéricas que poderiam tranquilamente ser produzidas usando aqueles arquivos de trilha branca do YouTube. Quando Thor: Ragnarok fez aquilo com o Led Zepellin, opa, alguma coisa parece ter mudado. Mas faltava dar mais um passo, ainda mais ousado. Faltava fazer quase como um manifesto, uma verdadeira carta de amor do cinema pra música, que foi justamente o que eles fizeram quando, depois de dizer que a revolução não será televisionada, convidaram para esta tarefa um sujeito do naipe de Kendrick Lamar.

Porque eles não chamaram um músico qualquer. Estamos falando de um dos mais importantes, inventivos, consagrados e principalmente engajados artistas do atual rap americano, que aqui ganha a chance de mostrar mais de um lado seu que parte do público ainda desconhece: o Kendrick Lamar produtor. É quase como se a Marvel tivesse dito pro Robert Downey Jr uma parada do tipo “pronto, amigo, agora a gente quer que você DIRIJA um dos nossos filmes. Liberdade total”.

Lamar agarrou a chance. E fez bonito. PRA CARALHO.

Na real, segundo conta o próprio diretor do filme, Ryan Coogler, a ideia original era que ele apenas fizesse algumas faixas para o filme. Fã do trabalho de Kendrick desde a época das mixtapes, Ryan queria muito que ambos trabalhassem juntos quando possível. Quando o cantor finalizou seu trabalho com o último disco, o igualmente fodástico DAMN, o cineasta já tinha algumas cenas pra mostrar. “E a próxima coisa que sei é que eles já tavam lá, reservando os estúdios pra trabalhar nisso pra valer”, revela Coogler ao NPR.

Em Black Panther: The Album, Kendrick é creditado como participante efetivo de apenas cinco canções das quatorze que compõem o disco. Ele sai dos holofotes e deixa os artistas que escolheu brilharem sozinhos. Mas obviamente que sua influência pode ser sentida, como curador e produtor, ao longo de toda a audição. Sem exagero, é o mesmo tipo de assinatura que se pode ouvir no trabalho de um cara como Dr. Dre, por exemplo, igualmente egresso de Compton, ídolo de Lamar e uma de suas principais influências. O resultado é um álbum bastante diversificado, mas que é, ao mesmo tempo, contemporâneo, moderno, dinâmico, fortemente relacionado com os temas do filme e, principalmente, coeso. Por mais que as canções sejam diferentes entre elas, cheias de diferentes camadas, elas conversam de maneira que, sim, parecem parte de um todo. Neste caso, ponto para Lamar.

“King of my city, king of my country, king of my homeland / King of the filthy, king of the fallen, we livin’ again”, canta Lamar na faixa inicial, criando imediatamente uma conexão com o filme — por que, afinal de contas, ele tá incorporando T’Challa de Wakanda ou tá falando do Kendrick de Compton? Sei não. Talvez de ambos. De qualquer forma, é aí que a diversão começa.

Dá pra sentir o delicioso sabor étnico do continente no qual Wakanda está inserida, mas com uma pitada de ragga, em Seasons, que mistura o americano Mozzy com o rapper sul-africano Sjava. Um pouco da Jamaica é a vibração que dá o tom também no ótimo caldeirão que é Bloody Waters, grande momento do álbum no qual a energia de Anderson.Paak, os versos secos e diretos ao ponto de Ab-Soul e a melancolia do cantor inglês James Blake falam juntos sobre falsos profetas sendo enterrados vivos e a cabeça no trono, quase como se Killmonger em pessoa estivesse abrindo o coração sobre seus planos.

Ao mesmo tempo que este disco nos permite uma pequena joia para sacudir o esqueleto como Redemption, na qual o californiano Zacari empresta uma camada de modernidade à sonoridade da sul-africana Babes Wodumo, gerando talvez algo que se possa chamar de afrobeat, também tem espaço para uma cacetada como Opps, com Lamar e o mesmo Vince Staples cujo som já tinha dado as caras no primeiro trailer do Pantera. Mas aqui eles dividem os microfones com outra mina de responsa, a sul-africana Yugen Blakrok, que rouba a cena total ao cantar coisas como “Flowers on my mind, but the rhyme style sinister / Stand behind my own bars, like a seasoned criminal”. E ainda completa, como uma versão neon e ainda mais cyberpunk das Dora Milaje: “Roar like a lioness, punch like a cyborg”.

Aliás, tal qual rola no filme de Coogler, aqui Lamar estende o tapete vermelho para as mulheres mostrarem a que vieram. Desde a melodia R&B hipnótica e de tons mais pop da SZA no primeiro single All the Stars até a levada triste e mais old school de Jorja Smith, jovem revelação inglesa que, numa canção mais grave, não tem medo de dizer “And of course, somebody’s always gonna say somethin’ / Try and shoot me down for voicin’ my own opinion”. Elas não se intimidam, de um jeito que faria Okoye, Shuri e Nakia se orgulharem um bocado.

No final, Lamar encerra os trabalhos como uma metralhadora giratória na igualmente pungente e dançante Pray for Me, um bom resumo do que rolou ao longo do disco inteiro — e que começa com The Weeknd dizendo “I’m always ready for a war again”, para que lá pelo meio da canção Kendrick estabeleça que o mundo é tão foda de viver — ou, pelo menos, para alguns bem mais do que pra outros — que no fim tem muitos Panteras Negras por aí. “Who need a hero? / You need a hero, look in the mirror, there go your hero”, diz ele na rima. “I fight the world, I fight you, I fight myself”. Na veia.

Esta é, de alguma forma, a mesma ideia de Pantera Negra, a faixa que o Emicida gravou especialmente em homenagem ao personagem e que, obviamente, deveria estar na versão nacional do disco ou, pelo menos, nos créditos finais das cópias exibidas por aqui. Fã confesso de cultura pop, ele espalha referências por todos os lados da letra (Super-Choque, Lanterna Verde, Superman, Ta-Nehisi Coates, Spock, Stan Lee, Spike Lee, Bruce Lee) mas, no fim, se coloca ele também como um herói, um Pantera Negra. “Pro povo ter reis no espelho, minha caneta cria”, diz. É isso.

Pode parecer fora de contexto, mas cabe um parênteses aqui pra falar justamente sobre este cara que, com o seu Laboratório Fantasma, de alguma forma está tentando ser um pouco do que o Lamar prova que pode ser, e MUITO, neste disco. Mais do que um artista foda, uma catapulta poderosa para mostrar os trampos de outros manos e minas que precisam de uma chance de ser ouvidos.

No fim, com ou sem Emicida mas com muito Lamar, a trilha é um sucesso tão grande quanto o próprio filme: na semana passada, o álbum chegou com tudo no topo da parada de mais vendidos da Billboard, com mais de 150.000 cópias comercializadas, de acordo com a Nielsen Music. E isso sem contar a estimativa de outras 60.000 cópias adicionais, vendidas ao longo deste final de semana, que é quando o filme estreou. Vale lembrar que a indústria musical faz uma conta maluca aqui que mistura vendas físicas de discos e também as vendas digitais de álbuns/singles e ainda a média de resultados de streaming.

Neste último quesito, em particular, o disco do Pantera foi ainda melhor: o relatório da Nielsen fala em quase 190 milhões de reproduções de todas as canções combinadas, nas principais plataformas, desde o dia 9 de fevereiro, quando o disco ficou disponível nos ambientes digitais. Cerca de 50 milhões destes streams rolaram ao longo DESTE final de semana. “Isso é muito maior do que apenas um lançamento musical. É muito maior do que uma coletânea de músicas”, afirma David Bakula, VP sênior de análises da Nielsen Entertainment, em entrevista pra CNN.

Para Mark Spears, o Sounwave, produtor do coletivo Digi+Phonics que trabalha com a gravadora de Kendrick, a Top Dawg Entertainment, e também participou do álbum do Pantera Negra, o segredo sucesso está no timing. “O filme não se passa em 1910 ou nos anos 60, quando o Pantera Negra surgiu nos gibis. Ele é ambientado nos dias de hoje. E tem muitos momentos no filme que remetem ao que está acontecendo com o mundo HOJE, enquanto queríamos que a trilha soasse desta forma também. Eu acho que foi o casamento perfeito”.

A gente também acha. <3