A compra do conglomerado de mídia pela operadora de telefonia e TV por assinatura mostra que distribuição não é nada sem conteúdo, e conteúdo não é nada se ninguém estiver vendo
Oitenta e cinco bilhões e quatrocentos milhões de dólares ou, convertendo, cerca de duzentos e setenta bilhões de reais. É isso o que a AT&T pagará para comprar o grupo Time Warner, um conglomerado de mídia que tem sob seu guarda-chuva Warner Bros. Pictures, DC Entertainment, canais pagos como HBO, TNT, CNN e Cartoon Network, e diversos outros negócios no ramo da mídia e do entretenimento.
São quase 22 Marvels / LucasFilm e cinco WhatsApps e meio. :D
O negócio foi anunciado em comunicado oficial da AT&T neste sábado (22) e, de acordo com o Los Angeles Times, numa call com investidores que rolou ainda no sábado, Randall Stephenson, presidente da operadora, garantiu que manterá os atuais responsáveis por cada um dos negócios do grupo. Ou seja, Kevin Tsujihara continuará liderando a Warner Bros. Entertainment (que inclui a DC e a WB Pictures), Richard Plepler deve continuar como presidente da HBO e John Martin provavelmente ainda será o responsável pelos outros canais pagos via Turner. E o que talvez mais importe pra gente aqui, a recente promoção de Geoff Johns ao cargo de vice-presidente da DC Entertainment, com a responsabilidade de liderar os DC Films, continuará valendo.
No ano passado surgiu a informação de que a 21st Century Fox, dos canais Fox e do estúdio 20th Century Fox, tentou comprar o grupo concorrente por US$ 80 bilhões, mas não houve acordo. Também não é a primeira vez que a Time Warner é comprada: em 2000, a America Online (sim, a AOL) adquiriu o mesmo conglomerado, que foi chamado de AOL Time Warner por algum tempo.
Porém, o atual momento, o comprador e o formato de como a aquisição foi feita pela AT&T chamam a atenção. E essa motivação tem um grande nome: conteúdo.
“Essa é a união perfeita de duas companhias com forças complementares, que pode trazer uma nova abordagem sobre como a indústria da mídia e da comunicação trabalha para os consumidores, criadores de conteúdo, distribuidores e anunciantes”, disse Stephenson em comunicado oficial. “Conteúdo premium sempre vence. Essa é a verdade na tela grande, na TV e agora está se provando verdade na tela do celular. Nós temos o melhor conteúdo premium do mundo com todos os canais para entregá-lo em qualquer tela. Uma grande dor do consumidor é pagar pelo conteúdo uma vez e não conseguir acessá-lo de qualquer dispositivo, de qualquer lugar. Nosso objetivo é resolver isso”.
Conteúdo sempre vence. Essa é a verdade na tela grande, na TV e agora está se provando verdade na tela do celular
“Tá, beleza. Uma operadora de celular comprou a Mulher-Maravilha e o Pernalonga. Legal”, pode pensar o leitor um pouco mais desinteressado. Bom, não é SÓ isso. É uma consolidação histórica, que vai muito além e que pretende criar um dinossauro que, pela primeira vez, consiga se movimentar rapidamente nesse mundo que muda a cada instante. Agora, se eles vão conseguir, é outra história.
A AT&T é a maior operadora de telefonia celular dos EUA em número de assinantes, voltando a superar a Verizon nesse setor recentemente. No mercado de banda larga, a empresa é a terceira maior do país, não muito atrás de Comcast e Charter. Já a DirecTV, que faz parte do grupo de telefonia desde o ano passado, é a segunda maior operadora de TV paga dos STATES, também pouco atrás da Comcast. No entanto, juntando com o outro serviço do tipo no conglomerado, o AT&T U-verse, eles superam facilmente os concorrentes.
Só que eles sabem que não continuará assim por muito tempo. O fenômeno de CORTAR O CABO está forte nos EUA, com muita gente trocando o serviço de TV paga por assinaturas de plataformas na web como Netflix, Amazon e Hulu, entre outros, que são bem mais baratos. Estima-se que a DirecTV esteja perdendo cerca de 100 mil assinantes a cada trimestre por conta desse comportamento. Especialistas de mercado dizem que 20 milhões de americanos não assinam qualquer pacote de TV paga atualmente, praticamente o mesmo número de assinantes que a DirecTV tem.
Isso tudo falando apenas de um só país, há ainda o resto do mundo — com a web acabando com qualquer barreira de território.
Nesse universo, operadora de internet vai se tornando uma COMMODITY. Não importa mais o combo, os serviços agregados ou a marca, mas sim quem fornece o maior número de gigabytes pelo menor preço e melhor qualidade, permitindo fazer o que quiser na GRANDE REDE, inclusive assistir a séries e filmes. Um tipo de comportamento que diminui margens de lucro ao provocar uma guerra de preços, o que é o grande temor de qualquer executivo.
A AT&T já vinha buscando alternativas para se reposicionar. Em março deste ano eles anunciaram o DirecTV Now, um serviço que permitirá ver a programação dos canais sem qualquer tipo de cabo ou a usual antena, sendo tudo via internet. O lançamento está previsto para o final deste ano. “É uma TV paga via app”, definiu Tony Goncalves, VP de estratégia e desenvolvimento da operadora, para o Business Insider. O modelo de negócio é um pouco diferente dos concorrentes já estalecidos, mas sabe o que eles querem ter lá? Conteúdo exclusivo. “Isso é muito crucial para o que está por ai”, afirmou Goncalves. Por “estar por aí” entenda como “Netflix e Amazon”.
Por outro lado, a Time Warner ainda engatinha nesse mundo de distribuição via internet. Basicamente, a empresa faz acordos para posicionar seus conteúdos em serviços de streaming de terceiros ou ainda os colocam nos canais que possuem, muitas vezes com versões “on”, “go” e “play” próprias (e que ainda dependem de assinaturas de pacotes de operadoras). A experiência mais positiva do conglomerado nesse sentido é o HBO Now, que pode ser assinado à parte, mas, como sabemos, a ideia é ter um serviço premium ainda focado nos EUA, e não algo para todo mundo assinar – como é o Netflix.
Tudo é o Netflix hoje em dia, já reparou? :)
Agora, junte tudo isso. De um dia para o outro, o DirecTV Now passa a contar com um dos maiores produtores de conteúdo do mundo, com franquias como Batman, Harry Potter, Liga da Justiça, Game of Thrones e milhares de outras, fora a existência do HBO Now, que já está funcionando e traz uma boa EXPERTISE para a operadora. Quer dizer que tudo que eles fazem será, agora, exclusivo do DirecTV Now? Não necessariamente, mas significa que alguns brinquedos dos Irmãos Warner podem ser retirados da estante e integrarem o serviço – como rolou no acordo entre Marvel e Netflix, trazendo séries ótimas.
Além de ganhar novas fontes de receita com esses conteúdos exclusivos, a Time Warner terá um streaming próprio para colocar o que faz em outras plataformas sem depender de acordos com o Netflix, por exemplo. Eles não precisam mais dividir a grana, não ao menos com gente de fora. Por isso esse acordo é bem mais interessante do que aquele que Rupert Murdoch ofereceu, via Fox, no ano passado.
“Com grande conteúdo, você pode construir serviços de vídeo realmente diferentes, seja TV tradicional, OTT [over-the-top, conteúdo via internet] ou móvel”, afirmou Randall Stephenson. “É uma abordagem integrada e nós acreditamos que é o modelo que vencerá, com o tempo”.
Agora, caberá ao Departamento de Justiça dos EUA analisar se não haverá uma concentração de mercado que seja ruim ao consumidor. É difícil saber o que vai acontecer, mas há a possibilidade deles pedirem que alguma empresa do novo grupo seja vendida, por exemplo. Além disso, Donald Trump não demorou para falar, em discurso, que vetará o negócio caso seja eleito presidente, enquanto Bernie Sanders afirmou no twitter que isso acabaria encarecendo os preços e diminuindo o poder de escolha das pessoas, de acordo com o Wall Street Journal. De qualquer forma, o que for determinado servirá de parâmetro para o que a Reuters já está chamando de “a nova consolidação da indústria da mídia” em relação aos serviços de streaming.
Agora no começo de outubro, por exemplo, rolaram rumores sobre a Disney comprar o Netflix – que foram desmentidos, mas não duvido nada que eles voltem com força no próximo ano.
Quando o negócio estiver concluído, o grupo do qual pertence o Batman poderá ter suas origens ligadas a ninguém menos que Alexander Graham Bell.
Apesar do olho no presente e no futuro, podemos dizer que esses dois são conglomerados mega antigos e que, agora, tentam manter o seu espaço. AT&T começou a sua trajetória com a Bell Telephone Company em 1877, fundada por ninguém menos que Alexander Graham Bell – o criador do telefone. Pouco depois, nos anos 1880, a empresa criou a divisão American Telephone and Thelegraph Company, responsável por criar linhas de longa distância. A nova companhia cresceu tanto que comprou a anterior, colocando a AT&T como a líder de um monopólio nacional dos telefones, chamado de Bell System.
A festa acabou na primeira metade dos anos 1980, quando o Departamento de Justiça dos EUA finalmente percebeu que o monopólio era ruim para o consumidor e o Bell System foi desfeito, com a AT&T sendo o obrigada a vender diversas empresas do grupo. São companhias que, depois de outras fusões e aquisições, hoje atendem pelo nome de Verizon, Alcatel-Lucent e Avaya, entre outras.
Numa dessas jogadas MALUCAS do mundo dos negócios dos EUA, uma dessas antigas empresas menores do monopólio, a SBC Communications, comprou a própria AT&T por US$ 16 bilhões (um WhatsApp!) em 2005. A SBC deixou de existir, assumindo o nome AT&T para o novo grupo – que ainda é o mais forte no setor de telecomunicações dos EUA.
Já a Time Warner começou a partir dos irmãos Harry, Albert, Sam e Jack (não, não eram aqueles dos Animaniacs), que, em 1904, começaram a distribuir filmes em Pittsburgh. Em 1918 eles se aventuraram a produzir longas-metragens, abrindo um estúdio em Hollywood e, em 1923, finalmente criaram de forma oficial a Warner Brothers Pictures. Com a ajuda de Rin Tin Tin e dos primeiros filmes com som, eles foram crescendo e em pouco tempo os irmãos compraram a concorrente First National, efetivamente entrando no grupo dos “Cinco Grandes Estúdios” de Hollywood, ao lado, na época, de Paramount, MGM, Universal e a Producers Distributing. Como parte do negócio, a empresa também adquiriu o seu famoso lote em Burbank, Califórnia.
As grandes movimentações rolaram mesmo a partir da década de 50. Primeiro, Jack Warner mandou comprar o estúdio Seven Arts Productions, formando a Warner Bros.-Seven Arts em 1968. Dois anos depois, numa enorme crise por conta de mudanças na regulamentação do setor, o grupo foi comprads pela Kinney National Company, um conglomerado iniciado a partir do ramo de ESTACIONAMENTOS e que tinha adquirido a DC Comics pouco antes. A nova estrutura não durou muito: em 1972, por causa de um escândalo financeiro na parte de estacionamentos e com a WB voltando a dar lucro, todos os negócios de entretenimento foram separados em um novo grupo, chamado de Warner Communications.
A partir daí a nova Warner havia se tornando uma gigante do entretenimento e, com a efetiva retomada do cinema nos anos 70 com a introdução dos blockbusters, o dinheiro passou a jorrar. Foram feitas diversas aquisições na década seguinte e, em 1989, rolou a fusão da Warner Communications com a Time Inc., a dona da revista Time e da HBO, finalmente criando a Time Warner. Em 1996 eles ainda levaram a Turner que, anos antes, havia comprado a mítica Hanna-Barbera e tinha todo o catálogo de filmes clássicos da MGM.
A Time Warner de hoje é resultado de muitas compras, vendas e fusões, criando todo um grande ACERVO de franquias e marcas.
Quando os caras estavam lá em cima, veio a AOL – turbinada pelo boom da internet na segunda metade dos anos 1990 – e comprou tudo, formando a AOL Time Warner em 2000. O negócio não deu muito certo: em pouco tempo a bolha estourou, fazendo a AOL virar PEANUTS e trazendo prejuízo para o grupo. Assim, a parte de internet, que deveria liderar a coisa toda, foi relegada a ser apenas uma divisão e o negócio voltou a se chamar Time Warner em 2003.
Estranho pensar que, naquela época, fizeram a escolha certa — só que no momento completamente errado.
Há uma curiosidade nessa última parte da história: a AOL comprou a Time Warner por US$ 165 bilhões há 17 anos, o que, pela inflação, seria US$ 226 bilhões em dinheiro de hoje. Se você somar o valor que a AT&T pagou pelo grupo com o que foi desembolsado recentemente pela Charter para comprar a ex-divisão Time Warner Cable e com o IPO da Time Inc, dá um total de US$ 166,5 bilhões. Ou seja, podemos dizer que o negócio iniciado pelos Irmãos Warner não valorizou o suficiente nem pra compensar a inflação registrada de 2000 pra cá.
Quem levantou a bola dessa comparação foi Jeff Weiner, CEO do LinkedIn, que foi comprado este ano pela Microsoft por US$ 26 bilhões. Ou seja, todo um grupo de mídia cheio de propriedades “só” vale 3,2 vezes mais que uma empresa de tecnologia com uma rede social.
E cinco aplicativos de troca de mensagens. :)
Conteúdo é importante, mas definitivamente não é aquilo que vale mais dinheiro no mundo de hoje. Infelizmente.