Jordan Peele entrega um dos melhores suspenses do ano e um dos filmes mais importantes da cultura pop, além de mais um hit pra conta de Jason Blum
O horror, apesar de marginalizado por grande parte do público, acadêmicos e cinéfilos em geral, tem cumprido um papel sociopolítico e cultural muito importante – e quiçá único – desde que A Mansão do Diabo, oficialmente o primeiro filme de terror da história, fora projetado em 1869.
O gênero sempre foi o grande responsável por levar as fobias da sociedade vigente para as telas, ou pelo menos uma parcela importante e considerável dela, e tratar, tanto em suas entrelinhas como devidamente escancarados, de temas como xenofobia, alienação, consumo, comunismo, extrema direita, violência, sexismo, injustiça social, fundamentalismo religioso e racismo, tendo em Corra!, escrito e dirigido por Jordan Peele, seu mais recente, e talvez, de maior sucesso exemplo.
Isso porque o thriller de Peele, mais conhecido por sua veia humorística de seu programa Key & Peele no Comedy Central, faturou impressionantes 134 milhões de dólares na bilheteria doméstica (e mais de 200 milhões no mundo todo) — o primeiro dirigido por um negro a alcançar essa marca — sendo o segundo hit comercial da Blumhouse no ano, perdendo em arrecadação apenas para Fragmentado. Isso em tempos de racismo sistêmico, #BlackLivesMatter, as campanhas contra a violência aos negros e a chegada de Donald Trump à presidência americana. E claro, num ano em que Moonlight levou o Oscar de Melhor Filme.
Em Corra!, o diretor/roteirista se aproveitou de uma trama aos moldes Adivinha Quem Vem Para Jantar para adicionar uma pitada de suspense CALCINANTE e fazer uma crítica social, poderosa e inteligente focando no relacionamento entre Chris Washington (papel do sempre ótimo Daniel Kaluuya) e uma garota branca rica, Rose Armitage (Allison Williams). Chris vai passar um fim de semana na casa dos pais da namorada na pequena cidade natal da garota, onde viverá uma série de experiências desconfortáveis e “comportamentos estranhos” da família da moça e conhecidos, inclusive dos poucos negros com quem tromba no local, como o casal de “criados” dos Armitage – sinistros de gelar a espinha – ou o namorado de uma voluptuosa senhora ricaça durante um dos entediantes festejos anuais da família.
O termo “comportamento estranho” soa demasiadamente clichê e batido para o gênero, mas é o máximo que se pode dizer sobre o filme sem entrar no campo dos spoilers, conforme, de forma sutil e gradativa, Peele vai jogando seu protagonista em situações que em mim, homem branco parte de uma maioria opressora, já coube indignação e constrangimento, as quais nem posso imaginar tamanha gravidade no caso de quem é negro e obrigado a conviver em determinados círculos ou ocasiões sociais com essa “cara gente branca”.
A situação de Chris, que a princípio parece ser a tentativa desastrada dos pais da garota em lidar com o relacionamento da filha, começa a piorar após o convidado participar de uma sessão de hipnose com a sogra e, daí por diante, é bom o expectador, para evitar frustrações, abraçar de vez o fantástico para a sequência de plot twists que estão por vir até seu desfecho, carregado de tensão e nervosismo crescente num excelente exercício hitchcockiano de criação de atmosfera, auxiliado, e muito, pela trilha sonora de Michael Abels, com a pertinente influência de Bernard Herrmann a tiracolo, que recria em nossa psique o ambiente dos filmes clássicos de terror.
Ainda assim, bom comediante que é, Peele não oferece somente o roer de unhas ao seu público, mas também um alívio cômico muito bem-vindo para segurar um pouco a gastrite da apreensão acumulada durante o desenrolar da projeção, na figura de Rod Williams, interpretado por LilRey Howery, o agente de segurança de aeroporto melhor amigo de Chris, único a desconfiar de que há algo de errado acontecendo com o bro durante aquele pretenso perfeito final de semana. Aliás, é dele a maior cena de desafogo do filme ao substituir um final muito mais sombrio e pessimista, mas que, infelizmente, é o desfecho óbvio que passa pelas nossas cabeças ao ver o giroflex se aproximando, graças a violência estatal e preconceito crônico incrustado em nossa sociedade.
Corra!, com seu título imperativo em português, escancara ao espectador de um suposto mundo pós-racista que o problema não acabou e continua fortemente arraigado por aí, principalmente nas classes sociais mais altas, apesar de muita gente achar que, por conta dos mandatos de Barack Obama ou o sucesso de Lázaro Ramos e Taís Araújo, o racismo foi atenuado. Aquele tipo de metáfora que o terror sabe trazer à tona brilhantemente, inclusive, como alegoria da propensa inveja e mesquinharia do homem branco perante a autêntica superioridade genética e cultural do negro.
Com razão, apontado como um dos melhores filmes de 2017, Corra! vale demais o ingresso. Só é uma pena que a Universal Pictures tenha, por qualquer razão, deixado o filme pra estrear tanto tempo depois aqui no Brasil.