Atuar, na verdade, foram só em dois filmes na vida. Mas sua voz mágica era praticamente um personagem com vida própria.
O poder da voz de Aretha Franklin só podia ser comparado, talvez, ao timbre inconfundível da guitarra de BB King. Talvez por isso ela fosse chamada de Rainha do Soul enquanto ele era o Rei do Blues, ambos absolutamente incontestes em seus reinados, influenciando gerações e mais gerações de músicos que os seguiriam. Mas quando se usa a palavra “poder” para se referir ao vozeirão da diva que, infelizmente, nos deixou nessa quinta-feira (16), aos 76 anos, talvez acabe passando a impressão errada. Não é apenas o “poder” da força porque, claro, ela tinha um alcance incrível, um tom que preenchia o palco e os nossos ouvidos. Mas era mais do que isso.
Assim como King quando começava a dedilhar a sua Lucille, a voz de Aretha tinha o poder de aflorar nossas emoções. Da euforia inevitável com Respect (cuja versão de letra e interpretação modificados subverteram o machismo original de Otis Redding) à sensualidade de Chain of Fools, passando pela doçura de I Say a Little Prayer e pelo romantismo nada óbvio e ainda assim bastante envolvente de Dr. Feelgood, o que não dava era pra passar INCÓLUME quando esta americana natural de Memphis e egressa do gospel, começava a cantar.
Primeira mulher a fazer parte do Rock & Roll Hall of Fame, Aretha se reinventou muitas vezes, indo do country à ópera, gravando com e regravando gente das mais diversas, de George Michael a George Benson, de James Brown a Ray Charles, de Lauryn Hill a Adele. Uma destas muitas recriações foi justamente no começo da década de 80, quando topou um papel em Os Irmãos Cara de Pau, uma comédia musical com os personagens Jake e Elwood Blues, que eram até então vividos por John Belushi e Dan Aykroyd apenas nos sketches do Saturday Night Live. “Foi minha estreia no cinema e eu gostei tremendamente”, explicou a diva em sua autobiografia, Aretha Franklin: The Queen of Soul.
O diretor da película, John Landis, lembra que aquela era uma época de baixa para o R&B, já que as paradas eram dominadas pelo pop disco/dançante do ABBA, Bee Gees e companhia. “Tudo que tive que fazer para conseguir Aretha e Ray Charles foi ligar e perguntar: querem um trabalho?”, explica, em entrevista à revista Esquire.
Mas por muito, tipo assim, MUITO pouco, a cantora não fica de fora, já que o estúdio queria alguém mais jovem como, talvez, o grupo de soul Rose Royce. Tanto o cineasta quanto os produtores bateram o pé e o resto é história. Foi aí que ela se tornou a Sra. Murphy, que canta Think em um momento absolutamente icônico enquanto tenta impedir que o marido, Matt “Guitar” Murphy, ex-guitarrista, seja recrutado para tocar ao lado dos Blues Brothers.
Por mais que este tenha sido seu único papel no cinema (reprisado, em 1998, na continuação do filme, agora cantando uma versão de Respect), não dá pra negar que foi um sucesso e ajudou a alavancar, mais uma vez, a sua carreira. Mas, ainda assim, está longe de ser a única participação efetiva de Aretha na Sétima Arte, já que não foram raras as vezes em que sua voz se tornou elemento efetivo de uma cena, quase como um personagem, embalando uma trama ao fazer uso daquele PODER ao qual a gente se referiu no começo deste texto.
Uma canção que virou um hino, talvez até mesmo um manifesto, do movimento feminista, Respect ecoa de dentro da barraca do Tenente Dan quando Forrest Gump, ainda um soldado em pleno Vietnã, conhece o homem que vai ter uma importância fundamental em sua vida. Pois é. Pense agora na letra e no quanto ela funciona aqui: What you want / Baby, I got it / What you need / Do you know I got it. A premissa do relacionamento entre eles está claríssima desde já, cortesia de Aretha Franklin.
A mesma que arrepia quando canta Someday We’ll All Be Free, uma versão do clássico de Donny Hathaway para o filme Malcolm X, de 1992, dirigido por Spike Lee. E o que era uma música originalmente escrita por Edward Howard justamente para retratar o período mental problemático de Hathaway se tornou igualmente um hino, só que da luta pelos direitos dos negros. “Lay your dreams right up to the sky / Sing your greatest song / And you’ll keep going, going on”, diz a letra, com um significado renovado e na voz de uma mulher que nunca teve medo de soar política, que se posicionava, que apoiava os Panteras Negras e inclusive chegou a viajar ao lado de Martin Luther King.
Quem parece gostar bastante de Aretha Franklin, aliás, é o diretor Martin Scorsese. Em sua obra prima Os Bons Companheiros, de 1990, ele fez uma utilização bastante interessante (e a favor do storytelling) das canções da trilha sonora — e foram MUITAS, todas sendo tocadas apenas ao longo das épocas em que foram originalmente lançadas (se a cena se passava nos anos 70, apenas faixas que podiam de fato ser ouvidas naquela década eram tocadas). Baby I Love You, na voz de Aretha, toca no apartamento de Janice Rossi (Gina Mastrogiacomo), pouco antes de Spider (Michael Imperioli) ser apresentado num jogo de pôquer e dando a introdução certa pro que viria a seguir, quando Tommy (Joe Pesci) o mata. Os personagens estão se sentindo o máximo, no topo do mundo, e é este EXATAMENTE o clima que a voz da cantora ajuda a construir, ainda que pareça surreal que ela sirva de trilha para sangue e pólvora.
Scorsese revisitaria Aretha Franklin um ano depois, mais uma vez justapondo seu momento mais doce e delicado com Do Right Woman, Do Right Man em outra sequência aflitiva, agora em Cabo do Medo. “Tá ouvindo esta música?”, diz o psicopata Max Cady, vivido por Robert De Niro, para a jovem Juliette Lewis, antes de dar o play no aparelho de som e deixar Aretha brilhar. “You can trust in me, because I’m the Do Right Man”, completa o monstro, que inverte completamente a intenção da canção e a transforma, em sua sutileza, numa ameaça. É predador assoprando antes de dar a mordida e cravar as presas.
E aí, mais recentemente, nós temos One Step Ahead tocando lindamente em Moonlight, quando Chiron (Trevante Rhodes) enfim decide reencontrar seu antigo amigo depois de muitos anos de separação. O hip-hop musculoso, barulhento e agressivo que ajuda a compor a aparência agressiva do sujeito se transforma e se deixa transparecer vulnerabilidade na melodia delicada de Aretha, que ajuda a dar o clima do restaurante de comida caseira de Kevin (André Holland) e embala o jantar entre os dois, uma virada tocante na trama.
Uma única voz. Inúmeras sensações. Poucas conseguem. Aretha não só conseguia como dava aula no assunto. A Rainha vai fazer falta. DEMAIS.