Ring: O Chamado completa 20 anos e, não só deu origem ao fenômeno do J-Horror e seus remakes americanos, como desgraçou de medo toda uma geração
Nada, absolutamente nada se compara a experiência assustadora de ver Sadako saindo da televisão e o close em seu olho revirado, da primeira vez que se assiste Ring: O Chamado, ou simplesmente Ringu — que nesta quarta-feira, 31 de janeiro, completa 20 anos de seu lançamento na Terra do Sol Nascente.
Os sete dias que mudaram para sempre a cultura pop japonesa foi não só responsável pela maior bilheteria de um filme de terror na história do Japão — faturou 1 bilhão de ienes, algo em torno de 9 milhões de dólares — como pela origem do subgênero conhecido como J-Horror e a explosão de um sem número de produções no final dos anos 90 até meados dos anos 2000, e por conseguinte, sua devida chegada ao ocidente, assim como a proliferação dos famigerados remakes americanos de praticamente todos os filmes nipônicos de terror de sucesso.
Baseado no livro de Kôji Suzuki, uma espécie de Stephen King oriental, na verdade Ring: O Chamado NÃO foi a primeira empreitada transmídia de sua obra, publicada em 1991. Três anos antes, em 1995, Ring: Kanzenban foi lançado direto para a televisão, mas foi um verdadeiro fiasco e gerou notoriedade igual a zero. Foi só com o envolvimento do produtor Takashige Ichise, uma espécie de padrinho do J-Horror, que resolveu levar a história para os cinemas e convidou seu parça Hideo Nakata para a direção, que emergiu do fundo do poço a pedra angular do gênero.
O trágico e macabro enredo familiar da menina Sadako Yamamura, com seus longos cabelos compridos negros escorridos pelo rosto, que prometia matar em sete dias aquele que assistisse a uma fita VHS contendo suas impressões mentais e não a exibisse para outro pobre diabo, surgiu para Suzuki pela inspiração de uma história real.
Chizuko Mifune foi uma mulher nascida em 1886 na cidade de Kumamoto, cujos rumores que circulavam na boca pequena diziam que possuía poderes de clarividência. O respeitável Dr. Tomokichi Fukurai, professor assistente de psicologia na Universidade de Tóquio e notório pesquisador da parapsicologia, descobriu o caso de Mifune e resolveu estudá-la, convencido de que a moçoila era, de fato, dotada de poderes paranormais. Só que após uma demonstração ocorrida em 1901, ele descobriu que a moça era na real uma charlatã. DEFENESTRADA pela sociedade, ela acabou cometendo suicídio após uma ingestão de veneno, morrendo com apenas 25 anos.
Qualquer semelhança com o drama da mãe de Sadako, Shizuko Yamamura, não é mera coincidência.
Já a icônica personagem, por sua vez, é fruto da mistura das próprias lendas japonesas, altamente influenciadas pela religião budista e xintoísta, passadas de gerações a gerações de distintas formas, desde contos sobrenaturais orais até dramatizações no próprio teatro Kabuki. A folclórica história de fantasmas Banchō Sarayashik, ou em livre tradução, “A Mansão do Prato em Banchō” foi uma das lendas que serviu de base para a construção do mito de Sadako.
Segundo a versão popular, a história de Okiku e os Nove Pratos trazia uma bela jovem chamada Okiku, que trabalhava como serva para o samurai Aoyama Tessan. Seu violento e temperamental lorde era profundamente apaixonado pela menina, que nunca aceitou suas investidas. Uma das incumbências da criada era cuidar de dez preciosos pratos feitos de porcelana de Delft.
Certo dia o sujeito inventou um plano NEFASTO para tentar conseguir o amor da moça à força: esconder um dos valiosos pratos para que Okiku fosse responsabilizada, e o castigo para tal afronta seria pagar com a vida... a não ser que ela finalmente aceitasse ser amante de Aoyama. Só que sua integridade foi incorruptível e a proposta recusada. Sendo assim, o samurai espumando em ódio pela rejeição, desembainhou a sua espada e matou Okiku, lançando seu corpo sem vida dentro de um poço. Ela se transformou então em um espírito vingativo que surge de dentro do poço, atormentando o lorde ao contar até nove, e então dando um terrível grito para representar o décimo prato escondido.
Aproveitando destes elementos, Sadako personifica a presença do fantasma vingador, detentora de uma força implacável, outrora vítima de um assassinato. Diferente dos clichês do cinema de terror do lado de cá, encontrar seu corpo, recitar um cântico, chamar um exorcista, uma tia avó que já passou por aquela situação, encontrar um livro sobre o assunto em uma antiga biblioteca ou simplesmente tentar ouvir e entender seus desejos, não será o suficiente para impedir o yürei — nome dado à essas figuras folclóricas análogas às lendas ocidentais de fantasmas — entidade maligna muito mais poderosa e longe de qualquer alcance da nossa compreensão mundana. Sadako é a epítome moderna desse conceito.
Não foi apenas nas entrelinhas que a ideia de levar adiante a cultura herdada do Japão Feudal que o filme de Nakata cumpriu seu papel sociocultural. Assim como uma tendência do próprio subgênero, o longa também traz à tona as preocupações dos japoneses com a colisão de suas tradições com a modernidade — por isso a ideia de utilizar uma fita VHS como veículo de transmissão de sua fúria maldita. E vale lembrar que durante os anos 80 e 90, vivemos o boom do videocassete, maciçamente presente em grande parte das residências japonesas, enquanto o próprio país asiático se transformava em uma potência dos eletrônicos.
Segundo Colette Balmain em seu livro Introduction to Japanese Horror Film, a figura de Sadako, usando o arquétipo vingativo do yürei expressada por um artefato moderno, no caso a fita, encarna as ansiedades contemporâneas, na medida em que a tecnologia reafirma o seu passado reprimido. A sobrevivência dos personagens depende da replicação do vídeo, e à medida que a tecnologia se dissemina – como um vírus, em todo o Japão – torna toda sua sociedade consumista uma vítima da dependência tecnológica, em um círculo sem fim. Outros J-Horror como Ligação Perdida, de Takashi Miike, e Kairo, de Kiyoshi Kurosawa, se aproveitam do mesmo subterfúgio, dessa vez usando telefones celulares e a Internet, respectivamente, como metáforas dessa fobia digital do novo milênio.
Também temos em Ring: O Chamado uma camada sobre a independência feminina e revolta à cultura do patriarcado, intrinsecamente arraigada na sociedade machista japonesa, fruto de anos de tradições milenares. A personagem Reiko Asakawa, jornalista tia da garota que morreu após assistir à fita em um chalé com os amigos e receber a famigerada ligação, resolve ir fundo na investigação do acontecido, paralelo a sua busca de identidade como mulher independente, que se dedica a sua carreira, enquanto ao mesmo tempo é uma mãe que negligencia seu “natural” papel de bela, recatada e do lar, colocando de lado até a criação de seu próprio filho, Yôichi.
Fato é que a porteira que Ring: O Chamado abriu fez com que uma enxurrada de filmes orientais fossem produzidos, alguns excelentes, outros só mais do mesmo, e adentrassem no mercado do outro lado do Oceano Pacífico – inclusive aqui no Brasil, que também viveu lá sua febre dos filmes de terror asiáticos até meados da década passada, muitos lançados em DVD. E, não obstante, originou a famosíssima versão hollywoodiana de Gore Verbinski, O Chamado, lançada em 2002 e estrelada por Naomi Watts, que faturou 250 milhões de dólares no mundo todo, colocou Samara Morgan, prima yankee e popular da Sadako, no panteão dos principais personagens do gênero e foi, sem dúvida alguma, um dos filmes de terror de TODA UMA GERAÇÃO.
Vinte anos depois, o conceito de uma fita de videocassete amaldiçoada pode parecer extremamente datado e completamente fora da realidade dos millennials, mas tanto Sadako, quanto Samara, conseguiram meter medo, mas MUITO MEDO numa GALERA, causando um verdadeiro desgraçamento em muita gente que, provavelmente até hoje, não assiste mais a filme de terror, traumatizados pela sua aterrorizante – e emblemática – saída para fora da televisão se arrastando.