Não é a primeira vez que o cineasta japonês, colaborador frequente de Donald Glover e inspirado por caras como Fernando Meirelles e Darren Aronofsky, faz um clipe enfiando os dedos em diversas feridas
This is America, o clipe que dominou a internet na semana passada, é sim talvez uma obra-prima de Donald Glover, este homão da porra, combo absoluto de ator, cantor, compositor, roteirista, diretor. Mas existe uma outra mente por trás deste vídeo e suas múltiplas camadas: Hiro Murai, parceiro habitual de Glover.
Nascido no Japão mas vivendo em Los Angeles desde os nove anos de idade, onde se graduou na USC School of Cinematic Arts, ele não apenas dirigiu 13 episódios da série Atlanta, entre a temporada anterior e esta (além de atuar como produtor executivo, claro), mas também comandou outros clipes de Childish Gambino, a persona musical de Glover, como Sober, Telegraph Ave, Sweatpants e 3005.
Nenhum deles, obviamente, teve a repercussão de This is America — tanto é que, dias depois do lançamento do vídeo, o mesmo FX que exibe Atlanta tratou de correr até o diretor com um contratinho de first-look em mãos, para garantir que novos projetos de TV que ele desenvolva caiam primeiro nas mãos deles. “Quando trabalhamos juntos em alguma coisa, eu só estou tentando fazer com que o resultado seja interessante para nós e espero que o quer que isso seja se conecte com quem está assistindo”, afirmou Murai, em entrevista pra Variety.
Hiro descreve seu processo criativo com Glover como sendo algo bastante fluido e intuitivo. “Ele assumiu as rédeas criativas do conceito inicial porque, claro, sabia como a música seria e eu entrei quando ele estava fechando os últimos pedaços da canção. Mas todo o restante foi como se estivéssemos brincando de batata quente com ideias — mesmo quando a gente já estava rodando”.
No caso do diretor, ele revela duas influências bem claras: a primeira delas, aqueles últimos 20 minutos de mãe!, quando o caos se espalha pela tela e tem um monte de coisas acontecendo ao redor da Jennifer Lawrence. E a outra é nossa velha conhecida: toda a ambientação de Cidade de Deus, do brasileiro Fernando Meirelles. “Na real, foi mais sobre como colocar tudo que queríamos em cada frame e descobrir então o que queríamos enfatizar e que tom queríamos atingir”, explica ele. “Foi importante misturar a luz e os elementos sombrios para dar ao público algo para digerir e, claro, para discutir também”.
O mais foda de Hiro Murai, no entanto, é que esta não é a primeira vez que o cara enfia os dois pés no peito em clipes com fortes questões raciais porque, apesar de sua experiência com indies e roqueiros como Queens of the Stone Age, The Shins, St Vincent e até o hypado DJ David Guetta, ele tem um elo fortíssimo com a galera da música negra, inclua aí rap, soul e demais variantes — basta lembrar, por exemplo, de Never Catch Me, lançado em 2014, parceria com Steven Ellison, o rapper e produtor mais conhecido pelo nome de Flying Lotus (FlyLo).
No vídeo, que traz ainda uma participação especial dos vocais de Kendrick Lamar, vemos o funeral de dois jovens negros que, do nada, se levantam e começam a dançar, sem serem vistos por quem está velando seu corpo. Mas quando eles saem pela rua, outras crianças parecem enxergá-los. Bastante premiado entre os melhores clipes do ano por publicações como Spin, Stereogum e Pitchfork, além de levar o prêmio de “melhor fotografia” no MTV Video Music Awards, Never Catch Me é visto como uma clara alusão à morte de Michael Brown, o garoto de 17 anos brutalmente assassinado pela polícia meses antes do vídeo sair, desencadeando uma série de protestos na cidade de Ferguson, na periferia de St. Louis.
Se Never Catch Me tem um pouco do aspecto dançante de This is America, a questão de colocar outras coisas acontecendo no plano de fundo pode claramente ser vista em Black Man in a White World, do cantor inglês de soul music Michael Kiwanuka. Quando o garoto dança no meio da rua, o carro policial ultrapassa atrás dele na porrada, arrebentando outro automóvel e seguindo sem nem sequer parar pra ver o que aconteceu. Tudo isso num subúrbio típico, límpido e intocado, casinhas fofas e seus jardins com SVUs estacionados na frente. O moleque continua dançando, mas aí flutuando acima das casas, rumo às nuvens. Deu pra sacar a mensagem?
A canção, no fim das contas, é uma espécie de manifesto de Kiwanuka, uma letra ao mesmo tempo política e pessoal. “Tudo isso passa pela minha cabeça desde que eu era adolescente”, explica ele ao Irish Examiner. “Toda a coisa da diferença de cultura. Onde eu me encaixo nesta sociedade europeia branca? A cor realmente importa? Estava claro que certos tipos de discos eram comprados apenas por certos tipos de pessoas, sem cruzamentos. Eu estava no meio disso”.
Dá ainda pra destacar o combo Chum e Hive, ambas de Thebe Neruda Kgositsile, mais conhecido pelo nome de Earl Sweatshirt, integrante do coletivo de hip hop Odd Future, de Tyler The Creator. O primeiro, absolutamente sinistro, é uma espécie de David Lynch do rap, usando e abusando da esquisitice (o que é aquele cachorro com aquela caveira na cara?) pra falar sobre um pai ausente, uma série de problemas com a mãe e a dificuldade de tentar encontrar e lidar com a própria identidade.
Já em Hive, com participações especiais de Vince Staples e Casey Veggies, o conceito anterior se expande e faz uso de umas máscaras igualmente bizarras, em uma casa assustadora e sombria, numa pegada quase Donnie Darko. E aí a ideia é que ele se foque em sua própria imagem, tentando deixar claro pros críticos que quer ser alguém visto como uma ameaça — seja ao tal do “sistema”, seja ao que se pensa que o rap obviamente seria, seja ao que se espera que ELE, do alto de seus 24 anos, faça.
Em entrevista pra GQ, Murai afirma que o seu olhar criativo, cujo objetivo é sempre abraçar a estranheza da vida real, também é uma tentativa de gerar um diálogo positivo sobre o racismo nos EUA, em especial em tempos tão efervescentes e cheios de divisões.
“Nós sempre falamos sobre como obviamente ainda há aquele racismo agressivo, muito na sua cara. Mas também existe muito racismo passivo daquele tipo que, no momento, você nem percebe que está sendo racista”, afirma. “Você descreve isso como uma interação estranha que você teve, e então vê o contexto mais tarde e percebe que a raiz disso era o racismo. Eu não acho que este racismo latente é suficientemente mencionado como deveria”.
Pois é. Tal lá quanto cá.