Quem não conhece os gibis, vai ter uma PUTA surpresa. Quem já conhece, nada a temer: todo o espírito da obra de Garth Ennis está ali, vibrante e maldito, como sempre.
SPOILER! Vamos ser honestos aqui: quem acompanhava com devoção a saga do trio Jesse Custer / Cassidy / Tulip nos quadrinhos escritos por Garth Ennis e desenhados por Steve Dillon estava morrendo de medo desta história de rolar uma adaptação para TV.
O projeto já tinha ido e voltado nos bastidores de Hollywood algumas vezes — mas a obra original tem tanta coragem em seus momentos de pura violência e crítica religiosa sem papas na língua que nenhum nome envolvido desde então tinha conseguido passar a segurança de que pelo menos 10% disso pudesse ser aproveitado. Não foi diferente quando caiu na mão da dupla Seth Rogen e Evan Goldberg, que enfim conseguiu tirar a parada do papel e transformá-la em realidade para o canal AMC. A desconfiança pairava no ar.
Basicamente, tava todo mundo com o cu na mão. Podia ser apenas mais uma série qualquer, a ser esquecida em pouco mais de três episódios. Uma oportunidade jogada no lixo. Mas a sensação que ficou depois dos 60 minutos do episódio piloto dirigido pelos próprios Rogen e Goldberg é que vem coisa MUITO boa pela frente. E que os responsáveis por Preacher, a série, sabem bem do que estão falando.
A trilha sonora é sensacional (quando rolou Johnny Cash foi um chute no estômago), o roteiro está amarradinho, a edição é ágil e dinâmica e os atores estão afiadíssimos. Tudo funciona. Tem humor — bem do sombrio, diga-se, como no caso da ótima piada com a cientologia — tem sangue e tripas para todos os lados, tem sacanagens a rodo com religião. O pacote completo. Se você não faz ideia do que se trata, Preacher vai te pegar pelos calcanhares, te virar do avesso e aplicar aquela inevitável expressão de WTF no meio da sua cara. E se você é daqueles leitores fiéis das HQs de Ennis/Dillon, pode relaxar. Tudo que você esperava está aqui. TUDO.
Tem mudanças com relação aos gibis? Mas claro que tem. ÓBVIO. Muitas. Algumas até bastante significativas. Mas todas fazem um baita sentido para a história. Ou, pelo menos neste momento, parecem fazer.
E daí que o Cassidy tira os óculos escuros? Qual o problema do Genesis não ser o rosto de um bebê flutuante em chamas, mas sim uma manifestação espiritual que tem uma espécie de voz infantil (assustadora, eu diria)? Sim, o momento em que Jesse é possuído pelo filhote proibido de anjo e demônio é diferente, a primeira vez que ele usa o poder da Voz de Deus também não é igual (embora igualmente monstruosa) – e a mãe viúva que é o braço direito do sujeito na congregação, nitidamente apaixonada por ele, é sim uma personagem criada essencialmente para a TV, que funciona como a consciência ambulante de Jesse.
E, claro, a decisão de ficar em Annville para cumprir “o seu destino” ao invés de cair na estrada com Cassidy e Tulip, pode ser a maior diferença da trama. Mas... e daí?
Lembra daquela coisa de que cinema é cinema, gibi é gibi? Pois é. O espírito está ali, a essência da obra, sem precisar lhe prestar uma reverência imbecil e cometer o infeliz pecado da ultrafidelidade. Ao final do episódio, com um sorrisão no rosto, o fã de quadrinhos em mim tava gritando “isso é Preacher, caralho”, enquanto o meu lado fã de séries de TV tava berrando “olha só este piloto, que puta série vem por aí!”. Pensa em como unir estas duas coisas é bom? ;)
Dominic Cooper está ótimo como o padre, o “pregador”, da igreja local da pequena cidade texana de Annville que, tentando cumprir a promessa que fez ao pai, voltou à terra-natal depois de um passado obscuro, cheio de pecados. Jesse Custer é um cara dividido. Ele bebe, ele fuma, mas ainda tenta acreditar em Deus, a todo custo. Só que a gente logo descobre o quão badass ele é na sequência em que surra sozinho e sem grande dificuldade um grupo de VALENTÕES liderado pelo babaca local, um imbecil que bate na mulher e parece se orgulhar disso. Tudo com um sorriso no rosto, como se estivesse se lembrando do quanto é bom ser mau às vezes. “Mas que tipo de pastor é você?”, questiona o vampiro irlandês Cassidy, que ele acabou de conhecer.
Aliás, cabe aqui uma citação especial para o Cassidy, vivido de maneira certeira por Joe Gilgun. Ele simplesmente rouba a cena sempre que mostra a cara e desfila um sem-fim de palavras num sotaque enrolado e quase incompreensível – desde o momento, já histórico, em que sai do disfarce de bartender e detona um bando de caçadores yuppies de vampiros dentro de um avião em pleno voo. Talvez algumas das mortes mais bizarras da TV recente, com destaque para o que acontece com uma garrafa de champanhe.
Carismático e divertido, ele é apresentado ao público sem precisar entrar em muitos detalhes sobre sua história. Uma introdução perfeita, deliciosamente exagerada mas sem a necessidade de subestimar a sua inteligência, querido espectador. O mesmo vale para a primeira aparição de Tulip (Ruth Negga), que volta para reencontrar o ex-namorado Jesse e tenta convencê-lo a entrar numa “missão” com ela. Digamos que não é sempre que a gente vê na TV uma garota montando uma bazuca caseira com a ajuda de duas crianças para derrubar um helicóptero, não é mesmo? \o/
Fica na boca um baita gostinho de ver, enfim, Cooper, Negga e Gilgun interagindo entre eles, numa dinâmica entre protagonistas que tem tudo para ser explosiva, no melhor sentido que a palavra possa ter. E, diabos, o diálogo de Jesse com o Cara de Cu, o adolescente que tentou se matar e acabou apenas ficando horrivelmente deformado, até leva a crer que a questão de “Deus desapareceu e deixou a humanidade para se virar sozinha na merda” vai mesmo servir como eixo central da história. “Eu costumava falar com Deus e ele respondia. Mas agora ele parece estar em silêncio”. Ouch.
Você sabe que o piloto de uma série atingiu plenamente o seu objetivo quando, na cena final (no caso, a dupla Fiore e DeBlanc, os anjos burocratas que vieram do céu para buscar o Genesis, chegando na cidade, de chapéu de caubói e tudo), tudo que você consegue pensar é: falta muito para o próximo episódio?
Preacher conseguiu. Ufa. Ainda bem. Que se mantenha neste caminho pelos próximos 9 episódios.
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