147: trazendo as tretas das redes sociais pro mundo real | JUDAO.com.br

HQ independente de Daniel Esteves (roteiro) e Hugo Nanni (arte) mostra o que aconteceria se a polarização de opiniões e a cultura de ódio fossem parar dentro de um Fiat a caminho da praia

O assunto da vez pode ser aborto, redução da maioridade penal, racismo, pena de morte, casamento gay, tanto faz. O fato é que não passa um dia sem que role pelo menos uma treta monstro nas redes sociais que acaba rachando Facebook, Twitter e a porra toda no meio, revelando que aquele seu amigo de infância ou quem sabe seu tio mais querido são, na verdade, defensores de discursos extremistas que arrepiam até os pelos do dedão do pé. E tome textão, tome memes, tome discussões. Mas... e quando isso toma uma proporção que vai parar aí, do outro lado, do lado de fora do computador? Naquele mundo que não é digital, quando aquele taxista resolve discutir sobre como este papo de ciclovia é coisa de “comunista”?

“Muitos reclamam da existência disso nas mídias sociais, mas eu sempre achei muito mais assustador ouvir esse tipo de coisa no mundo real”, explica em papo com o JUDÃO o roteirista Daniel Esteves, responsável pelo gibi independente 147, uma espécie de sátira com os discursos de ódio e como isso acaba se tornando parte das nossas vidas. “Aquela típica situação em que você entra numa padaria, onde está passando algum daqueles programas policialescos toscos, e escuta um tiozão vociferar e pedir pela morte de tudo e todos. E não há argumento razoável que você possa usar para fazê-lo refletir”. Pensando nisso é que surgiu a trama com arte de Hugo Nanni, lançada de maneira independente pela Zapata Edições.

O título é uma referência ao saudoso veículo Fiat modelo 147 em que dois amigos viajam para o que deveria ser um fim de semana de descanso na praia. Papo vai, papo vem, surge o tema da violência urbana e as divergências sobre como lidar com o problema logo ficam evidentes. A amizade acaba ficando em risco, enquanto os autores satirizam os clichês que impedem o debate civilizado sobre questões sociais complexas. Mas a HQ começou de outro jeito...

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“Na verdade essa HQ teve uma construção não muito usual”, conta Daniel. “Há anos entreguei um texto corrido, sem decupar, para o Hugo. Normalmente trabalho com roteiros fechados, decupados em páginas e quadros. Mas esse texto, que era formado apenas por diálogos, foi parar na mão do Hugo e lá ficou por uns anos. Esse ano ele pegou para adaptar aos quadrinhos e desenhar, eu curti muito o resultado e resolvemos fazer uma revistinha com isso”, explica. Mas quando o roteirista foi colocar os balões, percebeu que não gostava mais do texto original. “Eu não podia descartar a história, pois os desenhos estavam ótimos. O meu problema real era com o motivo da briga entre os personagens. No original, era algo banal. Mas na nova versão entrou essa temática do discurso de ódio. Alterei isso, criando praticamente uma nova história. Um processo de trabalho não habitual, mas que gerou um resultado interessante”.

Apesar de 147 não ser necessariamente baseado em uma história real, Daniel diz que já se envolveu em diversas brigas com esta pegada – por mais que evite, a todo custo, transformar a situação em um conflito permanente. “Conforme a vida passa a gente tenta sempre se cercar de pessoas mais razoáveis politicamente. Mas não dá para ignorar o mundo e, a qualquer momento passeando com o seu cachorro, você pode se deparar com um grupo de vizinhos falando alguma coisa absurda. Eu acabo me metendo na história, mas tento ser educado para a coisa não descambar”.

Ele acha, no entanto, que não existe remédio para os conflitos causados por este tipo de polarização. “Acho que nunca houve harmonia real”, opina. “Havia uma segurança maior para ser racista, machista, homofóbico, etc. E de repente parte da sociedade não aceita mais esse tipo de comportamento. A outra parte, que dissemina esse tipo de ódio, começou a reagir, tentar fazer valer a tal ‘liberdade’, apenas para ofender, oprimir e se manter em sua posição de privilégio. Ou as pessoas razoáveis se voltam contra isso, ou seguiremos num mundo sempre injusto”.

Daniel e seu fiel escudeiro Zapata

Daniel e seu fiel escudeiro Zapata

Lançada oficialmente durante a FIQ 2015, a obra é apenas mais uma de um autor que não consegue ficar parado. “Publiquei quadrinhos pela primeira vez em 2002. Em 2003 editei minha primeira publicação independente. De lá pra cá participei de diversas publicações e nunca deixei de editar meu próprio material”, conta, relembrando títulos como KM Blues, São Paulo dos Mortos e Nanquim Descartável.

Professor na escola HQ em FOCO, vencedor do Troféu Angelo Agostini em 2009 e 2012 como melhor roteirista nacional e membro integrante do coletivo de criadores Petisco (nascido das cinzas do Quarto Mundo), Daniel criou o selo para ter mais liberdade de ação. “O selo é de minha responsabilidade, mas óbvio que tem a participação de diversos artistas, já que apenas escrevo e edito, não desenho. No próprio site constam as biografias de outros colaboradores, tais como Alex Rodrigues, Al Stefano, Samuel Bono, Will e o meu cão, o Zapata, verdadeiro organizador de tudo”, brinca.

Mas, claro, ele É o selo. E como bom artista que se torna empreendedor, teve que se virar do jeito que conseguiu. “Eu sou péssimo para cuidar da parte mais burocrática, mas tive que aprender nesses anos todos, pois fazer quadrinhos independentes não é ser apenas artista, mas também organizar todo o processo”, explica, dando a dica para quem está começando. “Eu gosto disso tudo, só não acho que sou tão capacitado a organizar, sobretudo as partes financeiras, quanto sou de escrever e editar uma HQ”.