Assistimos aos 7 primeiros episódios da série do homem de pele impenetrável e conhecemos um lado completamente diferente da Marvel, igualmente fascinante, igualmente cativante e que chega a conversar ainda mais com os cinemas
“Para o Netflix, a Marvel vai produzir quatro séries inspiradas em seus heróis mais urbanos”. Assim que a notícia saiu, vamos lá, deu uma pontinha de desconfiança. Seguindo este conceito de “heróis urbanos” muito à risca, a possibilidade das produções terem todas a mesma cara era realmente BEM grande. Ainda bem que não foi o caso. Já tinha ficado claro que Jessica Jones era uma série bem diferente do Demolidor, por mais que ambas se passassem em Hell’s Kitchen, né? Então. Luke Cage, a terceira da leva, consegue ser bastante diferente tanto de uma quanto de outra. E não apenas porque é ambientada no Harlem.
Aliás, para ser totalmente justo, talvez Luke Cage seja a produção mais DIFERENTE de tudo que a gente já viu neste tal de universo cinematográfico da Marvel até o momento, considerando cinema e TV. É um lado ainda não visitado deste mundinho que começa a ser povoado por superseres.
Um mergulho bem mais profundo na história real das ruas, das guerras de gangues entre negros e latinos, da cultura negra da música (rap, soul, blues, jazz — aliás, mas que PUTA trilha sonora foda!), da obsessão dos subúrbios americanos por esportes como possibilidade de redenção (as conversas sobre basquete e baseball são essenciais para o andamento da história). Não é apenas a primeira produção Marvel protagonizada por um negro, é a primeira produção Marvel na qual ser negro é essencial.
Quando a gente vê, na abertura da série, pedaços do Harlem refletidos na pele de Luke Cage, faz muito sentido. Porque enquanto a Cozinha do Inferno é um personagem muito presente na série do Demolidor, aqui o Harlem é tão protagonista quanto o próprio Luke. Se a série fosse ambientada em qualquer outro lugar do planeta, não faria qualquer sentido e nem teria metade da graça.
É legal demais ver o Mike Colter (QUE HOMEM!) mostrar outras facetas do Luke Cage. Quando apareceu em Jessica Jones, não foi difícil se apaixonar por sua presença impactante, por sua retidão de caráter inabalável. Mas em sua própria série, conseguimos ver um Luke mais próximo do Cage das ruas retratado, por exemplo, no Alias de Brian Michael Bendis ou na série Cage, do Marvel Max, escrita por Brian Azzarello. Este é um herói meio canastrão, vacilante, que tem um passado obscuro do qual está fugindo, que não está muito confortável no papel de vigilante. Que fica puto, fala bosta, solta uns comentários escrotos quando está no veneno, mete soco na parede. É um Luke Cage menos “cavaleiro de pele impenetrável”, menos Power Man, menos Herói de Aluguel e mais... humano.
E veja só: pelo menos nos 7 primeiros episódios desta temporada, estamos justamente falando da série Marvel / Netflix que mais menciona os acontecimentos dos cinemas e das outras séries. A gente escuta (e vê, de um jeito bastante divertido) muito mais referências ao cara do martelo, ao gigante verde, ao sentinela da liberdade, ao incidente alienígena de Nova York, ao sujeito que está fazendo a limpa na Cozinha do Inferno... E até a um OUTRO personagem coadjuvante de um filme que NÃO é o primeiro Vingadores, criando uma conexão inesperada mas que faz um baita sentido para a trama.
Tem outro elemento bastante interessante aqui e que, nas outras duas séries, é apenas brevemente retratado: a polícia. Vemos muito mais do dia a dia do distrito e da atuação e assombro dos homens da lei diante dos seres superpoderosos — ainda mais porque a excelente Mercedes “Misty” Knight vivida por Simone Missick está aqui fazendo essa ligação mais direta entre esses dois mundos da ~lei.
Personagem tão cultuada nas HQs quanto o próprio Luke, ela chega, em certos momentos, a roubar a cena do protagonista, entregando uma interpretação forte, decidida, apaixonada, apaixonante. Do tipo que olha de igual pra igual pra bandidagem, sem medo, e ainda encara um grandalhão intimidador como o Sr.Cage. Em resumo: queremos mais da Misty. Mais, muito mais.
Há ainda de se comentar a respeito de Cornell Stokes, o vilão Cottonmouth, vivido de maneira brilhante por Mahershala Ali. Temos aqui mais um ANTAGONISTA surpreendente, que faz jus à tradição do Rei do Crime e do Kilgrave e deixando claro que, sim, por favor, em nome de Odin, os roteiristas dos filmes da Marvel deveriam mesmo fazer um workshop de “criação de vilões” com a galera que produz o material do Netflix. Sedutor, de fala mansa, um homem de classe, envolvente, refinado, com um baita vozeirão, que veio da rua e ajuda a sua comunidade, que tem o controle absoluto sobre tudo. Um pouco exagerado e teatral, até, em alguns momentos.
Só que ele sempre entra e sai de cena deixando uma certa tensão no ar. Porque todo mundo sabe que, se contrariado, Cottonmouth se transforma em um monstro irreconhecível, furioso, que não para um minuto até ver sangue.
Pra contar a história do seu passado, amarraram com a presença constante de sua prima Mariah, numa participação primorosa de Alfre Woodard (que, é bom que se reforce, NÃO está vivendo aqui a mesma personagem de sua pequena ponta em Guerra Civil). Mahershala e Alfre, em uma determinada cena-chave desta primeira metade da temporada, dão um show de interpretação que a gente pode até comparar com aquela cena do interrogatório na prisão, entre Wilson Fisk e Matt Murdock. Deu pra sacar o peso da coisa?
Outra questão bastante importante aqui: a participação da “enfermeira noturna” Claire Temple (Rosario Dawson). De longe, é o seu momento mais importante, mais presente, uma construção que, depois dos acontecimentos da segunda temporada do Demolidor, vai ajudar a tornar mais palpável o seu papel neste universo, exatamente como acontece nos gibis.
Depois de Demolidor, depois de Jessica Jones, teve gente desconfiando do que Luke Cage reservava para nós. “Este vai ser só um tapa-buraco para justificar a chegada dos Defensores”, ouvi um coleguinha jornalista dizendo. Olha... se este foi o caso, os caras escolheram um tapa-buraco de responsa, viu?
Luke Cage estreia em 30 de Setembro no Netflix. Fique ligadinho para novas análises e discussões sobre a série mais próximo do lançamento. :)