A rima fora de tom das capas hip-hop da Marvel | JUDAO.com.br

Capas variantes inspiradas em discos clássicos do Rap / Hip-Hop dividem os fãs nos EUA e levantam discussão sobre a participação dos negros nas HQs da editora

Em outubro, a Marvel Comics apresenta a sua nova linha de quadrinhos, batizada de All-New, All-Different, com mais de cinquenta novos títulos que estabelecerão as fundações do seu universo pós-Secret Wars. E para celebrar este momento, cada uma das edições de número 1 destas novas revistas terá uma capa variante – todas com um mesmo tema: reinterpretações (obviamente estreladas por seus personagens) de capas de alguns dos discos mais importantes e icônicos do Hip-Hop/Rap de todos os tempos.

“Durante anos, a Marvel Comics e a cultura do hip-hop estiveram engajadas em um diálogo frequente”, afirmou o editor-chefe da editora, Alex Alonso, em comunicado oficial. “Começando em outubro, vamos colocar o relacionamento entre estas duas forças únicas sob os holofotes com estas capas variantes, cada uma delas prestando tributo a uma capa de um disco que, nos últimos 30 anos, ajudou a moldar a cultura pop”.

Então, vemos o Doutor Estranho na capa de The Chronic, do Dr.Dre; Howard the Duck no lugar de Ol’ Dirty Bastard em Return to the 36 Chambers; Homem de Ferro pagando uma de 50 Cent em Get Rich or Die Tryin’; Sam Wilson, o novo Capitão América, como o ASAP Rocky em Long.Live.ASAP; e por aí vai. Destaque ainda para a dupla Homem-Aranha e Deadpool incorporando Eric B. e Rakim em Paid in Full e o Homem-Formiga como o bebê na capa de Read to Die, do Notorious B.I.G.

Tudo muito legal, né? A galera toda se amarrou na ideia?

Então... não. Nem todo mundo.

A iniciativa acabou gerando uma espécie de cisma na imprensa e nas redes sociais da terra do Tio Sam – e aqueles que se posicionaram contra a ideia, em sua grande maioria negros, acusaram a casa dos Vingadores de cometer uma espécie de “apropriação cultural”, fazendo do hip-hop apenas um trampolim, uma “estratégia de marketing”, usando a cultura negra para atrair os brancos. Afinal, a maioria dos artistas homenageados são negros, já que o hip-hop/rap é um movimento cultural típico da cultura negra. E a maioria dos heróis/vilões retratados nas capas são brancos. E mais: a maioria das equipes criativas destes mais de cinquenta títulos é formada por brancos.

“Um problema com a Marvel publicando estas capas com tema de hip-hop sem contratar criadores negros é que...sabe, um diálogo tem duas vias”, afirmou David Brothers, jornalista que atualmente trabalha para a Image Comics, em seu Tumblr. “Axel Alonso disse que a Marvel tem estado em um longo diálogo com o rap, mas isso não é verdade. É um longo monólogo, do rap pra Marvel, mas sem a Marvel devolvendo como deveria ou poderia”. Quando menciona o “monólogo”, Brothers se refere às muitas vezes em que rappers referenciam personagens da editora, como as diferentes ocasiões em que Ghostface Killah menciona o Homem de Ferro ou a máscara de MF DOOM abertamente inspirada no visual do Doutor Destino.

O quadrinista Shawn Pryor, também negro, foi ainda mais duro em suas críticas. “Eles têm personagens negros e gibis com equipes de negros, mas não têm artistas negros. De novo, eles amam a cultura e promovem a diversidade em suas páginas, mas não nos bastidores”, dispara. “Eu entendo que o hip-hop seja mainstream agora. Mas a indústria dos quadrinhos, em sua maioria, ama a cultura negra mas raramente envolve os negros nisso. Eles apenas mordem e vendem isso para os brancos. É algo mais profundo do que remixar uma capa de gibi”. Além de afirmar que grande parte das capas divulgadas até agora servem mais como paródias das capas originais do que como homenagens que “respeitariam o contexto”, ele ainda critica a pouca quantidade de negros que foram convidados para desenhar as capas variantes.

Damion Scott

Damion Scott

Dentre as que foram anunciadas até o momento, temos Damion Scott, Sanford Greene, Khary Randolph, Brian Stelfreeze e Keron Grant, além do latino Juan Doe, do árabe Mahmud Asrar e do filipino Mike Del Mundo.

“Respeito para os poucos artistas negros trabalhando na Marvel agora. Nós vemos vocês. Sabemos que não existem muitos, mas amamos todos vocês”, completa Pryor. “Depois que outubro passar, estas capas variantes de hip-hop vão sumir e eles vão se ligar na próxima grande coisa pra eles”. Embora esteja frequentemente envolvido em suas próprias polêmicas com o movimento feminista, o editor do blog de quadrinhos The Hooded Utilitarian, Noah Berlatsky, ecoa as opiniões de Pryor e Brothers numa coluna bastante dura publicada no jornal inglês The Guardian. Ainda que exalte o Capitão América negro, a Miss Marvel muçulmana e a nova equipe de Vingadores com apenas um sujeito caucasiano, Berlatsky afirma que a Marvel permanece complacente em sua brancura. “Historicamente, a Marvel usa uma metáfora mutante para se referir aos negros”.

Por outro lado, a Marvel resolveu que não ia ficar calada com relação às críticas. Começou, bom, de maneira meio desastrada com o editor Tom Brevoort. Em seu Tumblr, ele foi questionado por um fã anônimo, que dizia “Você pode explicar por que a Marvel acha que as capas variantes de hip-hop são uma boa ideia, quando nenhum dos roteiristas/desenhistas anunciados para estes novos títulos, até o momento, são negros? Corrigir a segunda coisa não seria uma ideia melhor do que a primeira?”. Meio sem pensar, a resposta de Brevoort foi dura e seca. “Mas o que uma coisa tem a ver com a outra?”. Porra, Tom. Aí, não, né?

Sacando que falou bobagem, horas depois ele voltou editando a resposta, desculpando-se por ter escrito de cabeça quente na primeira vez. “Creio que todo mundo que tem lido esta página pelo menos no último mês deve ter uma boa ideia de como eu me posiciono sobre a ideia da representatividade nos gibis, tanto no que diz respeito aos criadores quanto aos personagens. Sempre podemos fazer melhor – e vamos continuar trabalhando nisso”, admite. “Ainda temos muitos títulos para anunciar como parte do All-New, All-Different e, conforme eles forem saindo, creio que vocês verão evidências de nosso compromisso com a representatividade tanto entre os criadores quanto entre os personagens”.

O banco de apostas dos bastidores já dá como certa a formação de uma equipe criativa de negros para cuidar do novo título do Pantera Negra – um gibi que, até o momento, não tinha sido anunciado na primeira leva de All-New, All-Different, mas que foi revelado “quase” que por acaso por Axel Alonso no meio de uma entrevista. Como T’Challa vai ter seu próprio filme em breve, era de se esperar que ele voltasse a ganhar uma revista própria...

A tal entrevista de Alonso para o Comic Book Resources, aliás, serviu como uma forma de defesa a todas as porradas que a editora levou com estas capas variantes desde que foram anunciadas. Fazendo questão de deixar claro que é descendente de mexicanos e, portanto, longe da tal “brancura” da qual vinha sendo acusado (segundo ele, alguns fãs no Twitter disseram que ele seria “racista”), Alonso revela ainda que o hip-hop é uma de suas grandes paixões na vida, ao lado dos quadrinhos e do basquete.

“Esta é uma forma de mostrar não apenas o meu amor, mas também o amor de um monte de gente na comunidade de freelancers da Marvel. O hip-hop inspira um monte de nós, é a trilha sonora de nossas vidas”, argumenta Alonso. “Um monte de gente sabe que o Wu-Tang Clan referencia os personagens da Marvel em suas rimas, mas poucas pessoas sabem quantos artistas da Marvel são intensamente influenciados pela cultura do hip-hop. Estas capas são uma forma de mostrar isso”.

Nas nos escritórios da Marvel, em Nova York

Nas nos escritórios da Marvel, em Nova York

Ele ainda ressalta as respostas positivas que teve dos próprios músicos homenageados em suas redes sociais, vindas de nomes como Darryl McDaniels, fundador do Run D.M.C. (“Cara, vi a capa da Marvel e achei demais! Um clássico!”); Kelvin Mercer, o Pos, integrante do trio De La Soul (“Muito respeito pela Marvel”); e Nas (“Eu cresci lendo os gibis da Marvel, pra mim é um sonho se tornando realidade).

“O que não tinha sido revelado até o momento”, continua Alonso, “é que muitos dos artistas que estão fazendo estas variantes nunca tinham trabalhado com a Marvel antes, e estamos utilizando esta plataforma para mostrar o trabalho deles para os nossos fãs. Quem sabe eles não se tornam parte de nossa próxima onda de talentos?”, provoca.

Tentando dar o assunto como encerrado, ele diz que conversou muito internamente sobre como esta iniciativa serviria como um “relâmpago” para iluminar uma discussão muito maior sobre diversidade nos quadrinhos. “E eu disse que sim, que esta é uma boa conversa para se ter. Toda a indústria dos quadrinhos se beneficiaria de mais diversidade”.

Olha, todo este negócio de abrir as portas para a diversidade é um processo. Um processo de desconstruir anos de pensamentos equivocados com os quais fomos acostumados a respeito das mulheres, dos negros, dos gays. E, na sequência, um processo de reconstrução a partir daí. É entender o quanto de merda você falou e pensou antes e o que pode fazer para tentar ser uma pessoa melhor e menos babaca agora que percebeu a cagada.

Acho esta discussão extremamente saudável. É saudável pra caralho ver a Marvel (e a DC, igualmente) entendendo que o mundo não é formado apenas por um bando de caras brancos, loiros e de olhos azuis – no qual todos os outros são apenas coadjuvantes descartáveis. Ainda que seja aos poucos, devagar, de maneira gradual.

E também acho acho muitíssimo saudável que ela seja questionada a respeito. Que leve estas bordoadas. Para entender onde acertou e onde errou no passado – e onde está acertando e errando nos dias de hoje. É bom que a Casa das Ideias escute. Reflita. E aprenda. Não tem qualquer necessidade de ser reativa. Tudo é aprendizado. Para tornar todo este processo ainda maior, mais inclusivo, mais humano.

Os X-Men que o digam, não é mesmo? ;)