Straight Outta Compton é daquelas produções que MERECEM ser vistas. Que deixam o glamour de lado e vão te dar um soco no estômago pra te tirar a porra do ar.
O grande ATRIBUTO de Straight Outta Compton: A História do N.W.A. é a coragem. Um filme que tem COLHÕES. Uma trama áspera, espinhosa, sem frescuras. Brutal, até. Dois de seus principais protagonistas, os astros do rap americano Dr.Dre e Ice Cube, são produtores do filme – assim como a esposa de outro dos nomes retratados na tela, o falecido Eazy-E. Mas dane-se. Porque o filme não alivia nem um pouco para nenhum deles.
Aliás, Straight Outta Compton não alivia é pra ninguém. É uma história sobre a voz das ruas. E uma voz que fala gritando, em tom ameaçador e falando palavrões. E também é um filmaço. Que justifica totalmente o “inesperado” sucesso de bilheteria que foi na Terra do Tio Sam.
A trama é a cinebiografia do N.W.A., Niggaz With Attitudes, um grupo de rap surgido na pequena cidade californiana de Compton, no condado de Los Angeles, por volta de 1986. O quinteto formado por jovens sem muita perpectiva na vida a não ser uma carreira na música foi um dos precursores do chamado gangsta rap, gênero conhecido por não ter papas na língua ao falar de violência, de crimes, tratando as mulheres de maneira pouco elogiosa e tendo na polícia o principal alvo de suas críticas.
TUDO isso tá no filme. Nem um único detalhe foi suavizado. Assim como estão lá as brigas, as drogas, as armas, as orgias, as bebedeiras, os desentendimentos. Nada é glorificado, tratado como algo lindo ou como um exemplo a ser seguido. Mas também nada é analisado ou problematizado. Pense em Straight Outta Compton (também o nome do explosivo álbum de estreia dos caras, lançado em 1988) como uma fotografia. Sem julgamento de valores. Apenas o retrato duro e frio de uma realidade que transformou um bando de moleques do gueto rapidamente em superstars e ajudou a moldar o que é hoje o hip hop nos EUA: um dos gêneros musicais mais rentáveis da indústria por lá.
Um dos grandes acertos do filme é o elenco, em especial o trio principal. Jason Mitchell transborda arrogância como Eazy-E, enquanto Corey Hawkins (o Heath de The Walking Dead) é a imagem da serenidade e do equilíbrio em sua interpretação de Dr.Dre. Mas quem rouba a cena é mesmo O’Shea Jackson Jr., em seu primeiro papel no cinema, que encarna com perfeição o próprio pai, Ice Cube. Assim que o cantor descobre que está sendo enganado na divisão de dinheiro e resolve deixar a banda, seu papel cresce de tal forma, e seu olhar passivo se transforma em puro ódio, que com absoluta certeza o papai – não por acaso, também aspirante a ator em um bando de filmes de ação e comédias bem mequetrefes – deve ter ficado orgulhoso.
Straight Outta Compton é o retrato duro e frio de uma realidade que ajudou a moldar o hip hop nos EUA
Também estão ótimos, ainda que em pequenas participações especiais, Keith Stanfield como Snoop Dogg e Marcc Rose como Tupac Shakur, grandes nomes que Dr.Dre produziria anos mais tarde, depois de também sair do N.W.A. e começar a trabalhar com a gravadora Death Row do polêmico Suge Knight (aliás, caralho, aplausos para o grandalhão R. Marcos Taylor, que trabalhou as tendências violentas de Knight de um jeito simplesmente assustador).
Straight Outta Compton tem dois pontos altos absolutamente arrepiantes. O primeiro deles é o lendário show em Detroit, no Joe Louis Arena, quando foram avisados pela polícia, antes da apresentação, de que não deveriam tocar o controverso clássico Fuck Tha Police (cujo tema, claro, você imagina qual é). Bom, o fato é que quando Dre, Cube e cia. subiram ao palco, claro, mandaram um “foda-se a polícia” e, depois de um discurso exaltando a liberdade de expressão, soltaram seu “Fuck the police coming straight from the underground / A young nigga got it bad cause I’m brown / And not the other color so police think / they have the authority to kill a minority”. O resultado? Tiros para o alto, a banda inteira detida para “averiguações” e a plateia causando um verdadeiro tumulto e querendo quebrar tudo.
Mais pra frente, a quebradeira também é geral – só que MUITO maior. O motivo, no entanto, foi o mesmo: a polícia. Rodney King, um jovem taxista negro, foi abordado e espancado covardemente por quatro oficiais de Los Angeles. O que eles não esperavam é que a ação fosse gravada de longe e acabasse parando nas emissoras de TV, causando uma revolta em massa da população das periferias de Los Angeles. A revolta se tornaria um tumulto generalizado, um quebra-quebra sem lei, quando os policiais foram absolvidos da acusação de uso excessivo da força.
Enquanto o N.W.A. vai se dissolvendo principalmente por causa da treta entre Eazy-E e Ice Cube, vamos acompanhando a trama em torno de King se desenvolvendo lentamente, de maneira sutil e inteligente, pela televisão, causando indignação nos músicos. Mas em abril de 1992, quando a rebelião explode, por mais que estivessem putos da vida uns com os outros, os seus olhares calados já diziam tudo. E pela primeira vez aqueles músicos que vivem de muitas palavras por minuto estavam em silêncio. Vendo explodir no peito de seus irmãos uma sensação que eles mesmos já tinham explodido nas letras de suas músicas fazia muito tempo.
A cena, infelizmente, é tristemente atual – e lembra muito, por exemplo, os protestos na cidade de Ferguson pela morte de Michael Brown, em 2014, ou aqueles que aconteceram ainda este ano, em Baltimore, pelo falecimento de Freddie Gray. Ambos negros. Ambos mortos pela polícia em condutas violentas e questionáveis. “Freddie Gray fez o que é proibido aos homens negros: olhar nos olhos de um policial”, disse o pastor Jamal Bryant no enterro do garoto de 18 anos.
O discurso misógino dos caras, a coisa da “mulher pra casar e mulher para transar”, é escroto pra caralho – e Dr.Dre, por exemplo, se arrepende dele. Mas a atitude política do N.W.A., esta sim, ainda faz muito sentido nos dias de hoje. Porque ainda é tudo muito real. E não só nos EUA. “A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras. (...) A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo”, diz o começo da letra de Capítulo 4 Versículo 3, clássico dos Racionais MCs que abre os trabalhos de Sobrevivendo no Inferno (1997).
Alguém pergunta lá pro Mano Brown se a cena na qual os caras do N.W.A. tomam uma enquadrada da polícia enquanto fumavam fora do estúdio da gravação, apenas porque sim, não poderia acontecer por aqui. Ou melhor dizendo: se não acontece na nossa periferia sempre. Dia sim e dia também.
Ouvi gente dizendo que Straight Outta Compton é daqueles filmes “americanos demais” e que não daria certo no Brasil, a distribuidora deveria pensar em abortar o lançamento, coisa assim. Mas nem de longe. Aquilo é EUA e também é Brasil. É Compton e também é Capão Redondo.
Pergunta lá pro Mano Brown. Pro Edi Rock. Pro Ice Blue. Pro KL Jay. E pra mais uma porrada de outros sobreviventes.