O jogo também precisa virar pro ComiXology | JUDAO.com.br

O mercado de quadrinhos digitais pra Marvel e DC está longe de ser ruim, mas os números também mostram que a maior plataforma desse tipo para HQs precisa seguir exemplos como o do Netflix

Lá em 2012 perguntávamos aqui no JUDÃO se “o futuro era agora”, tamanha a diversidade e a facilidade de comprar gibis das grandes editoras dos EUA – e de ler tudo nos tablets, o APARATO que mais próximo consegue chegar de uma HQ física. Mais ou menos na mesma época, começaram a surgir os famosos profetas do Apocalipse. “O impresso vai acabar”, diziam.

Era óbvio que não ia acabar. E não acabou. Dá pra dizer, aliás, que hoje o mercado impresso dos Estados Unidos está na sua melhor fase em décadas. Só pra você ter uma ideia, as vendas dos gibis em papel cresceram 7% em 2014, movimentando US$ 835 milhões, de acordo com o Comichron, o ápice de um momento de ouro da indústria — que está vendendo como não vendia desde o estouro da bolha do mercado direto, em meados dos anos 90.

Enquanto isso, nas TELAS SENSÍVEIS A TOQUE, o ComiXology, maior plataforma do mercado, fechou por dois anos seguidos como o app que mais fez vendas na App Store dos EUA (fora os games). Era muita coisa. Se esses números fossem mantidos, em alguns anos o mercado online seria maior que o das lojas de tijolo, o que chamou a atenção da Amazon, que comprou o ComiXology em abril do ano passado.

ComiXology

Só que, enquanto em 2012 o crescimento do mercado de quadrinhos digitais dos States (embalado, em grande parte, pelo ComiXology) foi de 180% e em 2013 foi de 29%, em 2014 o crescimento foi de ~apenas 11%, mostrando uma desaceleração — ainda que tenha crescido quase 3 vezes mais em relação ao mercado direto de HQs, o mais comum, aquele das comic shops. Não tá ruim, longe disso, mas dá pra perceber que o digital tá se aproximando de uma consolidação, talvez mais cedo até do que era previsto no começo.

Há algumas teorias pra isso, claro. A primeira delas é que o ComiXology, depois de ser comprado pela Amazon, trocou de app para iOS e Android, não só obrigando os leitores a migrarem sua biblioteca como também perdendo a loja que existia lá dentro. Agora, pra comprar uma edição, você precisa visitar o site deles no navegador do tablet ou do computador – tudo pra não dividir dinheiro com Apple e Google. Ou, quem sabe, usar apenas o aplicativo exclusivo da sua editora preferida, já que eles ainda mantêm as vendas lá dentro. Um passo a mais, que incomoda, e quem trabalha com e-commerce sabe que a cada dificuldade que você adiciona na frente do comprador, cada clique a mais, é mais gente que desiste.

Além disso, a falta de uma vitrine acaba por não te apresentar mais novidades e lançamentos toda vez que você abre o app, o que limita a oportunidade do leitor conhecer novas HQs. No máximo, você vai ver aquelas novidades uma vez por semana, quando for no site dos caras fazer as compras. E só.

Isso limita as coisas não só pras grandes apostas das editoras mais famosas, como vira um problema pros pequenos e independentes. “No app, você não pode nem pesquisar os títulos ou colocá-los no carrinho. Você não pode nem salvar nos favoritos”, disse recentemente o autor independente Damian Wampler em seu próprio blog. “Eu não achava que isso era grande coisa até botar meus próprios quadrinhos online. Isso faz uma compra por impulso no valor de 99 cents se tornar um saco”.

Outro problema que surge é que, de acordo com dados do Statista, as vendas mundiais de tablets parecem estar mais ou menos no mesmo ritmo desde 2013, com uma leve queda do final de 2014 pra agora. Ao que parece, quem queria ter um já tem – e, mesmo entre os adeptos, não rola sempre aquela troca anual de gadgets sempre que surge um modelo novo, como é comum rolar com celulares.

Com isso, chegamos nos leitores. O fanático por gibis que queria migrar pro digital já fez isso. Foi ele que motivou os 180% de crescimento lá atrás. Esse cara já fez o investimento no tablet e agora tá de boa. Já quem continua indo toda semana na comic shop, que curte o cheiro da revistinha, esse não vai ler no ComiXology – por mais que todo gibi da Marvel venha, por exemplo, com um código pro digital. Esquece.

Se hoje o mercado digital ainda cresce mais que o físico, isso não acontece por conta do leitor tradicional. A motivação é uma nova figura, um novo perfil de consumidor — o mesmo que tem se encantado com a Spider-Gwen, com a Batgirl, que fez cosplay de Gwenpool e motivou a Marvel a dar uma HQ pra personagem mesmo depois de só ter aparecido em uma capa variante temática.

Batgirl

Também é esse novo leitor ou leitora que, por exemplo, tem feito os lançamentos dos encadernados de The Walking Dead sempre aparecerem na lista de HQs mais vendidos do New York Times (que considera apenas as livrarias), entre outros títulos como Maus e Persepolis. É ele ou ela, ainda de acordo com o NYT, que bota a versão capa dura de A Piada Mortal no Top 10 há 170 semanas, mostrando que finalmente estão conhecendo (e curtindo!) esse clássico de 1988.

São essas pessoas, que provavelmente nem sabem onde fica a comic shop mais próxima, as responsáveis por turbinar as vendas de quadrinhos em livrarias (sejam físicas ou e-commerces) dos EUA. Pra você ter uma ideia, essa parte do mercado movimentou US$ 285 milhões ano passado (quase três vezes mais que o digital) e cresceu 19%. Foram eles que puxaram pra cima toda essa brincadeira – motivados também pelo boom de adaptações no cinema e na TV.

Os indícios de que são esses mesmos leitores que tão puxando o digital aparecem quando o ComiXology divulga uma tabela das 10 HQs mais vendidas na plataforma, o que tem sido cada vez mais raro. Em março, por exemplo, as personagens femininas em Silk #1, Ms. Marvel #9-12 e Thor #4-5 dominaram as vendas de uma promoção no estilo “compre um e ganhe outro” por lá – junto com Star Wars e Darth Vader. Resumindo: os realmente empolgados eram do fandom de Tauó ou estavam lá levados pelo investimento da Casa das Ideias nas garotas.

Leaving MegalopolisOutro sinal disso apareceu na lista dos títulos mais vendidos pelo ComiXology Submit, aquela parte da plataforma dedicada aos independentes, em 2014. Leaving Megalopolis, da Gail Simone e sobre um grupo de super-heróis que defendem uma cidade mais saem fora de controle, ficou em primeiro.

O que isso quer dizer? Que o ComiXology talvez precise deixar de lado as grandes editoras e parar de acreditar que a divulgação que elas fazem dos próprios lançamentos já tá ok pra eles enquanto plataforma. Claro, é importante fazer a manutenção dos leitores dessas editoras, que já estão lá, mas é bom também se aprofundar mais no que o cara ou a menina que estão fora da comic shop querem. Mais independentes (sim, eles já estão lá, mas estão surgindo diversas plataformas com o foco neles, então é bom se diferenciar) e, principalmente, dar o próximo passo.

É um pouco daquela mudança de jogo que comentamos, outro dia, sobre o Netflix, que não quer ser uma locadora 2.0 e sim um canal 2.0. ComiXology precisa desencanar um pouco de ser a comic shop 2.0, com seu público até que clichê, pra abraçar todo mundo. Ser realmente uma Amazon dos quadrinhos digitais, com conteúdo exclusivo e, claro, uma integração maior entre as duas partes – o que não aconteceu até agora.

Pode parecer um exagero lançar gibis exclusivos, mas não é. Essa é a única forma de ter um conteúdo só seu, pra qualquer um, e um caminho pra ter uma marca realmente amada. Não ser um CAFÉ FLORESTA, mas sim um STARBUCKS, entende?

O ComiXology tem todos os dados do que realmente bomba ali dentro — incluindo, provavelmente, quanto tempo cada usuário lê as edições que possui e coisas do tipo, indo além das simples informações de vendas. Não sabemos tudo, mas, pelo que vimos até agora, imagina se eles usam todo esse conhecimento pra encomendar uma HQ de zumbis estrelada por mulheres super-poderosas que protegem uma CIDADE GÓTICA e escrita por Gail Simone, por exemplo? Exclusiva dos caras. Consegue ver o potencial? Inclusive, quando olhamos pra House of Cards, a fórmula foi justamente essa: juntar uma história britânica que fazia sucesso no Netflix com o combo ator e diretor que eram muito vistos na própria plataforma de streaming.

Até porque, vamos combinar, hoje o ComiXology está nas mãos de Marvel e DC. Se você é simplesmente uma comic shop, nada impede dos caras de, quando acabaro contrato, tirarem todo o material da plataformaquando acharem que podem fazer tudo por contra própria (a Marvel fez isso nos anos 90 com a distribuição pro mercado direto, aliás). Ou até mesmo cancelarem revistas que saem primeiro no digital e, indiretamente, são uma vantagem pro ComiXology, como a DC fez na última semana com Batman ’66 e Sensational Comics Featuring Wonder Woman.

Agora, se eles fazem o contrário, crescendo e se consolidando com títulos próprios pra galera que quer encontrar mais personagens femininas, grandes franquias e ideias alinhadas com o que eles querem ler, dá pra manter os 100 e tantos por cento de crescimento por ano, como já aconteceu. Vai por mim. Fora que as duas grandes vão continuar do lado deles. Afinal, elas estão se estapeando justamente por esses novos leitores.

A gente até tentou abrir um contato com o ComiXology, pra que eles pudessem explicar os planos da empresa, mas não tivemos um retorno até o fechamento desta matéria. De qualquer forma, fica aqui a dica: sejam menos uma Meltdown ou Midtown, duas comic shops famosas dos EUA, e sejam mais um Netflix. Na versão 2015, claro. ;)