Treze vezes em que o morto-vivo foi muito mais do que só um rostinho em decomposição
Quando vem à sua cabeça as figuras de aliens, ninjas e zumbis, qual delas representa o maior grau de periculosidade?
Os extraterrestres, que podem variar desde criaturas xenomorfas virtualmente indestrutíveis, caçadores invisíveis, esporos espaciais, metamorfos, parasitas, até àqueles que gostam de fazer experiências com sondas anais? Talvez os ninjas, mestres das artes marciais ORIUNDOS de uma cultura oriental milenar, especialistas em armas brancas, assassinos implacáveis, furtivos, silenciosos, treinados para matar? Ou os zumbis, um saco maltrapilho de carne podre, acéfalo, que anda se arrastando com velocidade de lesma e sempre foi visto como a casta mais baixa dos monstros?
Bem, pode ser que sua resposta não sejam estes últimos, mas saiba que de todos os exemplos citados, por trás daquele andar torpe e fome insaciável por carne humana, há um verdadeiro mensageiro do apocalipse sociocultural que serve como alegoria para temas como imperialismo, escravidão, desemprego, paranoia nuclear, Guerra Fria, racismo, ruptura da autoridade e dos direitos civis e políticos, consumismo, armas biológicas, política externa e intolerância, entre outros.
Difícil acreditar que um tosco corpo putrefato ignóbil possa, mais do que qualquer outra criatura do cinema do horror – quiçá do cinema em geral – representar tão bem as fobias da sociedade de sua época? Pois bem, então vou te mostrar 13 VEZES, desde as raízes de seu surgimento no Haiti até o mundo pós 11 de setembro, em que o morto-vivo funcionou como uma metáfora social nos cinemas.
| Zumbi Branco (1932)
A palavra zombie foi registrada pela primeira vez no Dicionário de Inglês Oxford em 1819, relacionada às palavras zumbi, que significa “fetiche”, e nzambi, que significa “Deus”, na linguagem Kikongo e originalmente usada para se referir ao Deus-Pai Criador de Todas as Coisas nas religiões praticadas na África Ocidental.
Durante o século XVIII e começo do século XIX, o termo se popularizou no Haiti e outras ilhas do Caribe pelos escravos africanos levados para a região pra trabalhar nas fazendas de cana-de-açúcar. Sua primeira menção no mundo anglo-saxão foi em um artigo publicado nas páginas da revista Harper’s Magazine em 1889, escrito pelo jornalista e antropólogo Lafcadio Hearn, chamado The Country of the Comers-Back (em tradução livre, “O País dos que Voltam”). O autor do texto relatava sua viagem à Martinica, quando conhece a lenda sobre os corpse cadavres, parte do folclore local.
Apesar de relatos orais nas fazendas do sul dos EUA datadas de meados do século XVIII, foi só em 1929 que o mito do zumbi moderno chegou a Terra do Tio Sam, quando o jornalista e aventureiro americano William B. Seabrook publicou um livro sobre suas andanças no Haiti chamado A Ilha da Magia. Em um relato sensacionalista, após intensa pesquisa sobre a prática religiosa caribenha, ele definiu a criatura como um ser autômato enfeitiçado por meio de um ritual vodu onde um feiticeiro boko capturava sua alma, e após a morte, o desenterrava, reanimando-o para satisfazer suas vontades.
Três anos depois, em 1932, os irmãos Edward e Victor Halperin, querendo aproveitar o boom do cinema de terror norte-americano capitaneado pelos monstros da Universal, resolveu levar os zumbis do livro de Seabrook para as telas em Zumbi Branco, produção independente estrelada por um Bela Lugosi falido, desesperado por dinheiro, vítima de um contrato mal-feito com a Universal para interpretar Drácula – seguido da recusa ao papel em Frankenstein (quando proferiu a famosa frase “eu sou um ator, não um espantalho”) – interpretando o caricato “Murder” Legendre, que torna-se mestre nas práticas rituais haitianas e descobre o segredo de zumbificar e controlar as pessoas para trabalharem como escravos em suas minas de açúcar.
O Haiti teve sua independência declarada em 1804, livrando-se do controle dos franceses como o único país do mundo que obteve resultado em uma revolta de escravos bem-sucedida, sendo a primeira nação independente da América Latina e do Caribe e a segunda república do continente americano. Na trama de Zumbi Branco, mesmo que essa intenção tenha passado longe da cabeça seus realizadores, justo um europeu como Legendre explorá-los como um senhor de engenho evoca uma espécie de volta da ilha ao imperialismo, fazendo um paralelo propício com a realidade do lugar.
Quando Zumbi Branco estreou nas salas de cinema, os EUA estavam mergulhados na Grande Depressão por conta da quebra da Bolsa de Valores de NY de 1929 e, por mais que esse tenha sido – segundo históricos apontam – o fator principal para o aumento do interesse do público em filmes de terror, já que o gênero sempre foi o veículo de manifestação das fobias sociais vigentes, o longa dos Halperin aterrorizou os americanos por conta de um motivo muito mais íntimo: a sua identificação com aqueles seres obedientes e acéfalos como uma analogia aos trabalhadores desempregados, sem vida, vagando pelas ruas e frequentando as filas da sopa e do pão, sob a sombra de um índice de desemprego que atingia os alarmantes 25% e representava o colapso das estruturas capitalistas, seu maior medo.
| O Cadáver Atômico (1955)
De acordo com o que o teórico cultural Mark Jancovich escreveu em seu livro Rational Fears: American Horror in the 1950’s, “as ameaças que distinguiram o terror dos anos 1950 não vinham do passado nem eram resultados da ação de um único indivíduo, mas associam-se ao processo de desenvolvimento e modernização social”, o que fez com que o gênero “distancie-se do terror gótico e se encaminhe para uma preocupação com o mundo moderno”.
Resultado disso? O maior terror da ficção não era mais a morte, mas sim a desumanização, a perda da identidade, da individualidade e do senso crítico. Nos anos 50, todos os aspectos do gênero foram substituídos pelo medo da invasão alienígena (geralmente vindos de Marte, o Planeta Vermelho) e da lavagem cerebral e controle, como perfeita alegoria do que o comunismo fazia com seus camaradas na famigerada União Soviética, conceito martelado ferozmente durante a caça às bruxas macarthista. Além disso, a corrida armamentista contra os russos e o surgimento da bomba atômica apontava para outro pavor do cidadão de bem americano: a paranóia nuclear.
Bestas movidas à energia nuclear surgiram aos BORBOTÕES, com todo tipo de animal gigante destruindo cidades e aterrorizando pobres seres humanos: de aranha a escorpião, de formiga a louva-deus, de polvo a monstro-de-gila (um tipo de lagarto). No caso do cinema zumbi, as questões raciais e conflitos coloniais foram deixados completamente de lado para o medo dos avanços da ciência tomar seu lugar, como rola em O Cadáver Atômico.
Neste terror sci-fi de baixíssimo orçamento e qualidade da Clover Productions, os zumbis são resultados da tecnologia (não é feitiçaria!) e da exposição à radiação. Um cientista nazi descobre uma forma de reanimar cadáveres por meio da radioatividade e, com isso, controlar seus cérebros para que eles cometam todo tipo de ação nefasta. Assim, já juntamos duas das preocupações do americano médio daqueles tempos: medo nuclear e controle mental, que é bem coisa de comunista esquerdopata bolivariano.
| A Noite dos Mortos-Vivos (1968)
Em Zumbis – O Livro dos Mortos, John Russo, roteirista de A Noite dos Mortos-Vivos, o clássico dos clássicos zumbi dirigido por George A. Romero, ao tentar contextualizar como surgiu o filme que seria o responsável pelo nascimento do terror norte-americano da era moderna, explica que “nos anos de 1950, por causa da vaporização de Hiroshima e Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial, todo mundo tinha medo de bombas nucleares e a energia nuclear – principalmente aquela que dava errado. A psicologia do medo estava pronta para ser explorada, e deu origem ao gênero ‘monstro mutante’ dos filmes de terror (...). Bem, não queríamos que nosso primeiro filme fosse assim. (...) Para fazer isso, tivemos que ser fiéis tanto ao nosso conceito como à nossa realidade”.
Essa fidelidade para com a realidade fez com que A Noite dos Mortos-Vivos, ao criar a figura do zumbi como um monstro canibal, escancarasse com o mais puro NIILISMO o terror cotidiano da América, em uma mordaz crítica social onde o monstro na verdade era seus vizinhos, amigos e família, que saíam de suas covas para nos devorar. Isso sem contar a forma como coloca à prova a sobrevivência do mais forte, o egoísmo da autopreservação e o fracasso em cooperar, os conflitos morais, religiosos e raciais, ousando apresentar, em pleno final dos anos 60, um protagonista negro.
Tudo isso tendo como pano de fundo a ideia velada do que acontece quando ocorre um ataque repentino contra o establishment, resultando no colapso total da ordem social. O que irá prevalecer é a truculência, como mostra o bando de rednecks e o xerife republicano que estão lá pra resolver a situação à bala e empilhar os corpos. Enquanto isso, Lyndon Johnson mantinha sua ofensiva no Vietnã, sem imaginar que o conflito no sudeste asiático iria enterrar de vez o “sonho americano”. Os momentos finais do filme e a sequência de fotos durante os créditos questionam duramente a autoridade policial e as forças da lei, remetendo não apenas à guerra mas também aos conflitos raciais de Watts, Los Angeles, em agosto de 1965.
| Não Se Deve Profanar o Sono dos Mortos / Zumbi 3 / A Revanche dos Mortos Vivos II (1974)
O filme de Jorge Grau, lançado com três títulos diferentes no Brasil só pra facilitar bastante, é o verdadeiro discípulo de A Volta dos Mortos-Vivos, assumindo com clareza os modernos elementos zumbis, dando continuidade aos temas, arquétipos e situações que fizeram o filme de Romero um sucesso do subgênero alguns anos antes.
Fugido da Espanha Franquista natal, Grau leva seus zumbis para a região do Lake District, interior da Inglaterra, trazidos à vida por conta de experimentos com radiação do Ministério da Agricultura inglês, no intuito de exterminar uma praga de insetos no local, fazendo com que esses animais de sistema nervoso reduzido fiquem alucinados de raiva e matem uns aos outros. Os efeitos colaterais desse experimento trarão os mortos à vida com o mesmo comportamento.
Fica gritante a mensagem ecológica de Grau de que estamos ferrando cada vez mais com o meio ambiente, com o uso de pesticidas e agrotóxicos, e sendo envenenados por um progresso que não considera as consequências. Vivemos rumo a uma catástrofe ambiental iminente, reflexo de uma humanidade niilista que perdeu completamente o rumo.
Além disso, o que está nas entrelinhas por trás da zumbificação é que vivemos passivos em uma sociedade já moribunda, esperando apenas o desastre acontecer. O próprio ritmo do filme implica que todos ali são seres vivos autômatos em um mundo devagar quase parando, cínico, sem forças para reagir. É a destruição deliberada da ordem social e do governo, construindo uma fantasia progressista sobre a tomada de poder na figura do monstro.
A autoridade é representada como burra, inútil, reaça e truculenta, na figura de uma polícia fascista, corrupta e sem visão, apenas determinada a usar da força para acabar com a “corja”. Crítica velada ao governo do ditador Franco, onde o conservadorismo das forças da lei e da ordem sustentam um sistema podre de entropia e decadência — assustadoramente tão atual em um certo país tropical abençoado por Deus...
| Deathdream (1974)
Inspirada nas histórias de vinganças arquitetadas do além túmulo típicas dos quadrinhos da EC Comics e com o intuito de mostrar os horrores da Guerra do Vietnã (que só terminaria no ano seguinte ao seu lançamento) sob o prisma do morto-vivo, a dupla Bob Clark e Alam Orsmby foi responsável por Deathdream, filme de zumbi reacionário que funciona como um ataque ao sistema em tempos de contracultura.
A história de um soldado morto em combate que volta para a terra natal como um zumbi foi um dos primeiros filmes, de terror ou não, a abordar o tema delicado da guerra no sudeste asiático, em uma época que os americanos ainda lambiam as próprias feridas e Hollywood considerava o conflito um fracasso de público. Deathdream teve colhões de atravessar um espinho na garganta de uma machucada América e escancarou, de certa forma, o impacto de ter de lidar com esse assunto.
Sempre coberto por um véu de humor negro em sua contestação política e cultural, um jovem militar americano retorna para casa depois de ter sido dado como morto, uma vez que sua mãe, inconsolável, faz um pedido para o cosmo e é atendida. Só que ele agora é um zumbi que precisa de sangue humano para não apodrecer de vez — e que ainda lhe dá barato. Sua volta ao lar gera um verdadeiro desarranjo familiar, com a mãe fechando-se em seu mundo, incapaz de aceitar a nova realidade do rebento, o pai recorrendo ao alcoolismo, cheio de amargura e desgosto, e a outra filha segregada, que só quer que tudo volte a ser como nos velhos e bons tempos.
Enquanto isso, o ex-soldado precisa da morte, do frenesi de ceifar a vida de alguém, para poder voltar a se sentir humano, e não um morto ambulante, explodindo em um vórtice de raiva descontrolada quando está praticando seus “assassinatos por sobrevivência”.
| Despertar dos Mortos (1978)
Se em A Noite dos Mortos Vivos, Romero começou sua revolução em decomposição que mudaria os rumos da história do cinema de terror, em Despertar dos Mortos ele realiza sua obra-prima, pedra angular do subgênero para todo o sempre, deixando claro pra geral que os zumbis somos nós e nós somos os zumbis, ajustando como foco de seu discurso o consumismo, a alienação em massa e a ruptura social completa.
Logo no começo você vê que os zumbis tomaram o controle e os seres humanos praticamente viraram seu gado, perdendo essa luta. Até que em um dos momentos do filme, um polêmico entrevistado em um programa de TV diz que a situação poderia ter sido contornada muito facilmente se as pessoas tivessem deixado a emoção e a moral religiosa de lado, e simplesmente matassem os zumbis, independente de serem parentes ou amigos.
Praticamente o filme todo se passa dentro de um shopping center, ideia surgida em Romero ao visitar um shopping vazio em Monroeville, Pensilvânia, por conta de uma reunião com um parceiro de negócios que tinha um escritório naquele complexo gigantesco. Os zumbis são apresentados como consumidores dementes numa sátira cartunesca para explorar o egoísmo humano e todo o tédio das relações interpessoais e da explosão do consumismo exacerbado, mostrando por A+B que é impossível salvar a humanidade do capitalismo desenfreado, devido à pura aceitação de algo (o shopping, no caso) que lhe provê tudo o que precisa.
Mesmo com o mundo caindo no mais puro caos social, os seres humanos são escravos dos seus mais primitivos desejos de consumo, que fica muito claro quando os protagonistas começam a saquear uma grande loja de departamento e usufruir dos bens para satisfazer suas necessidades mais mesquinhas, como desfilar novas roupas, jantares chiques e tudo que tem direito. Apesar da síndrome do isolamento, enquanto eles tiverem bens materiais para os distraírem, está tudo de boas.
Os próprios mortos, que retornam ao shopping por alguma lembrança consumista embaralhada de seu subconsciente, sem a menor vontade própria, ficam zanzando pelos corredores e escadas rolantes enquanto o alto-falante anuncia alguma liquidação, ou se debatendo em frente de alguma megastore trancada. Não te lembra o comportamento de um grupo ávido em comprar o novo iPhone no dia de seu lançamento ou em uma manhã de Black Friday esperando a abertura das lojas?
| Dia dos Mortos (1985)
A humanidade finalmente perdeu a batalha e o mundo tornou-se um lugar inóspito tomado em Dia dos Mortos, que fechava aquela que seria até então a trilogia de George A. Romero.
A crítica social inerente à sobrevivência humana continua ali escancarada, violando códigos de ética (principalmente médica e científica), conduta, raça e credo, mas o tom do longa dessa vez é muito mais depressivo, soturno, destoando completamente do estereótipo do zumbi nos anos 80, alçado ao status de fenômeno da cultura pop graças ao Thriller de Michael Jackson.
Aqui os heróis muito se misturam com os vilões, isolados em um bunker militar, vivendo às raias da loucura, cercados por uma estafa mental e um descontrole emocional, como se manter o fardo da humanidade fosse uma bomba relógio prestes a explodir. E também há de se reparar que o começo do filme se passa exatamente na Flórida, o ponto mais próximo nos EUA das ilhas caribenhas, uma volta que o ciclo do monstro dá em torno de sua própria origem, mesmo que subentendido.
Mais uma vez, o grande mal à humanidade não são os zumbis e sim os próprios homens. O que coloca tudo a perder e joga a merda no ventilador de vez para a catástrofe final é a mesquinharia, a intolerância e as atitudes impensadas dos seres humanos. Enquanto em A Noite a inconsequência da explosão da bomba de gasolina misturada ao descontrole emocional decretam o fim do grupo, e em Despertar a invasão dos motoqueiros ao shopping é seguida pelo ataque dos zumbis, aqui um estágio avançadíssimo de estresse faz com que um personagem, que é justamente o bendito do latino, mande tudo às favas e abra os portões para que os cadáveres invadam o complexo e façam seu banquete.
O que salta aos olhos é como Romero inverte o papel do mocinho e do bandido fazendo com a gente simpatize com os zumbis, principalmente por conta de Bub – objeto de experimento social que tenta ser domesticado – uma vez que seus pares são vivissecados, explorados, humilhados e trucidados em nome de uma suposta pesquisa científica...
| A Noite dos Mortos-Vivos (1990)
A palavra REFILMAGEM é suficiente pra causar arrepios em certas pessoas. Mas quando se usa o termo para se referir àquele que talvez o mais importante filme de horror de todos os tempos, a reação dos fãs pode beirar o pânico.
O mago da maquiagem Tom Savini ousou refilmar A Noite dos Mortos-Vivos, porém com a benção de Romero – que atuou como produtor e escreveu o próprio roteiro – e o diferencial no âmbito sociocultural foi a maior importância na questão de gênero do que na raça. A protagonista agora é Barbara, não mais uma vítima passiva, catatônica e irritante, colocando o feminismo sob perspectiva.
Enquanto os machos discutem a questão de territorialidade dentro da casa onde estão encurralados pela horda, ela, já com o DNA de heroína descendente de Ellen Ripley, encara de frente o horror e não se rende ao porão, mesmo com a falsa segurança do inconsciente. O percurso aborda a natureza humana em uma situação de desespero, colocando desejos mesquinhos de liderança, controle e subserviência em primeiro plano, com o excesso de testosterona se mostrando uma ameaça muito maior do que os devoradores de cérebro e entranhas que se aglutinam à espreita.
Para Romero, qual a resposta à crise? Repensar o papel social de gênero e a isonomia, uma vez que a mulher, desde o começo dos tempos, é uma sobrevivente por natureza e faz o que for necessário para manter-se viva. A morte de Cooper, “cidadão médio de família e de bem”, executado friamente por Barbara, se fez necessária porque o seu comportamento representa tudo que há de errado com a ordem sexista dominante que levou todo o grupo à morte, num misto de covardia, arrogância, autoridade e egocentrismo.
| Pelo Amor e Pela Morte (1994)
Inspirado pelas páginas do fumetti Dylan Dog, Michele Soavi nos brinda com uma comédia de terror e humor negro de zumbis que retrata não o medo de morrer, mas sim o medo de viver em um mundo cada vez mais apático, sentimento que dominou a Geração Vazia dos anos 90.
Pelo Amor e Pela Morte é o reflexo de uma sociedade que ficou sem rumo e sem propósito quando o Muro de Berlim caiu, a Guerra Fria chegou ao fim e o mundo não acabou em um ato inconsequente de Ronald Reagan ou de Yuri Andropov na década anterior. Não há esperança e nem questionamentos, apenas pessimismo, alienação social, apatia, confinamento e altas doses de angústia e sarcasmo. Um mundo ideal para o surgimento do grunge e também de um filme que escancara como somos entediantes.
Francesco Dellamorte é o zelador de um cemitério localizado numa cidadezinha italiana, onde todos ali enterrados retornam a vida depois de sete dias. “Será o começo de uma invasão? Isso acontece em todo cemitério ou será o meu o único? Quem sabe? Enfim, quem se importa? Só estou fazendo o meu trabalho.” Essa frase proferida pelo protagonista pontua exatamente o tom pessimista que traduz um alto e sonoro “que se danem os grandes feitos”.
Dellamorte, completamente “zumbificado” pelo meio em que vive, está ali, cumprindo seu papel de forma automática, sem que exija muito que se pensar e pouco se lixando em obter alguma forma de mudar aquilo, conformado com o seu segundo grau (hoje fundamental) completo e tendo lido só dois livros em toda sua vida, sendo que um deles nunca terminou: a lista telefônica!
Todos os habitantes daquela estranha cidade que ladeia o cemitério são espelhos da sociedade disfuncional, desde o prefeito, em seu 15º mandato, que se preocupa apenas com votos e para isso decide explorar sua própria tragédia pessoal, até o melhor amigo de Dellamorte, que rouba a autoria de seus crimes. Cercado de um tom deprimente da aceitação de uma vidinha miserável e a inércia que domina os personagens, Soavi nos dá um verdadeiro tapa na cara jogando-os em um espiral de desesperança, obrigados a viver aquela vida banal e automática para sempre.
| Extermínio (2002)
Pânico nas ruas de Londres! Extermínio foi a incursão única e definitiva de Danny Boyle no gênero de terror, e logo foi responsável por, mais uma vez, reinventar e ressignificar o zumbi ao trazê-lo ao novo século, pós 11 de Setembro.
O filme de terror perfeito para explorar as fobias e paranoias após a queda das Torres Gêmeas: armas biológicas criadas em laboratório, pandemias globais mortíferas e explosões virais – o lançamento do filme coincidiu com o pânico gerado em torno da epidemia do vírus SARS, a primeira do século XXI, além das ameaças do antraz – o totalitarismo e abuso de autoridade do exército e a sociedade mergulhando no mais completo caos anárquico.
Fora isso, os zumbis não-zumbis de Boyle refletem um dos mais sérios problemas modernos, mostrando como as interações sociais andam cada vez mais estressantes, e nada poderia ser mais propício para essa analogia do que seres dotados da mais pura raiva descontrolada.
Ela se instaura em relacionamentos, nas brigas de trânsito, no fundamentalismo religioso, na intolerância, nos arrastões, nas brigas de gangues, no canibalismo corporativo. Tanto que, no começo do filme, centenas de imagens desse tipo são exibidas para os chimpanzés de teste justamente para alimentar ainda mais seu descontrole e fomentar o poderio do vírus incubado em laboratório. A raiva tornou-se o comportamento padrão como resposta emocional e psíquica de uma sociedade desequilibrada, paranoica, extremista e capitalista, que exala pelos poros, dia após dia, a intolerância de raça, credo e gênero.
“O fim do mundo está perto pra caralho” em uma dinâmica alucinante com dezenas de cortes por segundo e estética de videoclipe.
| Todo Mundo Quase Morto (2004)
A paródia do zumbi é a mais escrachada e explícita personificação do morto-vivo como crítica social. E Shaun, o protagonista, é a representação perfeita de tudo que deu errado na Geração Y.
Já que Simon Pegg e Edgard Wright queriam prestar uma homenagem ao cinema zumbi, nada melhor do que também incorporar seu principal papel cinematográfico: de agente reflexivo da sociedade em questão. Foi isso que fizeram em Todo Mundo Quase Morto, jogando na cara a incapacidade do ser humano em reparar nas mudanças à sua volta enquanto se vive na bolha dos próprios problemas e suas relações conformistas.
Shaun, o protagonista, é o exemplo maior da geração dos 20 e tantos / 30 anos em crise existencial, que vive de videogame, toma porre, fumam muita maconha, comem junkfood, trabalham em empregos enfadonhos... Entediados, alienados, fracassados, sem comprometimento algum, não sabem lidar com relacionamentos e são incapazes de encarar a vida adulta e suas responsabilidades, sem sair de sua zona de conforto – mas que dureza se desfazer de seus discos antigos do Dire Straits.
Mas sempre há uma chance para se valer do oportunismo, principalmente em situações extremas, e uma hecatombe pode ser o momento ideal para se aproveitar o cataclismo para criar uma falsa imagem e abraçar aquilo que não é, tentando cinicamente se crescer e posar de herói por cima da carne-seca para a ex-namorada, pros amigos e até pro padrasto.
“A maior parte do filme é como o pessoal da cidade passa a vida ignorando os outros”. As palavras de Pegg não poderiam ser melhores para descrever que já somos zumbis antes de virarmos zumbis. Não existe sociedade, existe apenas o indivíduo.
| Terra dos Mortos (2004)
É o fim do mundo como nós conhecemos. Romero encerra sua agora tetralogia e coloca dessa vez o dedo na ferida da luta de classes, a corrupção, ganância, corporativismo e a política externa americana da Era Bush.
Enquanto a humanidade perdeu a batalha de vez contra os zumbis, que começam a evoluir e se organizar socialmente, um grupo de humanos se apinha em condições de subsistência nas ruas, ao mesmo tempo em que os mais afortunados moram em uma prédio luxuoso com restaurantes chiques, shopping centers e todo um clima bizarro de normalidade dos “velhos tempos”, em uma sociedade governada por um CEO, um GESTOR inescrupuloso, que lucra com a miséria dos sobreviventes em meio aos jogos, vício e prostituição.
Pra manter os desfavorecidos no cabresto, claro, aquela velha política do pão e circo, enquanto usa exército, mercenários e um veículo armado até os dentes pra garantir a segurança e a satisfação de todos — uma cerca elétrica (que poderia bem ser um muro) mantém os zumbis devidamente afastados.
Na mira de Romero está o então sistema político americano de George W. Bush e seu complexo militar. Kaufman, o vilão de Dennis Hopper, é uma mistura de Bush com o ex-Secretário de Defesa Donald Rumsfeld (e hoje lembra tanto ooooooutro Donald). O mais importante, para este emblemático líder, é “não negociar com terroristas”, como ele frisa para o personagem latino, que tem negado o direito de entrar no complexo e conseguir seu apartamento, mesmo após anos de serviços prestados e o dinheiro necessário para tal. Afinal, “você não é o tipo certo de pessoa”.
| Diário dos Mortos (2007)
Em sua nova tentativa de recriar um universo de mortos-vivos, ao fim de sua tetralogia original, Romero acertou de novo na veia. Visto hoje, dez anos depois, Diário dos Mortos não poderia parecer mais atual, em tempos de digital influencers, superexposição na Internet e nas redes sociais, celebridades instantâneas online, YouTubers, busca por audiência, cliques, shares, engajamento e relevância.
A sociedade do espetáculo vista em um dos precursores do found footage moderno, que representa perfeitamente a premissa do “se não foi gravado, não aconteceu”. Antecipa uma década, de forma precisa e voraz, o que acontece hoje nas redes sociais, no Facebook e Instagram, onde se você não tirou a foto, não fez um check in, não postou sua opinião ou textão sobre tal assunto, não fez um Snap ou Stories, simplesmente você não viveu aquilo. Se todos não ficarem sabendo, não importa e não se tornou factível. Eleva à enésima potência os conceitos de simulacros e simulações de Baudrillard.
O contexto do zumbi está ali apenas pela fantasia, pelo lúdico do horror, pela representação de uma situação extrema, sem contar que outro subtexto, adorado pelo mestre, ainda se encontra na sua obra: os humanos, ah os humanos, esses são sempre piores que suas contrapartes putrefatas que se levantam do túmulo. E nos momentos de sobrevivência é que conhecemos nossa verdadeira natureza.
O estudante de cinema, pego no meio da hecatombe com a câmera na mão, é obcecado – mais do que com sua própria segurança e de seus colegas – e sente-se no dever cívico de mostrar a verdade sobre a insurreição dos mortos para todo mundo pela Internet, enquanto informações erradas são transmitidas pela mídia oficial manipuladora. Mas apesar do pretenso altruísmo, sua verdadeira intenção mesmo, como fica claro, é ganhar milhões de views.
Invertendo seu próprio conceito, aqui os mortos-vivos são colocados em segundo plano. Não são alegorias do comentário social do diretor como outrora, e estão lá para o entretenimento e para o gore, mostrando que nessa evolução cinematográfica de mais de 80 anos, já assumimos o protagonismo e nos tornamos os zumbis.
Enfim, nós somos eles.