Roteirista, que já está no Brasil pra participar da ComicCON RS, conversa com o JUDÃO sobre Marvel, DC, Vertigo, a falta de inteligência dos filmes de super-heróis, a passagem do Constantine pela TV e a “fermentação” quadrinística que rolou no chá da Grã-Bretanha durante os anos 80
Algo aconteceu no Reino Unido em meados dos anos 80. De repente, anos de produção local, seja de personagens próprios ou com inspiração nos dos EUA, começaram dar resultado na forma de grandes quadrinistas. Foi aí que surgiram nomes como Alan Moore, Grant Morrison, Mark Millar, Neil Gaiman e Peter Milligan, que trabalhou na clássica 2000 AD, e, depois, foi escrever títulos na AMÉRICA como Detective Comics, Shade, Tank Girl, Human Target, X-Force, X-Statix, X-Men e Hellblazer, aquela revista estrelada por um tal de Constantine.
“Foi a fermentação letal de chá forte e tédio político, fadiga pós-Império e por ser quase, mas não completamente, unidos aos EUA”, tenta explicar o próprio Milligan sobre a efervescência quadrinística daquela época num papo exclusivo com o JUDÃO. Outra curiosidade é que muitos desses quadrinistas britânicos que começaram a chamar a atenção naqueles tempos possuem sobrenomes iniciados com a mesma letra, com algumas exceções (sendo a maior delas, claro, Neil Gaiman). “Eu não tenho explicação pra essa coisa do ‘M’. Mas isso dá uma sensação Milenar, não dá?”, brinca.
O fato é que, cruzando o Atlântico, Milligan fez parte do que hoje é a chamada “Invasão Britânica”, que teve espaço inicial especialmente na DC. O quadrinista foi escrever Shade, o Homem Mutável, uma antiga criação de Steve Ditko (co-criador do Homem-Aranha) que andava por baixo, entregando uma revista que evoluiu pra algo que se tornou completamente diferente do que o resto do mercado fazia. O personagem morreu diversas vezes durante essa fase, por exemplo – revivendo em seguida sempre com uma forma diferente, inclusive como uma mulher.
Os gibis tocados pelos Súditos da Rainha eram tão diferentes que, em 1993, deram origem a uma nova linha dentro da própria DC, a Vertigo, liderada pela editora Karen Berger. Basicamente, a história de Milligan se mistura ao crescimento e a consolidação dos títulos adultos no mercado dos EUA naquela época.
Milligan foi o último roteirista de Hellblazer, que foi encerrado na edição 300, publicada em 2013, exatamente dois meses depois da saída da antiga editora. “As coisas iam mudar de qualquer jeito quando a Karen Berger saiu. Agora, em cima disso, tem a mudança pro oeste, pra Los Angeles. E, provavelmente, a linha precisa se estabelecer nessa nova realidade”, relata o quadrinista. “Mas eu ainda acho que a Vertigo é surpreendente – estamos tão acostumados com isso que raramente percebemos o qual surpreendente e original ele é – e eu não vi nada que me faz pensar que as pessoas de lá querem mudar isso”.
Na nova fase, Milligan passou a se dedicar aos trabalhos autorais, que agora marcam a Vertigo. Primeiro, escreveu The Names, uma minissérie em oito edições desenhada por Leandro Fernández (que é argentino) e com cores da brasileira Cris Peter. “Esse é um trabalho mais sombrio e raivoso. É uma reação ao crash financeiro e às pessoas que causaram isso, muitas das quais escaparam sem punição por atos de ilegalidade e ganância”, conta sobre o título, que foi lançado nos EUA no ano passado.
Já a história em quadrinhos mais recente é New Romancer, que foi anunciada durante a última San Diego Comic-Con – e o primeiro número só sai lá fora em dezembro. “Esse é um tipo diferente de revista pra mim, mas com base em algumas das minhas paixões há muito contidas. É o que você deveria chamar de romance sobrenatural. É uma história de amor entre uma jovem e brilhante programadora que vive no Vale do Silício e seu homem dos sonhos – que vem a ser um poeta romântico e amante infame, Lord Byron. De alguma forma, Lord Byron renasce no Vale do Silício. O problema é que junto vêm ainda mais loucos e sombrios amantes demoníacos (como Casanova, Mata Hari etc.). Além de ter um olhar dos bastidores de um site de namoros no Vale do Silício, é sobre os dúbios prazeres de se conseguir aquilo que você pediu tanto”.
Além da Vertigo, Peter Milligan também trabalhou nos últimos anos com o recente reboot da linha de super-heróis, Os Novos 52. Foi uma passagem rápida por revistas como Justice League Dark (onde ele mais uma vez encontrou com o velho mago sacana), Red Lanterns e Stormwatch – e foi exatamente na mesma época que começaram a pipocar reclamações de alguns quadrinistas em relação às intervenções feitas pelos editores, lideradas pelo Rob Liefeld. “Olha, eu acho que tudo depende do título e do editor. Eu não gostaria de fazer quaisquer generalizações”, afirma o roteirista, sem endossar as reclamações e fugindo da polêmica.
Vale dizer que o trabalho de Peter Milligan nos EUA não se resume à DC e Vertigo. Ele também passeou pela concorrência, principalmente pela Marvel, na qual teve a oportunidade de trabalhar com os títulos mutantes em diversos momentos entre 1996 e 2006. Foi justamente com X-Force e sua continuação X-Statix, que o autor teve grande destaque lá na Casa das Ideias, numa verdadeira piração com arte lisérgica de Mike Allred (Madman) e que misturava os mutantes com reality shows e todo o lance de culto às celebridades.
“Você nunca tem liberdade total [ao trabalhar num gibi de uma grande editora]. Mas eu senti que cheguei bem perto disso nessa época”, afirma. “Algumas coisas aconteceram: o apoio e parceria de um grande editor (Axel Alonso), as vendas eram saudáveis, e a equipe e os personagens com os quais estávamos mexendo não eram figurões da Marvel (como Wolverine ou whatever). Além disso, a revista nunca atrapalhou a Marvel ou a marca X-Men. Ela a honrou. E levou um aspecto disso para contar uma história bem diferente”.
Não à toa, Axel Alonso ganhou o Eagle Award (um dos mais importantes das HQs dos EUA, abaixo do Eisner) como editor favorito em 2006, mesma época da passagem de Milligan pelos mutantes. Em 2011, ele foi promovido ao cargo de editor-chefe, aquele mesmo que já foi de Stan Lee.
Aliás, uma das marcas da passagem de Axel Alonso como editor-chefe tem sido a diversidade – temos agora um Homem-Aranha e um Capitão América negros, uma Thor, uma Miss Marvel muçulmana (e co-criada por uma editora de ascendência paquistanesa, a Sana Amanat), uma versão dos Vingadores com apenas um homem branco... É um aumento da diversidade nos quadrinhos, um movimento que também tem sido acompanhado pela DC.
“As pessoas nas histórias em quadrinhos se assemelharem mais às do mundo real é uma coisa boa. E realmente ficou cansativo como as mulheres foram representadas – ou deturpadas – em tantas publicações. Eu apoio qualquer coisa que faça as pessoas mais conscientes em relação a isso”, diz o autor, que inclusive faz parte desse movimento: New Romancer é justamente protagonizado por uma mulher.
Com tanta experiência nos quadrinhos, Milligan já fez a transposição para o cinema e a TV, apesar de ainda ser uma experiência pequena. Ele escreveu o roteiro de Identidade Assassina (com Ray Liotta) e Um Anjo para May (um filme para a TV), além da minissérie animada inglesa Meta4orce.
Com propriedade, então, ele fala dessa invasão dos quadrinhos na tela grande (e na pequena, também). “Eu penso que, de forma geral e de um ponto de vista criativo e como espectador, a maioria – não tudo, mas a maior parte – está sendo muito decepcionante. Parece que os quadrinhos tinham sido submetidos a uma espécie de ‘reformulação’ e foram capazes de serem mais cerebrais, de se aprofundar bem mais do que os super-heróis costumavam ser... Mas quando os filmes adaptam essas histórias em quadrinhos geralmente eles não parecem tão inteligentes ou com as nuances do trabalho original”, conta o autor.
Você pode se perguntar o porquê dele então não se envolver logo com esse tipo de produção, ajudando-as a ganhar mais profundidade. Bom, ele tá quase. “Alguns dos meus trabalhos chegaram perto de serem adaptados, mas nada aconteceu ainda. Eu atualmente estou adaptando um dos meus quadrinhos em uma produção de baixo orçamento no Reino Unido, mas não tem nenhum super-herói nela”, revela.
Agora, se tem algo que não é exatamente do Peter Milligan, mas que recentemente ganhou uma criticada adaptação em formato de série de TV foi Constantine – que acabou sendo cancelada, pra infelicidade do roteirista. “Eu preciso dizer, eu fui agradavelmente surpreendido. Estar tão próximo do personagem significava que eu não tinha certeza se queria assistir, mas eu acredito que os produtores meio que ‘pegaram’ o jeito. Não tenho certeza se o personagem na TV tinha muito do Constantine que eu conhecia e amava, mas era bem mais interessante que um monte de personagens na televisão, então eu acredito que deveria ter durado mais tempo, podendo realmente encontrar o seu tom”.
Peter Milligan trabalhou com alguns brasileiros durante a carreira. Além da já citada Cris Peter, ele dividiu trabalhos com Mike Deodato (em Elektra), Ed Benes (Red Lanterns) e Will Conrad (Red Lanterns e Stormwatch). Isso além de ter escrito um arco do Batman no qual o herói vem pro Rio de Janeiro – e que foi publicado por aqui em 1993 pela Editora Abril como um especial único, chamado Batman no Brasil (ah, vá).
Só que o próprio quadrinista nunca visitou o nosso país. “Erro” que ele vai corrigir agora, participando da ComicCON RS, que rola neste sábado (22) e domingo (23) em Canoas, Rio Grande do Sul.
“Parece que tem algo me puxando pra aí, não é? Não tem nenhuma razão pra não ter ido antes. Acho que nunca foi o momento certo, até agora”, explica. Essa também vai ser uma oportunidade pro cara conhecer um pouco do que é produzido em matéria de HQs por aqui. “Eu vou ser honesto, eu não sei como é a cena de quadrinhos aí. Eu estou ansioso pra descobrir como é”.
Não vai faltar material. :)