Produção de Jason Blum e Timor Bekmambetov é uma espécie de print screen de um dos pavores atuais dos millennials
Talvez a mais importante característica do cinema de terror seja a reflexão sobre os medos da humanidade – ou, pelo menos, de uma determinada parcela dela. O gênero sempre representou as fobias da sociedade do momento: as alegorias do comunismo, medo nuclear, invasões alienígenas, o fim do sonho americano, medo de armas biológicas e agora o pavor do outro, do fundamentalismo religioso, do extremismo político. Tudo ia mudando, tudo ia evoluindo.
Mas se a gente for falar especificamente em termos de público, quem sempre movimentou o cinema de horror foram os adolescentes. Os jovens lotaram as salas de cinema nos anos 1980 e 1990 para se deliciar com assassinos mascarados correndo atrás de campistas com hormônios em ebulição. Os adolescentes gostam de se ver na telona (é, John Hughes sabia das coisas). Eles querem ver seus desejos, questionamentos, dramas e problemas pessoais retratados nos filmes. E vale a mesma coisa para... adivinha só?... seus medos. Que hoje são outros, bem diferentes.
Amizade Desfeita (no original, Unfriended, um caso em que NÃO se deveria traduzir um título ao pé da letra!), que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta (12), é o retrato do horror da geração millennial. Esqueça os maníacos das trevas correndo por aí de motosserra na mão. Pra molecada nascida nos anos 2000, o terror é bem mais real e atende pelo nome de cyberbullying. Crystal Lake seria fichinha se comparada ao pavor que um snap fora do lugar pode causar.
A trama é baseada numa união dos casos reais de Amanda Todd, adolescente canadense que foi chantageada, intimidada, e então virtual e fisicamente agredida após o vazamento de vídeos íntimos (seu vídeo-desabafo no YouTube contando sua experiência por meio de cartões já teve mais de 11 milhões de views), e Audrie Port, californiana que se enforcou após fotos de seu estupro, cometido por três garotos enquanto estava bêbada em uma festa, serem postadas online. O filme começa justamente a partir da história da jovem Laura Barns, que cometeu suicídio depois que um vídeo no qual está bêbada e em uma situação VEXAMINOSA acaba rodando pelas redes sociais.
Um ano após o incidente com Laura, seis amigos de uma turminha do barulho estão DE BOAS conversando por Skype quando um usuário anônimo entra no chat. No início eles imaginam que seja um glitch, um troll ou até mesmo alguém que hackeou as contas da falecida Laura Barns e está praticando algum tipo de piada doentia.
Mas a coisa toda começa a degringolar quando este ser misterioso passa a controlar diversas funções em seus computadores e uma das garotas da conversa morre. Os demais jovens passam a receber ameaças da suposta “entidade cibernatural”, e são obrigados a participar de um jogo virtual, ao melhor estilo EU NUNCA, que coloca uns contra os outros ao revelar seus mais sórdidos, mesquinhos e inconsequentes segredos (insira risada macabra aqui).
Caso se recusem ou desconectem, são forçados a tirar a própria vida de maneiras escabrosas (um liquidificador, uma faca e até uma chapinha de cabelo são usados para fazer com que isso aconteça). É bem óbvio que todos eles ali estão de alguma forma envolvidos nos fatos que levaram Laura ao suicídio. Eu Sei o que vocês Fizeram no Verão Passado versão Hangout.
“Eu Sei o que vocês Fizeram no Verão Passado” versão Hangout
O primeiro ponto aqui é que justamente o que faz de Amizade Desfeita um filme tão diferente é justamente o seu ponto mais DÚBIO: sua linguagem, o jeito de contar a narrativa, já que todo o filme se passa pelo ponto de vista do MacBook de uma das personagens, que interage com o restante do elenco pelas janelas de conversa (que, no Brasil, estão totalmente em português, tanto na versão legendada quanto a dublada).
Totalmente frenético, por necessidade narrativa, com os jovens teclando, copiando, colando, abrindo e-mail, janelas de chat, ouvindo música, fazendo download de arquivos, redimensionando telas, vendo vídeos, tudo ao mesmo tempo de forma aceleradamente multifuncional, por vezes eu, dos últimos filhos da geração X, quase ficava sem fôlego. Sou tiozinho e tenho que admitir que me senti velho. Em um certo momento, me cansou.
(E para um brasileiro, não tem suspension of disbelief que faça acreditar que a internet e as respostas dos sistemas operacionais sejam tão rápidos e não travem NUNCA, mas tudo bem, segue o jogo)
Só que ao mesmo tempo em que a linguagem parece exagerada, olha só, é impossível para um fã de filmes de terror como eu não admitir que Amizade Desfeita traz um senso de frescor e inovação para aquele cinema que sempre cai nas mesmas armadilhas, adora se autocopiar e entregar mais do mesmo, principalmente em determinados subgêneros. Dá pra dizer até que ele consegue subverter dois deles com um clique só: o horror adolescente (será que foi criado aqui o cyberslasher?) e o found footage.
Aliás, falando em inovação e frescor, o diretor russo-georgiano Levan Gabriadze gravou todo o filme em um único e longo take, em tempo real, com os atores em seus próprios computadores. A produção gastou apenas 16 dias, incluindo a fotografia principal e algumas refilmagens. Tudo isso feito com dinheiro de pinga: “apenas” 1 milhão de dólares. Financiado e produzido de forma totalmente independente, fez AUÊ em festivais como o Fantasia Festival e o SXSW e a Universal Pictures acabou por comprar os direitos de distribuição.
O produtor é um velho conhecido do cinema nerd, o também russo Timur Bekmambetov, o mesmo diretor de Guardiões da Noite, O Procurado e Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros. Mas o toque de midas por trás do sucesso é mesmo de Jasom Blum. O cara está em TODAS. É tipo o Roger Corman do novo século, guardadas as devidas proporções. Sua produtora, a Blumhouse Pictures, virou especialista em pegar orçamentos ridículos, fazer filmes de terror baratos e faturar uma grana preta de bilheteria. Vejam os casos de Atividade Paranormal e Sobrenatural, por exemplo.
Amizade Desfeita é um print screen no medo dos millenials, escancarado na telona
Eu sei que vai ter uma caralhada de gente torcendo o nariz para Amizade Desfeita (teve gente que torceu até para Corrente do Mal, outro ÓTIMO terror indie adolescente, poxa vida). Tá bom, eu sei que a experiência de assisti-lo é quase como ficar no ombro do seu amigo vendo-o navegar na internet – e os atores definitivamente não são os melhores no quesito dramaturgia. Mas foda-se, a ideia não era essa. A ideia aqui é A EXPERIÊNCIA.
É indiscutível sua capacidade em falar a linguagem dos XÓVENS e colocar na roda um tema tão espinhoso e preocupante, mesmo que travestido de vingancinha sobrenatural.
E, sobretudo, goste você ou não, chega a dar gosto ver o cinema de terror se atualizando e mais uma vez fazendo aquilo que faz de melhor desde que Georges Méliès dirigiu A Mansão do Diabo em 1896: dar um print screen no medo de sua geração e colocar ali, escancarado na tela.