Quase Famosos faz aniversário ainda como uma das maiores e mais definitivas obras cinematográficas sobre os bastidores do rock, indispensável para fanáticos e colecionadores
“Sempre começa com a música”, afirmou o diretor Cameron Crowe ao AV Club, numa entrevista concedida justamente em setembro do ano 2000, à época do lançamento de Quase Famosos. “Eu primeiro escuto o filme antes de escrevê-lo. Eu diria que, em 80% dos casos, essa é a parte que melhor funciona. (...) A música é sempre o começo. Então, eu ainda sou um jornalista musical”.
É, Cameron, posso te dizer que ambos ainda somos. Embora tenha começado minha carreira no jornalismo escrevendo sobre quadrinhos (ora, vejam), meu maior aprendizado foi na época em que era exclusivamente dedicado à cobertura do mundo musical. Foi quando a minha paixão pelo rock amadureceu, quando aprendi minhas maiores lições sobre o ofício, quando vivi as histórias das quais mais me orgulho.
Depois, fui escrever sobre tudo um pouco. Já escrevi sobre política, economia, esportes. Nos dias de hoje, aqui no JUDÃO, falo sobre cinema, televisão, literatura, até um pouco de games (meu calcanhar de Aquiles nerd, assumo). Mas tudo começa mesmo com música. Quem acompanha meus textos logo percebe isso – eu vivo fazendo referências musicais, busco letras que complementem o meu pensamento. Sempre que escrevo pro JUDÃO, faço isso ouvindo a trilha sonora que acho mais apropriada para o tema. Este texto, por exemplo, saiu ao som de Lynyrd Skynyrd.
E é exatamente por isso que Quase Famosos acaba sendo um filme tão especial para mim. Porque este jornalista de entretenimento aqui ainda é, na essência, na alma, um jornalista de música.
Aos 15 anos, Crowe mergulhou numa bem-sucedida carreira como jornalista especializado em rock diretamente de sua cidade-natal, a bela e sensacional San Diego. Seu mentor não poderia ter sido mais especial: Lester Bangs, crítico musical que fez sucesso com seus textos na Creem e na Rolling Stone, além de ter sido o responsável por cunhar o termo “heavy metal”, usado para batizar a sonoridade de bandas como Black Sabbath, Deep Purple e Led Zeppelin.
Crowe começou a publicar artigos no Los Angeles Times, depois na Playboy... e, ainda adolescente, foi convocado para fazer parte do elenco fixo da revista Rolling Stone. Logo ele escreveria perfis de titãs como Zeppelin, Neil Young, Bob Dylan, David Bowie. Caiu na estrada com o Yes e depois com a Allman Brothers Band. A profissão ficaria em segundo plano quando um estúdio de cinema o convidou para roteirizar a adaptação para os cinemas de Fast Times At Ridgemont High – livro escrito pelo próprio Crowe, aliás. Pronto.
Obviamente, Quase Famosos é o que se pode chamar de um filme semi-autobiográfico. Muito do que rola com o jovem William Miller (Patrick Fugit) no filme realmente aconteceu com Crowe – sim, ele foi o mais jovem correspondente da história da Rolling Stone, porque mentiu a idade para o editor sênior. Sim, ele perdeu a virgindade com um grupo de groupies. E sim, quase morreu num incidente dentro de um avião, enquanto registrava a turnê de uma banda de rock. Aliás, a mão que escreve no caderno durante os créditos iniciais do filme é do próprio cineasta, assim como são de sua coleção pessoal os discos de vinil que William herda de sua irmã mais velha.
Quase batizado de Untitled, em homenagem ao quarto álbum do Led Zeppelin (a DreamWorks acabou vetando a ideia), Quase Famosos traz uma das bandas fictícias mais reais do mundo do cinema. O Stillwater carrega traços de nomes como o próprio Zeppelin e ainda Eagles, Allman Brothers, The Who e mesmo o Lynyrd Skynyrd que me serviu de trilha aqui. Para fazer com que os atores parecessem realmente autênticos rockstars, Crowe contou com a ajuda de Peter Frampton, que chegou até a escrever duas canções do Stillwater – o restante ficou a cargo do próprio diretor. Mas as guitarras de Russell Hammond (Billy Crudup, que quase perdeu o papel para o Brad Pitt, vejam vocês) foram verdadeiramente gravadas por Mike McCready, do Pearl Jam, que já tinha ajudado o diretor em Singles, um de seus filmes anteriores.
Aliás, algumas das frases icônicas do filme também tiveram origem nas realidade – quando Russell diz “Just make us look cool”, Crowe foi buscar um pedido de Glenn Frey, um dos fundadores dos Eagles, quando ele entrevistou a banda para a Rolling Stone. E a clássica sequência do músico subindo no telhado e gritando “I’m a golden god” veio de ninguém menos que Robert Plant, que fez o mesmo na sacada do chamado Riot House – apelido que o hotel Hyatt na Andaz West Hollywood, em Los Angeles, ganhou pela quantidade de confusões que as estrelas do rock hospedadas por lá aprontaram. “Eu nunca disse esta frase”, desmente depois, sóbrio e envergonhado, o personagem no filme. “Bem, eu disse”, respondeu o próprio Plant, durante uma exibição de Quase Famosos para a qual foi convidado.
A Penny Lane de Kate Hudson também foi baseada em um sem número de groupies famosas da vida real, como Pamela Des Barres (escritora que se tornou parte da vida dos Rolling Stones durante um longo período) e Bebe Buell (mãe da Liv Tyler). Mas, claro, sua principal fonte de inspiração foi mesmo Pennie Trumbull, que depois assumiu o nome de Pennie Lane por causa da canção dos Beatles. Atualmente uma empresária do ramo do marketing e filantropa, nos anos 1970 ela chegou a fundar um grupo de jovens garotas chamado Flying Garter Girls, cujo objetivo era viajar junto com algumas bandas da época e, pelo menos em teoria, ajudá-los na divulgação de seus shows em cada cidade.
A produção custou lá seus US$ 60 milhões, incluindo uma gorda fatia de US$ 3,5 milhões só para garantir os direitos autorais das canções da trilha – e acabou rendendo apenas US$ 33 milhões em bilheterias nos EUA e mais uns US$ 15 milhões em territórios internacionais. Não foi, digamos, um grande sucesso comercial. Mas, além de ter garantido o único Oscar da carreira de Crowe até o momento, de melhor roteiro original, também ajudou a catapultar a trajetória de Kate Hudson, transformando-a em uma estrela de primeira grandeza em Hollywood. E tornou-se uma pequena pérola, cultuada por um séquito fiel de fãs não apenas de cinema, mas de grandes histórias sobre o mundo das bandas clássicas do rock setentista.
“Por alguma razão, as pessoas não estavam lá muito empolgadas para ver um filme sobre rock”, disse Crowe, um ano depois do lançamento, para a EW, a respeito da bilheteria de estreia. “Na verdade, nosso filme sobre 1973 foi surrado por um filme realmente de 1973. A edição especial de O Exorcista nos chutou para fora dos cinemas. Mas a gente vem encontrando nossa audiência cativa desde que saiu. As bandas que assistem sempre amam. Ainda estamos por aí”.
Além de uma película sobre as loucuras dos roqueiros, no entanto, Quase Famosos funcionou também como uma sessão de terapia para Crowe. Porque foi uma forma de retratar a briga entre sua mãe e sua irmã (interpretada por Zooey Deschanel!) e tentar uma reaproximação entre elas. “Eu e minha irmã vimos o filme juntos. E eu vi que ela estava aliviada, dizendo ‘Não consigo mais segurar isso tudo por tanto tempo’. Ela disse que o filme a ajudou a superar”.
Tanto é que, numa entrevista para a revista Billboard, ele afirmou que finalmente conseguiu fazer com que as duas se acertassem justamente graças ao filme, num momento que lembrou bastante o café da manhã de reconciliação que é possível ver no final da trama, na telona. “Talvez eu nunca mais faça na vida algo que tenha um efeito colateral tão importante”, diz ele. “Se alguém me perguntar qual é a verdadeira recompensa de se fazer cinema, eu diria que é fazer as pessoas que assistem entenderem de verdade sobre o que eles são”.
As grandes histórias podem não ser aquelas que a gente enxerga à primeira vista, afinal. Mas que elas sempre vão vir embaladas por uma boa trilha, ah, isso vão.