Diretor compara Homem-Formiga e outros personagens da Marvel com “modinha da semana”, mas se esquece de uma lição lá do passado
Uma das coisas mais legais sobre o mercado de quadrinhos nos EUA é a disputa entre Marvel e DC. No final, muita gente de uma editora já trabalhou na outra, mas, ainda assim, os profissionais curtem se cutucar. Isso num movimento iniciado pelo próprio Stan Lee, que adorava citar a “Distinta Concorrência” em seus famosos editoriais na década de 1960.
Com a Warner Bros. abraçando os super-heróis da editora na forma de um “Universo Cinematográfico DC”, finalmente estamos vendo essa disputa ganhando uma outra dimensão — com um novo capítulo iniciado pelo diretor Zack Snyder, de Batman vs. Superman e responsável por mandar e desmandar nesse novo Universo que estão construindo.
“Eu acho que Spielberg está certo [sobre, um dia, esse tipo de filme acabar]. Mas eu sinto que Batman e Superman transcendem os filmes de super-heróis”, disse Snyder em entrevista ao Daily Beast ao responder os recentes comentários do famoso colega diretor. “Não é um tipo de ‘prato do dia’, como o Homem-Formiga ou, sem maldade, seja lá qual for. Qual é o próximo ‘Homem-Qualquercoisa’?”.
Ok, Zack. Em parte, é possível entender sua afirmação. Estamos falando do Superman, o primeiro super-herói da história (sim, teve outros antes, mas de onde você acha que vem o “super” desses caras?), e do Batman, um ícone reconhecido em boa parte do hemisfério ocidental dessa esfera azul que chamamos de lar. E eles vão estar juntos num filme, coisa nunca feita antes. Fora a Mulher-Maravilha, fechando a presença da Santíssima Trindade da DC.
Mas, na tentativa de dizer que o que você tem nas mãos é único e duradouro, a sua afirmação mostra uma perigosa miopia em relação ao outro lado. Vamos olhar um pouco pro passado, pra você entender melhor.
Eram os anos 60 e quadrinhos eram sinônimo de super-heróis, e super-heróis eram sinônimo de DC Comics (ou, como ainda se chamava na época, National Periodical), que publicava Batman e Superman desde o final dos anos 30 e descobriu toda uma nova fórmula em meados dos anos 50. Só que um certo publisher ficou sabendo sobre o sucesso da revista da Liga da Justiça durante uma partidinha de golf e fez um pedido para o seu subordinado, o editor-chefe. “Quero algo igual”, disse.
O nome do publisher era Martin Goodman. O editor-chefe era Stan Lee. A editora seria, em pouco tempo, a Marvel Comics. E a equipe seria chamada de Quarteto Fantástico.
Aquela equipe fez um sucesso inesperado, fazendo com que a editora finalmente se sentisse confiante em voltar a investir nos super-heróis. Dessa forma, vieram, logo em seguida, Homem de Ferro, Thor, Hulk, Homem-Aranha, o próprio Homem-Formiga... Uma verdadeira explosão, que revolucionou os quadrinhos não pelo volume de lançamentos (veja, nem eram tantos quanto se faz parecer hoje em dia), mas pela linguagem mais jovem, enredos diferentes, uma pegada que não era vista na DC.
É provável que, naquela época, a reação da DC tenha sido muito parecida com essa sua, Zack. Veja: Superman, o gibi mensal, tinha uma tiragem média de 810 mil exemplares em 1960, nos EUA. Em 1962, as quatro primeiras revistas em quadrinhos com as maiores tiragens médias eram do Homem de Aço (Superman, Superboy, Superman’s Girlfriend Lois Lane e Superman’s Pal Jimmy Olsen). Todos os dados lá do Comichron. Era praticamente uma enorme fatia do mercado dominada por um só personagem. Quem poderia desafiar um domínio tão grande, construído (até então) em quase 25 anos de história?
Não ia ser o “Homem-Qualquercoisa” da semana da Marvel, né? Foi.
Em 1969, o Homem-Aranha já tinha uma tiragem média de 373 mil exemplares, mais do que Batman, Adventure Comics e, veja só, World’s Finest, que tinha justamente o encontro entre o Homem-Morcego e o Homem de Aço. Archie (com 515 mil exemplares) e Superman (com 511 mil) eram dominantes, mas a Marvel conseguia uma tiragem mais uniforme entre suas revistas. A balança já pendia pro outro lado, algo que se consolidou nos anos 70 e 80.
Basicamente, dá pra dizer que a DC dos anos 60 dependia de Batman e Superman, enquanto Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko e outros gênios das HQs criaram um universo mais diverso, coeso e interessante para os leitores da época, com uma cronologia interligada. Na soma, valiam mais do que um ou dois heróis solitários.
O que se faz hoje? Se tenta deixar o Superman mais próximo do que a Casa das Ideias começou a fazer do que, necessariamente, o personagem era entre os anos 50 e 60.
Agora, volta pro cinema. Desde o final dos anos 70 a Warner leva os personagens da DC para a tela grande. Tirando algumas raras exceções (como Watchmen e Lanterna Verde), praticamente todos os filmes lançados até o momento são de Batman e Superman. 13 numa lista com 19 no total, algo que sobe pra 16 se você considerar os personagens derivados (Supergirl, Aço e Mulher-Gato).
Sem mencionar, Zack, que, nesse momento, vocês tão se preparando pra lançar Batman vs. Superman e Esquadrão Suicida, sendo que esse último deram uma ~forçadinha pra ter um espaço pra Batman e Coringa. É quase que um samba de duas notas.
Não dá pra chamar os filmes da Marvel Studios de modinha passageira, cara
Enquanto isso, a Marvel Studios fez no cinema algo parecido com o que fez nos quadrinhos. Universo coeso, histórias que conversam com um público amplo, atuais... E sim, apostou em seus ícones. Homem de Ferro, Thor, Hulk, Capitão América e Vingadores são super-heróis com 50 anos de janela. Não dá pra dizer, hoje, que são modinha passageira.
Isso tudo sem considerar Quarteto Fantástico, X-Men e Homem-Aranha, que dividem as mesmas décadas de história e ganharam filmes por Fox e Sony.
No entanto, a Casa das Ideias percebe que não adianta investir sempre nos mesmos, esperando que estes ícones mantenham ainda mais anos de longevidade. É preciso criar novos equivalentes para o Quarteto Fantástico e o Homem-Aranha. E é o que eles estão tentando fazer com Guardiões da Galáxia e Homem-Formiga. E é o que farão, nos próximos anos, com Doutor Estranho, Pantera Negra, Capitã Marvel, Inumanos...
Zack, veja bem: você e a Warner também estão pensando, no futuro, em embarcar nessa de “Homem-Qualquercoisa”, vai, até porque vai precisar deles se quiser construir um verdadeiro “universo”. Flash, Aquaman, Shazam, Ciborgue e até mesmo o Lanterna Verde, que já teve um filme, não são tão populares com o público médio comum, aquele que não lê o JUDÃO ou outros sites do tipo, mas é a maioria. Pra essa galera, tão exatamente no mesmo nível de Thor e Homem de Ferro antes de ganharem seus próprios longas-metragens.
A diferença, veja bem, é que vocês estão investindo em Batman e Superman (e, ok, na Mulher-Maravilha) antes dos outros – com essa galera funcionando como coadjuvante ou “parte da equipe”, como será na Liga da Justiça.
Enquanto isso, a Casa das Ideias já faturou US$ 8,9 bilhões com o próprio Universo, algo que, nesse conceito, vocês ainda tão começando. Não é como se vocês estivessem dominando o mercado, como a DC dos anos 60.
Cara, eu te entendo, juro. Legal. Foi uma provocação, mas talvez fosse mais interessante ir pra linha do “super-heróis não são um gênero, apenas uma forma de contar uma história de ação, drama, humor, espionagem e o que mais você quiser”. É bem melhor que um “deixa eu rebaixar o concorrente” e defender aquilo que você faz.
Até porque, vamos combinar, esses filmes da Marvel podem ser realmente, como você disse, “prato do dia”. Só que eu acho chocolate legal pra caralho e, ainda assim, às vezes como doce de leite. Variar é sempre bom. ;)