A aguardada cinebiografia da banda pode não ser um BAITA filme, isso é verdade, mas cumpre bem direitinho o seu papel de mostrar os excessos e exageros do quarteto — seja isso uma coisa boa ou ruim. Mas que está tudo lá, ah, isso está!
Pelo menos umas três bandas gringas que entrevistei ao longo da carreira fizeram menções, quando comentando alguma história de bastidores pós show, aos caras do Mötley Crüe – geralmente dizendo algo como “veja, a nossa vida não é exatamente como eram as festas dos caras, às vezes tudo que a gente quer é tomar um banho relaxante e ir dormir”. Uma coisa é fato: é muito difícil uma outra banda/artista ter cristalizado de maneira tão (im)perfeita a tríade “sexo, drogas e rock n’ roll” do que este quarteto de Los Angeles, com festanças cheias de excessos regadas a nudez e cocaína geralmente antes, durante e depois dos shows.
Justamente por isso, era de esperar a verdadeira porrada que seria a adaptação cinematográfica do livro The Dirt, a biografia que o premiado Neil Strauss escreveu ao lado dos quatro integrantes da banda. Da mesma forma que rolou com o filme sobre o N.W.A., Straight Outta Compton, um soco no estômago que não tem medo de provocar, de mostrar as muitas merdas que se espalharam pelo meio do caminho, não dava pra ser um filme chapa branca. Como resultado final, de fato, The Dirt não é. Tamos falando de uma produção que tem coragem, que joga na cara o tanto de estrago que o Crüe fez não apenas em suas próprias vidas, mas também na de tanta gente que passou por seus caminhos. Isso é um bom ponto.
Mas é bom reforçar que, enquanto filme, é bom que se diga, é difícil comparar ambos — porque Jeff Tremaine, o diretor, em sua longa trajetória com as produções do Jackass, acaba sendo um cineasta mais “limitado” narrativamente.
Em muitos momentos ao longo de suas duas horas, The Dirt soa como um combo de filme dos anos 90 sobre rock + produção televisiva com orçamento limitado, com maneirismos meio Beavis & Butt-Head que um pouco mais de experiência e/ou real assinatura artística facilmente poderiam evitar. Nas mãos de um sujeito mais tarimbado, sequências como a ótima descrição filmada quase em primeira pessoa que o baterista Tommy Lee faz sobre um dia típico com a banda seriam a regra, e não a exceção. Aquele seria um caminho mais interessante, contestador, fora da caixinha e do manual básico de biografias cinematográficas de rock stars.
Isso significa que The Dirt é um filme ruim? Não. Muito pelo contrário, aliás. Quando sobem os créditos finais, você está claramente diante de uma história bem mais honesta do que aquela que vimos no filme do Queen, aliás. É claro que Tremaine fez as suas modificações cronológicas aqui e ali — vamos repetir MAIS UMA VEZ que isso não é documentário, mas sim um filme de ficção –, mas todas elas apenas ajudam a contar melhor uma história que, na essência, é exatamente aquela. Quem conhece os meandros do Crüe, sabe que aquilo tudo aconteceu... ou poderia tranquilamente ter acontecido, pelo menos.
Em resumo, The Dirt é meio que um bromance. Uma trama sobre quatro caras muito diferentes (o favorito das garotas em busca de rumo na vida, o moleque mimado pelos pais, o rebelde que fugiu de uma infância abusiva e o cara mais velho que se sente um alienígena) que acabam formando uma família, apesar de todos os pesares. Uma família inclusive no sentido de que eles ao mesmo tempo se amam e se odeiam.
A primeira metade do filme é Tremaine basicamente fazendo bom uso de sua ótima linguagem de videoclipe para apresentar quem são Nikki Sixx, Tommy Lee, Vince Neil e Mick Mars. Embora todos tenham seu espaço na trama, inclusive na ótima sacada que é a utilização de suas vozes no papel de narradores (inclusive julgando, sob um ponto de vista mais maduro, as cagadas que seus “eus” jovens protagonizaram ao longo da vida), claramente é Sixx que ocupa o papel de protagonista. Mesmo assim, vale dizer que a escolha de todos os atores principais foi certeira e a caracterização funciona direitinho — mesmo Colson Baker, aka o rapper Machine Gun Kelly, incorpora bem direitinho o jeito meio desengonçado, meio deslumbrado, do batera Lee, com uma inesperada dose de carisma.
Destaque principalmente para Iwan Rheon, de quem eu tinha pegado um bode tãããããããão grande depois daquela tenebrosa série dos Inumanos, que mal dava pra imaginar o Mick Mars que ele desenharia de um jeito tão interessante. Uma dose de mau humor, de uma carranca como face de uma luta contra as limitações do próprio corpo que se torna o contraponto com a caótica empolgação festeira e sem limites de seus jovens companheiros. Próximo dos meus quarenta anos, acho que me identifiquei mais com o Mars do que com qualquer um nesta história. ;)
E, claro, por mais incrível que possa parecer, Tony Cavalero, que faz o papel de Jack Black na série de TV da Escola do Rock, simplesmente brilha como o Ozzy Osbourne cuja turnê conjunta tornou-se palco para uma apavorante competição de excessos entre os novatos e o veterano.
É preciso dizer, no entanto, que neste começo, a necessidade de rasgar a fantasia carrega pesado nas tintas misóginas de um jeito que chega a ser incômodo. A abertura, no apartamento que os quatro dividiam antes da fama lá na região da Sunset Strip, palco de orgias sexuais e químicas sem tamanho, é até meio nojenta, a ponto de se pensar: “gente, será mesmo que eu quero ver este filme?”. Talvez fosse o objetivo, para reforçar a gigantesca quantidade de decisões equivocadas que estes quatro tomaram ao longo da vida? Talvez não houvesse outra saída para deixar claro o quanto, em diferentes níveis, eles flertaram com a escrotidão, vivendo sem limites como se cada dia fosse o último? Talvez sim. Mas valia um cuidado pra evitar “glamourizar” demais algo que hoje a gente (ainda bem) tanto discute e tenta justamente fazer diferente.
Como os músicos concederam as entrevistas para Strauss num momento em que ainda estavam lutando com as próprias sobriedades, eles sabem que muitas destas histórias podem não ter acontecido assim ou assado, com tamanha riqueza de detalhes. Então, pra evitar a patrulha da cronologia, o diretor usou um recurso perfeito: a quebra da quarta parede. Em diversos momentos, os personagens, dos quatro integrantes ao representante da gravadora que os descobriu no circuito de clubes de LA, se pegam falando com o público, questionando a veracidade de certas passagens. Como quando eles conhecem seu lendário empresário, Doc McGhee, em meio a socos e pontapés. “Na verdade, não foi assim que aconteceu”, diz Mars, explicando que o encontro foi bem mais burocrático e sem graça. “Mas gostamos de nos lembrar desta forma”.
Isso é total e completamente Mötley Crüe.
Mas então chegamos em 1h de filme, mais ou menos. E quando acontece o acidente de carro, com Vince ao volante e que vitimou o britânico Razzle, baterista da banda finlandesa Hanoi Rocks, The Dirt dá uma virada brutal. E se torna um filme sobre consequências. Porque é a partir dali que as coisas desabam de vez.
Sixx afunda de vez no vício de heroína e se transforma num companheiro de banda absolutamente insuportável, até que tem aquele já lendário momento da parada cardíaca que inspirou Kickstart My Heart; Lee não consegue manter as partes baixas guardadas dentro das calças e acaba perdendo o grande amor de sua vida; e Vince Neil vê a sua família desmoronar de todos os lados, primeiro afastando-se da filha que tanto ama, depois se vendo forçado a abandonar a banda e por último descobrindo que a sua pequena menina tem um câncer agressivo e fatal. Aliás, cabe um adendo fundamental aqui: esta jovem atriz, Kamryn Ragsdale, que faz a filha dele, é uma joia rara. O jeitinho que ela pede pra ir pra casa e depois rompe em lágrimas na cama do hospital, maluco, me fez chorar de soluçar, sem exagero. O diálogo sobre a flor, vai por mim, é pra simplesmente arrebentar o coração.
É aí que The Dirt acerta no alvo, apesar de todos os problemas. Porque além de não ter medo de escancarar o caminhão de bosta que o Crüe carregou consigo junto de uma ótima coleção de músicas, também sabe costurar bem o elo, ainda que frágil, ainda que cheio de cuspes na cara e socos no olho, que se formou entre estes quatro camaradas.
Tomara que eles tenham aprendido uma lição ou duas. E, principalmente, tomara que o cara que chega até o final do dia entenda que o passado serve pra isso aí: pra gente não necessariamente viver se arrependendo. Mas crescer. E amadurecer.
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