Pela segunda vez em poucos meses, uma tradução de gibi Marvel feita pela Panini causa alvoroço nas redes sociais — mas desta vez, a decisão da editora foi absolutamente certeira
Nesta onda recente das threads do tipo “1 like = te conto 1 alguma coisa”, o Érico Assis, um dos mais destacados nomes contemporâneos da tradução de HQs no Brasil, também fez a sua. E além de deixar claro que a tradução não é só do tradutor, porque passa por revisores, preparador, letrista, editor (“Todo mundo mexe no texto”), ele usou uma frase que define muito bem o papo que teremos abaixo: “Tudo é traduzível. Nem sempre a tradução agrada, mas tudo é traduzível”.
Pois é. Era justamente a minha justificativa número 1 quando era questionado porque diabos tinha escolhido esta ou aquela opção no meu glorioso trabalho de batizador oficial de filmes no Brasil (sim, era eu). Mas aí tinha a minha justificativa número 2: nem sempre a tradução literal funciona. Então, é importante uma adaptação que não apenas respeite a língua mas, de alguma forma, reflita o MOMENTO da língua — e as adaptações, cara, tal qual rola quando alguém resolve fazer uma versão de um gibi para as telonas, por exemplo, nem sempre podem agradar. Paciência.
Mas linguagem também é arte. Linguagem também é, de certa forma, parte da nossa cultura pop.
Recentemente, a Panini teve um problema na tradução de um gibi do Homem-Aranha, ao VERTER a palavra “feminist” para “feminina” no texto da camiseta da Harpia. Isso não foi uma escolha deliberada como adaptação. Foi um erro. Uma cagada. Ponto. “Feminina” nem de longe tem o mesmo significado de “feminista”, por mais que você seja destes que acha que a segunda palavra é, na real, um palavrão.
Definitivamente, não dá pra comparar com o que rolou na recente Demolidor #17, também da Panini. Neste pequeno encadernado de 164 páginas, a editora reúne as histórias originalmente publicadas em Daredevil 595-600, com roteiro de Charles Soule, nas quais Wilson Fisk, aka Rei do Crime, é eleito prefeito de Nova York e inicia uma série de políticas públicas para perseguir os justiceiros mascarados. Muito bem. A treta (?) se deu quando um cartaz de apoio ao prefeito, que dizia originalmente em inglês “Fisk Rules” acabou sendo traduzido como FISK MITO.
Se você é brasileiro e não passou o(s) último(s) ano(s) na Lua, com certeza sabe bem a quem a palavra MITO costuma ser usada para adjetivar e, portanto, já imagina o perfil da galera que se manifestou, enlouquecida, contra a decisão da Panini, considerada política e um ataque direto ao atual mandatário.
De cara, já vamos tirar aqui da frente este negócio todo de “deixem a política fora dos meus gibis” porque, olha só, política está em rigorosamente todos os cantos da cultura pop, das suas estimadas HQs de super-heróis até Star Wars e Harry Potter, por exemplo. Neste texto aqui a gente te lembra que Aristóteles, aquele, já dizia com todas as letras que “o homem é um animal político”. Tá com preguiça de ler? Gravamos um já lendário Asterisco INTEIRINHO apenas sobre o assunto.
Aí, tem a questão da adaptação. Vamos a ela. Mas dividindo a conversa em duas partes.
Existe uma questão BEM prática aqui, que é: como diabos traduzir FISK RULES? Você pode fazer uma série de sugestões aqui, talvez “Fisk Detona”, “Fisk Domina”, “Fisk Arrasa”, “Fisk Comanda”, “Fisk é Incrível”, “Fisk é Fodão”... Me diz aí, portanto, qual delas soa como uma pessoa DE VERDADE? Como um cartaz genuíno e autêntico de um ser humano que rabiscou aquilo na cartolina e foi pra rua fazer campanha em nome do seu candidato? Nenhuma destas opções, né? Nada disso é, de fato, autêntico. Aí, a tradução optou por um termo VERDADEIRO, que tem relação direta com o NOSSO recente processo eleitoral.
Lembra quando eu disse que “é importante uma adaptação que não apenas respeite a língua mas, de alguma forma, reflita o MOMENTO da língua”? Então, foi isso que a Panini fez ao optar por FISK MITO.
Mas então a gente parte pra segunda questão, esta talvez um pouco mais complexa...
Em um FIO bastante coerente também no Twitter, o Raphael Fernandes, editor lá na Draco, explica com todas as letras qual é o babado. Afinal, ele recorda que Fisk, outrora o maior mafioso da cidade, antagonista da maior parte dos heróis urbanos da Casa das Ideias, passou a se vender como alguém que mudou. Que limpou a sua imagem e que agora pode atender à grande parte das reivindicações de uma parcela bastante conservadora da metrópole. “Manipulando totalmente a narrativa de quem ele é, do que tem feito e de como tem agido. Sem nenhum viés crítico externo”, explica Rafael. “Seu discurso falsamente moralista e exageradamente conservador, acaba convencendo pessoas cansadas e desmotivadas de que os problemas de suas vidas são uma sociedade injusta pros privilegiados”.
No fim, o Rapha ainda lembra que Wilson Fisk representa tudo o que há de ruim em uma sociedade branca, elitista e corrupta. “Afinal, ele é o maior nêmesis de um jovem filho de imigrantes, que fez faculdade às duras penas e luta para que a vida de seu bairro periférico seja melhor”. Ah, você não lembrava de que ESTA era a história de Matt Murdock? Um cara sem um puto no bolso mas que resolve fazer uma série de atendimentos pro bono pra ajudar os menos favorecidos da Cozinha do Inferno?
Os fãs de determinados representantes de uma ala conservadora por aqui passaram a usar “mito” na acepção daquela narrativa épica de personagens heroicos, que o dicionário descreve como “a representação de fatos e/ou personagens, amplificados através do imaginário coletivo e de longas tradições literárias orais ou escritas”. Mas acontece que na maior parte das vezes, os mitos são “um relato fantástico de tradição oral, geralmente protagonizado por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana”. Sabe que palavra acaba sendo, num certo ponto, associada com “mito”? LENDA.
Alguém que quer manipular a narrativa, a história, para construir a sua própria. Quem viu a ótima terceira temporada da série do Demolidor, por exemplo, deve se lembrar do aterrorizante discurso que Fisk (vivido de maneira soberba por Vincent D’Onofrio) fez diante de seu prédio, tentando limpar a própria barra e jogando a culpa e a SANHA sanguinária da imprensa e da população contra o Homem Sem Medo. A gente fez um texto sobre isso e inclusive colocou a ÍNTEGRA do discurso bem aqui. Mas fica com um trechinho: “Eu sei que muitos de vocês acham isso difícil de aceitar. É só porque vocês foram manipulados, envenenados para acreditar nas mentiras da mídia de que eu sou mau, que eu sou um criminoso. Na verdade, eu sou o oposto. Porque eu desafio o sistema, eu falei a verdade e tentei fazer dessa cidade um lugar melhor, as pessoas no poder decidiram me derrubar”. Você, querido leitor de gibis, SABE quem era o Fisk de verdade. Pois se isso não é alguém claramente construindo um MITO ao seu redor, olha...
“É um discurso que assusta, claramente. Ele assume pra si a narrativa do que é o bem e o que é o mal”, foi como a gente descreveu, na época. Vale também pro posicionamento atual do Fisk prefeito nos quadrinhos. E vale pro mundo real.
Quando esta fase das HQs saiu nos EUA, sabe com quem o Fisk era frequentemente comparado? Um doce pra quem disser que era com o sujeito que se senta na principal cadeira da Casa Branca. E com qual figura tupiniquim este atual presidente ianque vendo sem frequentemente comparado? Apenas faça a matemática para entender que, no fim das contas, a Panini foi certeira na seleção de palavras.
Agora, se você não gostou, bom, é questão de entender que talvez o problema esteja EM VOCÊ. Ou, no caso, no seu candidato que, mesmo depois de eleito, faz questão de não sair do palanque. Aí, a escolha é TODA sua.