Nem o Vigia saberia dizer o que aconteceria se essa e outras produções tosqueiras tivessem chegado algum dia às salas de cinema…
Uma noite escura de fundo.
Câmera abre, revelando a silhueta de uma figura musculosa sentado de pernas cruzadas em uma postura zen. Os braços estão para baixo, entre as pernas. Atrás da figura, há um tipo de estrutura de metal.
Ao nos afastarmos, as luzes da cidade começam a ser vistas e depois, arranha céus... Mas eles estão acima de nós. Fugindo do quadro, como uma nave de Contatos Imediatos do Terceiro Grau. Câmera gira agora, em 180 graus... Colocando a cidade onde ela pertence... abaixo de nós. E revelando que a figura está se segurando pelas mãos em algo parecido com um fio, de pernas cruzadas e relaxando. De cabeça para baixo. Ele está usando um tipo de de roupa colada no corpo. Difícil distinguir os detalhes sob a luz do luar.
Quem é esse maluco?
Conseguiu criar uma imagem mental da cena descrita acima? Bem, essa é introdução do roteiro do inédito filme do Homem-Aranha que seria dirigido por James Cameron, quando o “Rei do Mundo” estava enrolado em uma das muitas tentativas frustradas em levar o Cabeça de Teia para os cinemas.
Beleza que hoje em dia o sobrinho de Ben e May Parker é um ícone de Hollywood, teve seis filmes lançados e gerou uma franquia bilionária. Mas a EPOPEIA cinematográfica do Escalador de Paredes durante os anos 80 e 90 enfrentou aquela mesma costumeira falta de sorte de seu protagonista, passando pelas mãos de diversos roteiristas, diretores e estúdios.
Explicando o contexto do período, foi em 1978 que Richard Donner, ao dirigir Superman: O Filme, mostrou ao mundo que era possível sim botar um sujeito voando com uma cueca vermelha por cima das calças nas telas de cinema e ainda agradar público e crítica, faturando um bom dinheiro com isso. Ou seja: não, os heróis das HQs não precisavam mais ficar confinados apenas na televisão.
Era justamente naquela mídia que o Homem-Aranha residia em suas aventuras fora das páginas dos quadrinhos. Entre 1977 e 1979 foi exibida a bisonha série The Amazing Spider-Man, que trazia a versão live-action de Peter Parker vestido em seu terno de cotoveleiras de couro e uma câmera fotográfica pendurada a tiracolo, enquanto do outro lado do mundo, em 1978, na televisão japonesa, era exibido Supaidaman, um Aranha estilo Tokusatsu, com direito até a um robô gigante pra enfrentar um exército de monstros.
No começo dos anos 80, Stan Lee tava doidinho pra levar suas criações para o cinema. Por isso, fechou um acordo com a New World Pictures, a produtora de Roger Corman, o Rei dos Filmes B (a mesma figura que dirigiria aquela versão DEFENESTRADA de Quarteto Fantástico, PENSE NISSO), mas a ideia nunca saiu do papel. Aí, quando os direitos do Teioso por lá expiraram, os primos Menahem Golan e Yoram Globus, da Cannon Films – aquela mesma cuja história cê já leu aqui – foram lá e arrebataram tudo pela merreca de US$ 225 mil mais uma porcentagem de bilheteria, em um acordo válido por cinco anos.
Excitadíssimos em produzir o primeiro filme do herói, em 1984, antes mesmo de um roteiro ser escrito ou diretor oficialmente ligado ao projeto, a dupla picareta – em uma prática muito comum no caso deles, aliás – fez um anúncio de uma página inteira na revista Variety sobre Spider-Man – The Movie, que teria produção executiva de James Galton e Joseph Calamari, respectivamente presidente e executivo da Marvel Entertainment Group.
Sabe-se lá como diabos Tobe Hooper, o diretor de O Massacre da Serra Elétrica e Poltergeist – O Fenômeno, queimadíssimo em Hollywood naquele momento de sua carreira, foi escalado para a direção. O sujeito tinha um contrato com a Cannon pra realização de três filmes, e Golan e Globus arrumaram um jeito de entubá-lo na produção, dando vida ao roteiro escrito por Leslie Stevens, criador do seriado Quinta Dimensão.
Rola até vergonha alheia esse primeiro tratamento de roteiro de Stevens mas, na trama, Peter Parker trabalhava como fotógrafo para a Zyrex Corporation, e o dono da companhia, o Dr. Zyrex (AH VÁ) realiza um experimento no pobre coitado sem ele saber, bombardeando-o com radioatividade. Só que, bem, o resultado não conferiu ao jovem incauto poderes de aranha, mas sim o transformou em um híbrido de humano com aracnídeo de oito patas (!!!!).
Stan Lee ficou PUTO DA VIDA quando descobriu sobre essa ideia, exigiu que um novo roteiro fosse escrito e Hooper acabou saindo do projeto após três fracassos em sequência dirigidos para a Cannon: O Massacre da Serra Elétrica 2, Invasores de Marte e Força Sinistra. Quem assumiu o novo script foi a dupla Ted Newsom e John Brancato, que certa vez já havia impressionado “The Man” quando, determinados a entrar de vez em Hollywood, apresentaram um roteiro para um filme de Nick Fury, que mais tarde acabou também pintando em uma produção made for TV estrelada por David Hasselhoff e escrita por David S. Goyer.
Com aquele roteiro de Stevens indo parar na lata do lixo, Lee resolveu resgatar a dupla para desenvolver a nova história, muito mais próximo dos conceitos dos quadrinhos, uma vez que Newsom e Brancato eram fãs do Amigão da Vizinhança de longa data.
Ambos trouxeram um roteiro que trazia o Dr. Octopus como vilão e vários personagens como Flash Thompson, J. Jonah Jameson (que seria interpretado por Stan Lee em pessoa) e, vejam só, Liz Allan como par romântico. Estava lá até a famosa apresentação de Peter num ringue de LUTINHA, com seus poderes recém adquiridos em busca de fama e fortuna, enfrentando ninguém menos que Hulk Hogan. O grand finale envolveria uma batalha entre o Aranha e o Oquinho em um prédio da Empire State University que flutuava sobre Manhattan por conta de uma arma gravitacional inventada pelo FASCÍNORA. WOW!
Foi com esse texto, contendo um toque pessoal do próprio Stan Lee, que o filme entrou em pré-produção na Itália, com Galton e Calamari como produtores e Joseph Zito como diretor, credenciado ao cargo após ter dirigido para os primos Golan e Globus dois sucessos do estúdio: Braddock – O Super Comando e Invasão USA. O dublê Scott Leva foi escolhido para o papel do Aranha, que chegou até a fazer algumas fotos de divulgação vestindo o uniforme azul e vermelho, usadas inclusive como capa de The Amazing Spider-Man # 262, de Março de 1985, o que deixou os fãs em POLVOROSA.
O problema é que a história que encantara Lee e Galton (que, em uma carta datada de dezembro de 85, enviada a Cannon do escritório da Marvel em Nova York, atestava ser “soberba”, ao mesmo tempo que descia o sarrafo na versão do filme do Capitão América a ser dirigido por Michael Winner, o mesmo de Desejo de Matar, dizendo ser “horrivelmente sangrento”) não agradava nem um pouco Menahem Golan, zero familiarizado com o personagem, incapaz de conceber o fato do protagonista do filme ser aquele perdedor nato que todos adoramos.
Como resultado dessa queda de braço, Newsom e Brancato foram substituídos por Barney Cohen, que escrevera Sexta-Feira 13 Parte IV: O Capítulo Final, dirigido pelo próprio Zito. Cohen manteve boa parte da estrutura do roteiro anterior e entregou sua versão em Abril de 1986, no qual a principal mudança seria que Octopus teria um capanga chamado Weiner, que durante um roubo mataria o Tio Ben, conectando ainda mais herói e vilão.
O problema era que ainda assim ele não conseguia entender a dinâmica do personagem “gente como a gente” que sempre foi a sua característica mais marcante. Segundo Cohen, para o israelense, o Aranha era como um jovem Superman em um uniforme diferente. “Ele não entendia a sua dualidade e era muito difícil de explicar a ele porque o Aranha era auto-depreciativo, porque uma lata de lixo cai em sua cabeça, porque ele às vezes se balança na teia e acaba aterrissando no lugar errado”, afirmou, em entrevista pra Empire. “Ele simplesmente não entendia de jeito nenhum!”.
Bom, essa versão do roteiro durou apenas 20 dias, que foi o tempo de Golan resolver ele próprio dar seus pitacos, usando o pseudônimo de Joseph Goldman, retratando um Peter Parker mais violento, tipo um Charles Bronson, a ponto de espancar Flash Thompson na rua só por olhar torto para uma garota.
Nesse INTERIM, a Cannon começou a entrar em um caminho financeiro perigoso por conta das suas loucuras NABABESCAS, do tipo pagar 15 milhões de dólares de cachê para Sylvester Stallone estrelar Falcão – O Campeão dos Campeões. O que se seguiu foi um corte pela metade no orçamento original de 20 milhões de verdinhas, sendo que 1,5 já haviam sido gastos na pré-produção e efeitos especiais. Zito foi enfático ao dizer que com 10 milhões seria impossível fazer um filme do Homem-Aranha e resolveu pular fora do barco.
Em 1987, além de Falcão, a Cannon havia jogado muito dinheiro pela janela com as buchas Superman IV – Em Busca da Paz e Mestres do Universo, dois fracassos retumbantes de bilheteria que praticamente levaram a combalida produtora à BANCARROTA. Mas Menahem não queria largar o osso e, no ano seguinte, decidiu que o filme do Aranha sairia de qualquer jeito.
Agora concebida como uma produção de baixíssimo orçamento e sendo anunciada para o Natal de 1989, era a hora e a vez de Albert Pyun, o diretor de Cyborg – O Vingador do Futuro, aquele com Van Damme, ser escolhido para estar atrás das câmeras, num roteiro escrito por Michael Paul (e retoques de Shepard Goldman, roteirista de Salsa – O Filme Quente – GENTE, SÓ MELHORA!) que não poderia estar anos luz mais distante do primeiro rascunho de Newson/Brancato.
A bizarrice da vez era o vilão Night Ghoul, um híbrido entre humano e vampiro criado por meio de manipulação genética, que tinha como missão vingar a morte de um grupo de cientistas que havia sido brutalmente assassinado, tudo isso em um roteiro absurdamente violento e sangrento. Nada feito, não passou de novo, e o jeitinho foi contratar OUTRO roteirista, Ethan Whiley (de A Casa do Espanto), para escrever uma película que custasse no máximo cinco milhões, e que deveria entrar em produção o mais rápido possível, uma vez que a Cannon estava prestes a perder os direitos.
Instruído a não usar NENHUM dos inimigos dos quadrinhos (mesmo podendo usar outros personagens como o Tio Ben e a Tia May, vai entender), coube a Whiley inventar um antagonista do zero, que seria um cientista (sempre eles!) paraplégico, de quem Peter Parker era pupilo, trabalhando em uma pesquisa genética na tentativa de recuperar os movimentos da perna, desenvolvendo um perigoso soro que testa em si mesmo, transformando-o em uma mistura de homem e escorpião. Se alguém aí leu “Lagarto”, sim, faz sentido.
O prego no caixão veio quando a Mattel rescindiu o contrato com a produtora, devido tanto ao resultado desastroso do filme do He-Man quanto à sua escabrosa situação financeira, fazendo com que Spider-Man – The Movie, que seria gravado em back 2 back com Mestres do Universo 2 por Pyun, fosse cancelado. Não demorou nada para a Cannon fechar as portas logo depois.
Mas se você pensa que o infortúnio do nosso herói do Queens terminou por aí, ledo engano. Golan formou a 21st Century Films, com a proposta de trazer de volta os “anos dourados” da Cannon, e renegociou os direitos do Aranha, que expirariam em agosto de 1990. Menahem colocou Frank LaLoggia, diretor de A Dama de Branco, para escrever o novo roteiro, depois substituído por Neil Ruttenberg, de Deathstalker II – Duelo de Titãs.
Mas foi no festival de Cannes daquele ano que por MUITO pouco o primeiro filme do Homem-Aranha não foi dirigido por James Cameron...
Mario Kassar e Peter Hoffman, os manda-chuvas da Carolco, produtora responsável por Instinto Selvagem, Rambo II: A Missão, O Exterminador do Futuro 2 – O Julgamento Final e O Vingador do Futuro, se encontraram com Golan e o convenceram a financiar um filme do Cabeça de Teia com orçamento de 15 milhões de dólares para a 21st Century Films, com Golan embolsando um milhão de dólares e levando o crédito como produtor do filme, mesmo com toda a má fama que o sujeito havia conquistado com suas presepadas no comando da Cannon Films.
O homem certo para finalmente dar ao herói uma versão digna nas telas grandes era Cameron, que embolsou três milhões de dólares pelo trabalho e exigiu uma série de imposições contratuais, como controle criativo total e aprovação final de todos os créditos que entrariam no filme, já deixando bem claro que o nome de Golan, o sujeito que há seis anos lutava para o Aranha escalar Hollywood, não apareceria de jeito nenhum.
E num é que o roteiro de Cameron também não era NADA fiel com sua contraparte dos quadrinhos? Peter é picado por uma aranha que havia feito seu desjejum de uma mosca geneticamente alterada durante uma excursão de campo do colégio e a dupla de vilões da vez seria uma versão do Electro e seu capanga, o Homem-Areia. Além disso, Peter não teria seus lançadores, e sim teias orgânicas (conceito adotado por Sam Raimi em sua trilogia) e era um sujeito que costumava xingar e falar palavrões quando emputecido. Tinha até uma cena de sexo entre ele e Mary Jane na ponte do Brooklyn, que não agradou em nada os executivos que queriam uma “aventura para a família”.
Esta seria aquela tal versão com Leonardo DiCaprio no papel de Peter Parker, que chegou a cogitar ninguém menos do que Arnold Schwarzenneger como o Doutor Octopus, além de Lance Henricksen vivendo Electro e Michael Biehn encarnando o Homem-Aranha. Para ser a Tia May, o nome de Maggie Smith foi fortemente ventilado.
O Homem-Aranha de James Cameron foi só mais um que entrou para “O Que Aconteceria Se...” e, em 1993, Golan entrou com um processo contra a Carolco. Tentando se livrar da sua própria falência, eis que o estúdio vendeu os direitos para a MGM, pretexto para acontecer uma surra de processos a seguir. Para você ter uma ideia do samba da aranha-doida, no começo de 1994, a Carolco processou a Viacom e a Tri-Star, detentoras dos direitos para distribuição na televisão e home-video, que lançaram um “contra-processo” não só contra a Carolco, mas também contra a 21st Century Films e até a própria Marvel. A MGM foi comprada pela Pathé Group que, acreditando ser detentora dos direitos por conseguinte, mandou ver e processou Golan, a 21st Century Films, Tri-Star, Viacom e a Marvel.
A treta se tornou impossível de resolver quando a 21st Century Films, a Carolco e a Casa das Ideias abriram falência, e somente em março de 1999, John Calley, chefão da Sony, e Eric Ellenbogen e Avi Arad da Marvel, apertaram as mãos e fecharam um acordo que resultou no Homem-Aranha de Sam Raimi, com Tobey Maguire dando vida ao Peter Parker, com um orçamento parrudo de 140 milhões de dólares e faturando impressionantes 821 milhões nas bilheterias do mundo todo, um recorde absoluto para os filmes adaptados dos quadrinhos até então.
Parece que o velho azar do Parker acabou dando um pouquinho de sorte, afinal de contas.