Lemonade traz um lado experimental e politizado para o pop da cantora – e pode mudar tudo que a gente sabe sobre ela musicalmente
E aí que, neste sábado (23), sem avisar ninguém, Beyoncé fez de novo e lançou seu novo disco, Lemonade, o sexto de sua discografia solo. “Um projeto conceitual baseado na jornada de todas as mulheres em busca de autoconhecimento e cura”, é como a obra é apresentada no Tidal, única ferramenta de streaming na qual dá pra ouvir a parada por enquanto (e ninguém tinha muita dúvida de que isso ia acontecer, não é mesmo? Mas você pelo menos pode baixar o disco no iTunes). E, como tem se tornado praxe na vida da cantora, Lemonade não é APENAS um disco. E seu lançamento esteve bem longe de ser algo comum.
Em 2013, na real, ela já tinha subvertido as regras de como uma superstar da música pop lança seus álbuns ao disponibilizar a íntegra do dito cujo, batizado com seu nome, primeiro no iTunes, com um vídeo produzido especialmente para cada faixa. Dessa vez, o BEYHIVE, seu SÉQUITO de fiéis seguidores, já estavam ligados que algo estava pra acontecer. As fotos que ela vinham postando com limões nas redes sociais não pareciam ser à toa.
Tudo começou com um inesperado especial para HBO, para apresentar o tal “disco visual”. Uma série de vídeos musicais estilizados, com letras fortes, pessoais e politizadas, na pegada que Beyoncé já tinha apresentado em Formation. Falando sobre relacionamentos, infidelidade, empoderamento feminino e amor, ela costurou a história de uma mulher com a qual “não se brinca”. Uma do tipo que faz uma limonada com todo o AZEDUME que a vida lhe força garganta abaixo.
São 12 canções poderosas e surpreendentes, com produção de caras como Just Blaze, Diplo e Ezra Koenig (Vampire Weekend). Mas vai com calmaí: não é um discão de pop, explosivo, cheio de efeitos, dançante. Refrão fácil, pra galera cantar e se descabelar? Passa longe. Não espere uma Crazy in Love da vida, sabe? E até meio experimental, do jeito que dá para ela ser, né? Em Lemonade, esta é uma Beyoncé que não quer fazer uma balada. Ela quer fazer um manifesto. Talvez usar a própria experiência de vida para falar da vida das mulheres negras como um todo.
Esqueça a Beyoncé diva. Com Pray You Catch Me, ela abre os trabalhos sofrida, dolorida, rasgando o peito, com violinos que te pegam pelo coração. Uma espécie de diva descontruída.
Uma surpresa incrível é Don’t Hurt Yourself, meio rock n’ roll, uma coisa meio anos 1970, com Jack White, uma voadora, um chute na cara guitarreiro que pode fazer muito roqueiro repensar o que acha da cantora. Na mesma pegada de uma Beyoncé enveredando por terrenos inesperados, Daddy Lessons é praticamente um blues com a cara de New Orleans, violão acústico que chega a flertar até com o country de raiz, no qual ela discute a relação com o próprio pai. E em Sandcastles (devidamente encaixada com a curtinha Forward, um dueto lindo com James Blake), acompanhada apenas de um piano, ela mostra que não é apenas uma cantora com um puta alcance vocal, mas que também ainda é capaz de entregar uma interpretação forte e vibrante, cheia de emoção, sem precisar se preocupar em colocar a pista de dança para bombar.
Mas aí vem o impressionante final, com a apoteótica Freedom, que tem uma pegada fortíssima de R&B e ares de Aretha Franklin, além de um sufocante discurso sobre liberdade disparado na velocidade da luz por Kendrick Lamar, que dá um ar mais espinhoso para a faixa. E, claro, Formation, que a gente já conhecia daquele clipe e da apresentação no Super Bowl na qual ela simplesmente ENGOLIU o Coldplay e causou polêmica entre os branquelos ianques com os figurinos fazendo referência aos Panteras Negras.
Gravado em New Orleans, e com trechos dirigidos por nomes conhecidos e consagrados no mundo dos videoclipes como Jonas Akerlund, Dikayl Rimmasch, Melina Matsoukas e Mark Romanek (além da própria Beyoncé), o especial trouxe participações especiais do maridão Jay-Z, da tenista Serena Williams e uma série de depoimentos de moradores locais. No momento mais intenso, enquanto a voz do ativista Malcolm X diz que “a pessoa mais sem proteção e mais negligenciada na América é a mulher negra”, as mães de jovens negros recentemente mortos pela polícia, como Michael Brown e Eric Garner, aparecem na tela com as fotos dos filhos que perderam.
Fazendo uso dos cinco estágios da perda conforme o modelo da psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross (negação, raiva, negociação, depressão, aceitação), o especial da HBO acaba sendo um complemento brutal e extremamente pessoal às letras do disco. “Eu tentei fazer de você o meu lar, mas as portas levaram direto à armadilhas”, diz ela em certo momento, no que parece ser uma referência indireta às muitas histórias que os tabloides americanos publicaram ao longo dos anos, sobre o fim de seu casamento com Jay-Z e as supostas traições do cara. “Você está me traindo?”, solta a cantora, desta vez bem mais direta. “Cara, é melhor você crescer”. Ao final, no entanto, vem um final feliz, o casal ao lado da filha, Blue Invy. “Minha avó dizia que nada que seja real de verdade pode ser ameaçado”, afirma. “O amor verdadeiro me trouxe salvação. Com cada lágrima veio a redenção e meu carrasco se tornou o meu remédio. Então nós vamos curar”.
Acredito que a Beyoncé pessoa física precisasse fazer este disco, para exorcizar seus demônios, para ficar em paz com seu próprio passado. Mas, cá entre nós, chega a ser impressionante que a Beyoncé cantora também tome esta posição, se coloque de maneira política tão incisiva num cenário que, via de regra, costuma evitar confrontos, conflitos mais diretos. Acho que, no fim das contas, este é um disco (aliás, só disco não, um projeto inteiro) que a Beyoncé cantora também precisava fazer.
Talvez Lemonade signifique uma guinada na carreira da Beyoncé. Uma que pode fazer com que ela perca parte de sua base de fãs eventuais, aqueles interessados apenas no hit do momento das paradas de sucesso. E, de fato, talvez ela esteja CAGANDO para isso. Ainda bem. ;)
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