Beck, Kanye, Beyoncé e a fina arte de ser idiota | JUDAO.com.br

Porque o problema não é invadir o palco. Ou fazer graça. Mas sim disparar um caminhão de merda e ainda querer que o mundo acredite que você é o dono da verdade. Sim, Kanye, estou falando com você.

Foi legal demais ver o Paul McCartney batendo cabeça durante o show do AC/DC ou a Madonna dando uma lição de música pop para todas as aspirantes a divas ali presentes. Mas nenhum momento da cerimônia do Grammy realizada neste domingo (08) — que no geral foi como de costume: enorme, arrastada e chata pra cacete — foi tão marcante quanto a “quase” invasão do palco realizada por Kanye West. E esta cena foi marcante pelos motivos errados, você deve bem imaginar.

Beck estava recebendo o prêmio de “melhor álbum do ano” por Morning Phase e lá veio o Kanye. O rapper estava recriando a cena do VMA de 2009, quando arrancou o microfone das mãos de Taylor Swift enquanto ela recebia o prêmio de melhor clipe feminino e fez um discurso sobre como a Beyoncé merecia a honraria. No Grammy, tudo começou meio tenso, mas West não completou o percurso, deu meia-volta e saiu com um sorrisinho. Beck até pediu pro rapper ficar e tal. A plateia desabou em gargalhadas, achando que aquilo era uma piadinha. Ao longo da festa, ele ainda foi fotografado apertando a mão da Taylor Swift e tal. Tudo fofo.

Piadinha? Pffffff. Passou longe. Fofo é meu pau de óculos.

Assim que a festança acabou, em pleno tapete vermelho e acompanhado pela mulher Kim Kardashian, Kanye soltou o verbo e mostrou o seu lado mais nojento. “Beck precisa respeitar a arte e deveria ter dado seu prêmio para Beyoncé”, disparou para as câmeras do canal E!. De novo a Beyoncé. “Estamos cansados disso, porque quando você continua diminuindo a arte e não respeita o talento das pessoas que realizam feitos monumentais na música, você está sendo desrespeitoso com a inspiração”. Estava realmente puto da vida e disse que só não tomou novamente o microfone para um novo discurso porque pensou em sua mulher, em sua filha e em sua linha de roupas (????).

Mais tarde, quando soube do que Kanye disse, Beck até brincou, disse ter ficado surpreso, que achava que Beyoncé ia ganhar. “Não dá para agradar todo mundo, cara”, confessou à revista US Magazine. “Eu ainda o amo e acho que ele é um gênio”.

Eu poderia ficar aqui discutindo o quanto chega a ser asqueroso ver Kanye puxar mais uma vez o saco da Sra.Jay-Z, muito provavelmente em respeito ao todo-poderoso do rap norte-americano, pendurado nas bolas do sujeito como toda uma geração de rappers ainda insiste em fazer. Mas não vou enveredar por este lado. O que me incomodou profundamente nesta história foi ouvir Kanye falando em “respeitar a arte”. Caralho. Isso doeu.

Quer dizer então que Kanye Omari West é o detentor da verdade absoluta sobre o universo, não é mesmo? Porque é ele e todos aqueles ao seu lado quem define o que pode ser considerado bom ou ruim. E só porque discorda da opinião dos votantes do Grammy, então Beck não pode ser considerado arte e deve, obrigatoriamente, ignorar o próprio prêmio e entregá-lo nas mãos da sensacional Beyoncé – responsável pela insuportável e sonolenta performance que encerrou a noite, aliás?

Me chupa, Kanye.

Não sei se o senhor West se recorda, mas a dona Knowles faturou, em 2013, nada menos do que seis estatuetas no Grammy, se tornando uma das maiores vencedoras da história da premiação. Este ano, tá legal, ela lançou o seu disco autointitulado, um álbum-evento com nada menos do que dezesseis clipes simultâneos, que surpreendeu todo mundo indo parar no iTunes na calada da noite, antes de chegar às lojas físicas. Excelente estratégia. E, como música, um disco de pop divino.

Mas muitas milhas distante do que um Beck faz, sabe? E, ironicamente, muitas milhas distante do que o próprio Kanye andou fazendo recentemente com seu Yeezus, um disco que beira o experimental, que ousa ao infectar o seu rap com música eletrônica, rock, um tantinho de synthpop e até, pasmem, música clássica.

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É meu, sabia? E não da Beyoncé. Porque eu trabalhei pra caralho pra conseguir.

Beck é um sujeito quase sempre subestimado pelo mercado musical norte-americano. Multi-instrumentista, capaz de tocar cerca de 16 instrumentos, carrega uma bagagem incrível de blues, folk, soul music, rock indie, umas pitadas de punk rock garageiro. É um sujeito esquisito, que tem o gene da ousadia. Que já flertou (e bem) com o hip hop, olha só. Que às vezes erra, às vezes acerta. Mas que não tem medo de arriscar, de apostar no incerto. Que não depende de 352 compositores e produtores para chegar num diacho de uma canção (nada contra isso também, apenas uma constatação óbvia). Chega a ser, vejam, uma surpresa que o Grammy resolva premiar um camarada assim. Neste caso, uma grata surpresa.

Não quero aqui discutir o Grammy, os seus critérios de escolha, a lógica complexa de como funciona o processo de votação (que tem membros associados, membros votantes e uma obscura “junta curadora” ou algo assim). Dane-se isso, por enquanto. Se estava irritado com este esquema, com os acadêmicos do Grammy, diabos, era deles que Kanye deveria ter falado, era a eles que deveria ter reagido. E não a um colega músico. Que teve o talento reconhecido por ter lançado um disco lindo. Pelo qual ralou demais. E que merecia, sim, ser premiado. Tanto quanto a Beyoncé e suas plumas e paetês.

Nesta noite de domingo, Kanye West refletiu um dos lados menos elogiáveis do rap americano, um lado duro, preconceituoso, que não aceita o que é diferente, que se acha no centro do mundo. Um lado que eu achei que tinha ficado enterrado lá atrás, quando rap ainda era sinônimo de um sujeito carrancudo, perigoso, metido com a bandidagem. Um lado feio, teimoso e cabeça dura que alguns roqueiros também têm – em especial uma galera do metal. Um lado que, quando os nova-iorquinos do Anthrax convidaram os camaradas do Public Enemy pra dançar (ou teria sido o inverso?), caiu por terra e deu em Bring The Noise, desafiando o que rappers e roqueiros achavam que era o correto em suas rígidas cartilhas musicais.

Se desafiar, senhor West, é arte. Isso é um feito monumental no mundo da música. Mais do que se repetir indefinidamente. Goste você ou não, Kanye, seu lindo, mas o seu trabalho atual conversa muito mais com a sonoridade do Beck do que com a da Beyoncé. Não fique com medinho, titio Jay-Z não vai te dar uns tapas na bunda por isso. Ele deveria, isso sim, é te dar uma lição de como se apresenta ao vivo – afinal, em pleno palco, quando subiu para cantar a sua própria música, a voz de West estava nitidamente sob camadas e mais camadas de auto-tunes, aqueles softwares que corrigem a voz do cantor em tempo real. Assim até eu, que desafino até cantando “Parabéns pra Você”.

Morning Phase, o novo do Beck, isso é arte. Da boa. Diferente da arte que você explorou na última noite – no caso, a arte de ser idiota. Durma com isso (e com a Kim Kardashian também, o que alguns podem considerar uma dádiva e outros uma maldição. Escolha o seu lado).

Pra você, Kanye, tudo que eu tenho é uma música. Escrita por um cara branquelo e de cabelo desgrenhado que agora você vai ter chance de conhecer melhor.