Em seu primeiro grande evento na DC, roteirista defende que a jornalista é muito mais do que isso — no caso, uma premiada repórter investigativa com um faro detetivesco comparável ao de caras como Arqueiro Verde e o próprio Batman
Quando Brian Michael Bendis anunciou que tava saindo da Marvel e indo pra DC, a comoção foi tamanha não apenas por tudo que fez na Casa das Ideias na última década, por ter colocado os Vingadores de volta no posto de maior superequipe da editora, por ter criado o Miles Morales e a Jessica Jones, mas também por tudo que ele poderia fazer com os icônicos semideuses da Distinta Concorrência sob sua escrita. Seria a pessoa certa para, ao lado de caras como Tom King, ajudar a humanizar um pouco mais uma trupe de superseres que, em seu Olimpo quadrinístico, ainda se distanciavam bastante da abordagem mais “pé no chão” que marca os personagens da Marvel.
E o mais importante: o primeiro trabalho de Bendis seria justamente não apenas com o maior herói da DC, mas também aquele que é a EPÍTOME do arquétipo do super-herói clássico. Um Superman com um novo status quo, que o mundo DE HOJE realmente precisa.
Só que, depois de cuidar do gibi titular do Grande S, Bendis acabou recebendo uma nova missão e caiu em suas mãos Event Leviathan, uma evento daqueles que prometem “ter severas implicações para o Universo DC”. Deixando de lado os exageros clássicos, o gibi de mesmo nome, cujo primeiro número sai em Junho, com o traço do parça de Bendis, Alex Maleev, vai extrapolar uma trama que o roteirista vinha pincelando aos poucos em Action Comics, dando umas pistas lá e outras acolá.
Pra quem não tá lá muito habituado com o mundo dos gibis ou não ligou lé com cré, o Leviathan é uma organização criminosa que o roteirista Grant Morrison criou durante sua passagem pelo gibi do Batman, culminando na chamada Corporação Batman, a tentativa de Bruce Wayne para internacionalizar o trabalho de combate ao crime do Morcegão. O Leviathan era liderado por ninguém menos do que Talia Al Ghul, filha de Ra’s Al Ghul, um dos amores da vida de Bruce e mãe de seu filho, o atual Robin, Damian Wayne. Mas, no final da jornada, ela acaba morrendo. Já sob a custódia de Bendis, o Leviathan ressurgiu recentemente, comandado por uma misteriosa mulher chamada Leone.
Até o momento, sabia-se que a trama ia incluir também outras organizações secretas da DC, como o Xeque-Mate e Spyral — aquela da qual o Asa Noturna fez parte em sua fase “Agente Grayson”. Diz a sinopse oficial da história: “Um thriller de mistério que se estende ao longo do Universo DC e atinge todos os personagens, do Batman ao Superman, do Questão a Talia Al Ghul. Uma versão renovada, mais perigosa e agressiva do Leviathan arrasa toda a competição e agora deseja moldar o mundo com sua própria visão. Será que esta nova ameaça pode ser parada...e quem está guiando estes novos agentes do caos?”. A probabilidade de que Leone seja só uma cortina de fumaça pra alguém bem maior é grande, certo?
Pois bem. Aí que, em entrevista recente à publicação inglesa TripWire, não apenas Bendis descreveu o evento como “alguém tomou todas as organizações secretas do Universo DC e construiu algo muito perigoso no lugar”, como ainda explicou que alguns dos maiores detetives da editora vão se reunir para solucionar este grande mistério. E aí que ele listou os nomes destes detetives, como Batman, Arqueiro Verde, Homem-Borracha, Caçador de Marte, Questão, Lois Lane...
Epa, epa, epa. Lois Lane? Num papo com o podcast Word Balloon, não apenas o escritor reforçou este posicionamento como ainda mandou a seguinte declaração: “nossa posição é de que Lois Lane é a mulher mais perigosa do Universo DC. Esqueçam o marido dela”.
WOW.
Pois bem, adivinha só se a declaração do roteirista já não inflamou as tochas de indignação da horda de imbecis que vez por outra desabrocham do esgoto da internet? “Ah, lá vai o Bendis novamente, este social justice warrior de sempre, maculando os meus gibizinhos queridos com política”. Disso pra pior, né?
A primeira reclamação diz respeito a colocar Lois Lane na categoria “detetive”, coisa que ela não é, pelo menos profissionalmente. Bom, vejamos, dá pra gente ser menos OBTUSO aqui, né? Lois não é uma detetive profissional, mas tampouco são Bruce Wayne e Oliver Queen, por exemplo. Desta lista, o único que foi efetivamente um investigador particular foi o Caçador de Marte, em sua identidade civil. Outro detetive icônico da DC, aliás, nem chegou a ser mencionado na lista do Bendis — no caso, o Homem-Elástico, aka Ralph Dibny, aquele que a gente já te explicou aqui que não é a mesma pessoa que o Homem-Borracha e tal.
Qual é o ponto aqui, então? Da mesma forma que Vic Sage, a identidade secreta do Questão, Lois é uma jornalista investigativa. Logo, a palavra “detetive”, como Bendis usou na frase, diz respeito à personagens que têm uma grande capacidade dedutiva, que são afiados na arte da investigação. É o caso de todos os mencionados ali, incluindo a própria Lois. Não vamos esquecer aqui: a mulher é, antes de qualquer coisa, uma profissional que tem no currículo um Prêmio Pulitzer, a mais prestigiada premiação do jornalismo no planeta.
Mas aí vem a segunda reclamação — e esta vem revestida de um fedor de machismo estrutural. Vou até repetir uma frase que li: “como diabos uma das mulheres mais burras do Universo DC pode ser considerada uma investigadora brilhante?”. O título de “mulher burra” vem do fato de que ela, em tese, nunca teria conseguido descobrir que seu colega de trabalho / interesse amoroso era o Superman, enganada apenas por um par de óculos. Olha só, muito leitor já fez esta piada na vida, muito provavelmente incluindo eu mesmo. Só que acho que a história é mais complexa do que isso aí.
Quando surgiu, em 1938, criada por Jerry Siegel & Joe Shuster, Lois era de fato o rostinho bonito que alegrava os dias de Clark Kent, a dama em perigo que ele queria resgatar, a garota que ficava de queixo caído diante daquele peitoral másculo com o S adornado. Mas o mundo mudou. E a personagem evoluiu bastante com o passar das décadas. Logo, conforme os anos passaram, Lois se tornou uma mulher moderna, independente, ambiciosa, focada em sua carreira, que não era mais apoiada no Superman como uma muleta. Ela foi desenvolvendo uma personalidade própria, um humor único, algo que foi ficando cada vez mais claro nas suas múltiplas versões no cinema e na TV, de Margot Kidder a Teri Hatcher.
E não foram poucas as fases, devidamente entremeadas com as populares Crises e seus reboots cronológicos, em que Lois não apenas desconfiou da identidade secreta do sujeito mas efetivamente também descobriu que ele era o campeão de Metrópolis. Mas é claro que, tentando manter as coisas dentro de suas caixinhas para o público eventualmente preguiçoso que lia seus gibis e não queria saber de mudanças, logo eles inventavam coisas como o Batman usando um disfarce para que Clark Kent e o Superman pudessem estar presentes no mesmo lugar e na mesma hora. Não vamos nos esquecer que os gibis de heróis foram, até bem pouco tempo, um poço de inocência — daquele tipo que às vezes era uma coisa boa mas que em outra ocasiões acabava sendo uma bela duma merda, do tipo que subestimava a inteligência do leitor.
Temos que lembrar aqui, no entanto, que NINGUÉM, e não apenas Lois, descobria que apenas uma armação preta separava Clark e Kal-El. Nem mesmo um jornalista experiente e treinado como Perry White, por exemplo, que via o cara todo santo dia no trabalho e examinava minuciosamente cada foto de Jimmy Olsen que ia parar na primeira página, sacou que seu funcionário era o Homem de Aço. E isso porque não estamos mencionando aqui que, durante anos, mesmo os investigadores supremos da DC, como Batman, Arqueiro Verde e esta galera toda aí, não sacaram que aquele repórter enxerido era o seu colega de Liga da Justiça.
Aí, claro, a gente tem que jogar um pouco da culpa disso não numa suposta burrice deste ou daquele personagem, mas na boa (?) e velha pseudociência dos gibis. Durante muitos anos, alguns roteiristas defendiam nas histórias, por exemplo, que o Superman estava sempre microvibrando em alta velocidade, da mesma forma que já vimos o Flash fazer na série de TV, fazendo com que fotos/filmagens de seu rosto estivessem levemente borradas, tornando a comparação entre ambos quase impossível. Junte a isso o fato de que ele se esconde à vista de todos, e bingo, em tese temos um disfarce perfeito, sem a necessidade de um capuz ou algo assim.
Além disso, em O Legado das Estrelas, a reinterpretação canônica da origem do herói pré-Novos 52, o roteirista Mark Waid cria uma nova camada de compreensão aqui. Clark se recusava a usar uma máscara e então sua mãe, aquela cujo nome você sabe muito bem qual é, encontrou um disfarce ideal. Além do visual mais desleixado, da postura encurvada, nervosa e desastrada, os óculos serviriam para disfarçar seus olhos. Originalmente de um tom vívido e brilhante de azul quase sobrehumano, eles teriam seu brilho refratado pelas lentes, perdendo o impacto e lhe dando um tom mais humanizado.
A explicação é bonitinha, até. Mas ainda assim, e agora você vai ficar realmente surpreso, a versão mais recente da Lois nos cinemas, a da Amy Adams que surgiu em O Homem de Aço, está longe de ser enganada. Na real, de maneira bastante inteligente, quando surgem os primeiros boatos sobre aquele superser, ainda longe de Metrópolis, ela inicia uma investigação por conta própria e saca bem quem ele é, de onde veio e por quem foi criado. Quando o cara chega na redação do Planeta Diário, a moça já sabe muito bem quem é seu novo colega de bancada e mantém o segredo por livre e espontânea vontade. Uma abordagem ainda mais interessante, precisamos admitir.
Sim, você entendeu corretamente: estou, neste momento, proposital e conscientemente, DEFENDENDO uma decisão tomada por Zack Snyder em um de seus filmes da DC. Porque o mundo, cara, dá realmente muitas voltas.