Depois de quase 50 anos, finalmente a série clássica do Homem-Morcego ganha a atenção que merece com um box em Blu-ray – revelando que sempre foi um ponto importante da mitologia do personagem
SAN DIEGO ~ Um homem e sua barriguinha SALIENTE, vestindo colã cinza, capa e capuz/máscara azul escuro. Ele andava por aí de forma meio estranha, sempre ao lado de um garoto de roupa colorida, uma calça cor da pele só pra parecer que estava com as pernas de fora e com um linguajar bizarro, cheio de “santo isso”, “santa aquilo”. Juntos, eles viviam “grande aventuras” contra gente ainda mais estranha – e, no final de cada episódio ímpar, esses dois caras se metiam numa situação aparentemente sem saída. Sem saída até o próximo episódio, no mesmo bat-horário, no mesmo bat-canal. Na na na na na ♫ Batman!
Foi assim, em 12 de janeiro de 1966, que o Homem-Morcego fez a sua estreia na televisão. A partir daquela data, a cultura pop mudou por causa daquela dupla meio estranha, que era chamada de “Dinâmica”. Uma mudança cuja importância tentamos ignorar, jogar pra baixo do tapete como se fosse uma sujeira incômoda. Não é. Batman, o clássico, o de 66, vive. Os seus efeitos são sentidos até hoje – e, depois de décadas e décadas, estão sendo finalmente reconhecidos.
E, por reconhecido, entenda: finalmente a série clássica está inspirando diversos produtos licenciados, um gibi e, a cereja do bolo: um box com todos os episódios remasterizados e em Blu-ray, com lançamento programado nos EUA para 11 de novembro – e chegando ao Brasil no mesmo mês.
“Nós tínhamos a ação e a festa para as crianças e os elementos satíricos para os adultos”, contou Adam West, o eterno Batman, num painel sobre a Batman de 66 na última Comic-Con. Outro reflexo da importância resgatada: West contou isso em pleno Hall H, o maior espaço da SDCC e reservado aos grandes filmes e séries (e que naquele momento não estava totalmente cheio, infelizmente), ao lado de Burt Ward (o Robin) e Julie Newmar (a Mulher-Gato mais conhecida na série, mas não a única).
“Ação? Pfff”. Tá, beleza, você aí, do seu sofá, fica pensando que aquilo tinha NADA de ação. Ao contrário. Se você levar em consideração como se fazia TV naquela época, os atores deram literalmente o sangue pelo nosso entretenimento. Ward, por exemplo, contou que foi obrigado a fazer uma cena de ação no episódio piloto simplesmente porque o dublê que conseguiram não era nada parecido com ele – e o ator quase quebrou o dedo no processo. Horas depois ele estava no hospital, na primeira de várias visitas nos anos seguintes. Queimaduras, tosses, machucados, tudo era comum. “Naquela época, usavam fumaça colorida. Burt e eu tínhamos que respirar isso e era terrível”, contou West.
As primeiras imagens da série em Blu-ray também foram reveladas durante o painel na SDCC. Diferentemente do que a Paramount fez com Jornada nas Estrelas, não houve retoques nos efeitos especiais – até porque, vamos combinar, eles eram feitos de forma artesanal e são parte do charme da série. O trabalho se limitou a resgatar os rolos originais e fazer com que os discos tenham uma qualidade de imagem no nível de um filme ou série atual. Foram mostrados inclusive um comparativo em tela dividida, com a imagem original das reprises da TV (e da versão pirata que existe no Brasil) e a remasterizada lado a lado. Tudo ganha uma nova beleza, uma nova cor, mais brilho. E mais galhofa, claro!
Com tanta qualidade de imagem, ficará mais claro, por exemplo, o bigode do ator Cesar Romero, o Coringa. “Quando ele tinha 23 anos, se apaixonou por uma mulher mais velha e deixou o bigode pra dar sorte”, contou Julie Newmar. “Cesar achava que devia toda a carreira ao bigode”, completou West. Por isso, o ator nunca mais tirou aquele bigode, obrigando a equipe de maquiagem a escondê-lo. Era algo que passava despercebido numa TV de tubo da época, mas que, agora, vai ficar bem claro.
Pois é. No maior trabalho do ator, ninguém tinha reparado naquilo. Até agora. E ele dando crédito ao bigode...
A alta definição também será uma oportunidade de ver porque a Mulher-Gato de Julie Newmar se tornou a sex symbol de uma geração. “Você fazia o meu cinto de utilidades ter agitações curiosas”, definiu Adam West. Aliás, a sexualidade era algo presente na série, por mais que não fosse o foco dos produtores – eles chegaram a até tentar lutar contra isso em alguns sentidos. “A Tia Harriet foi adicionada na história porque nós éramos dois caras usando calças justas e vivendo juntos. Alguém achou que isso era suspeito”.
Bom, nos olhos da galera de hoje, não acho que a presença da Tia Harriet mude muita coisa nessas suspeitas, mas... ¯\_(ツ)_/¯
Nos extras do box que foram exibidos no painel, o tom é de valorização dos feitos da série. Em Na Na Na Batman!, gente importante dos quadrinhos e da TV relembra aqueles tempos e como o programa trouxe uma verdadeira explosão de fãs do Batman. Ficam nítidos uma nostalgia e um agradecimento por tudo o que foi feito, o que vai contra o discurso da DC até recentemente – que era aquela coisa de “cara, lutamos décadas e décadas para acabar com a imagem de que o Batman era camp”.
Ok, claro, agora que a série está nas mãos da Warner, não cabe bem criticá-la. Porém, percebe-se que não é apenas da boca para fora. É um amadurecimento surgindo.
No total, são 6 featurettes que exploram também os bastidores da produção pela própria visão de Adam West e Burt Ward. Isso fora todos os 120 episódios da série, que serão reunidos em 3 discos. Haverá também uma edição limitada com uma miniatura do Batmóvel, uma réplica do livro de anotações do Adam West, cards e um guia de episódios.
O ano de 1966 foi especial pra TV. A Família Addams e Os Monstros deixavam a telinha, enquanto Jornada nas Estrelas e o Batman chegavam. Era o momento final da transição do preto e branco para a cor na televisão – e mesmo séries que continuaram no ar, como Perdidos no Espaço, Jeannie é um Gênio e A Feiticeira, ganharam a nova paleta RGB. Claro, pro olhar de 2014, o que essas séries tinham em comum é bem claro: a explosão da cor, o exagero. Tudo pra impressionar o público com a nova tecnologia. Mal comparando, é como os filmes 3D que ficam te jogando coisas na cara de 5 em 5 segundos.
Era também uma época de um boom artístico. Andy Warhol havia iniciado o seu processo de ver arte naquilo que, antes, era ignorável. Latas de sopas Campbell’s, notas de dólar, Marilyn Monroe e Elvis Presley: tudo era uma manifestação da arte. Assim como o cinema, do qual Warhol pegou emprestada a profusão de cores que já havia marcado essa mídia na década anterior e até se aventurou nela, fazendo os próprios filmes.
Enquanto isso, nos quadrinhos, tínhamos uma enorme autocensura, vinda dos anos 50 por conta do livro A Sedução do Inocente e o Código de Ética (uma história que já contamos aqui no JUDÃO). Depois de uma fase marcada pela ficção científica e enredos bobos, a DC lutava para conseguir um espaço que deixasse o Batman mais sério novamente, enveredando pouco a pouco pelo lado detetivesco do personagem. Era, no entanto, um esforço ainda inicial.
Por tudo isso, é fácil entender as escolhas do produtor executivo William Dozier e do produtor Lorenzo Semple Jr. quando passaram a ter a missão de produzir uma série de TV com o Homem-Morcego bem no meio disso tudo. A influência artística era gritante, o orçamento era baixo e havia a necessidade de produzir algo para todos os públicos – experiência vivida na década anterior pela série As Aventuras do Super-Homem, que não foi pra frente quando se levava a sério e conquistou o sucesso e as crianças quando passou a ser mais solta e divertida.
Isso faz de Batman um retrato de uma era com seus enredos exagerados, soluções simplistas e onomatopeias a rodo (como esquecer dos “Soc!”, “Pow!” e “Zlott!”? SENSACIONAL! :D), tornando-se algo que ficava marcado na retina das crianças, do imaginário popular, se tornando parte importante da mitologia do personagem. Se o Batman é o que é hoje em dia, se deve a essa série. Digo mais: os quadrinhos e a própria cultura pop devem muito àquela produção sessentista.
Mas os anos passaram, o comportamento humano mudou. Com o tempo, as barreiras que não permitiam os enredos mais sombrios caíram. A DC foi empreendendo essas mudanças no Batman dos gibis, mas percebia que o senso comum era dominado por aquele Homem-Morcego com o rosto (e a barriguinha) de Adam West – até porque, pro grande público, meio que “dane-se” o que rola nas HQs, considera uma “mídia menor”, infelizmente. Cresceu, assim, aquele sentimento negativo de muita gente da indústria dos quadrinhos em relação à série, diria que uma rejeição, achando até que a visão do grande público em relação aos “comics” era por causa do programa. Na esteira disso, as HQs foram no lado oposto. Tivemos a grandiosa O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller; e o arco Morte em Família, com o assassinato do segundo Robin pelas mãos do Coringa. Tudo bem sombrio, mais adulto. Nos cinemas, a Warner produziu um novo filme do herói em 1989 que recorria ao estilo noir, não ao camp – que acabou sendo resgatado na década seguinte, mas aí o papo é outro.
Ao mesmo tempo, aquele Batman de 1966 era renegado a reprises e mais reprises obscuras na TV aberta e, depois, na TV paga. Por conta de um rolo jurídico, a produção se viu em um verdadeiro limbo no mercado de home entertainment – com Fox e Warner sem saber qual das duas tinha o direito de lançar a série em BD e DVD. Só que tudo isso foi contribuindo pra aquela imagem meio largada, que foi aumentando o mito do Batman de 66 com as gerações que foram chegando.
Só que ao chegar aos 75 anos, o Cavaleiro das Trevas finalmente alcançou sua maturidade. A síndrome de negação em relação a série dos anos 60 é passado e, hoje, é senso comum que o Batman não é apenas UMA representação, mas sim uma união de TODAS elas – incluindo a versão da TV dos anos 60, os gibis dos anos 50, os filmes dos anos 80 e 90, os longas dirigidos pelo Christopher Nolan... É um verdadeiro repositório de ideias, de versões, de imagens. O personagem “ganhou status de lenda folclórica”, como bem definiu Frank Miller em outro painel da San Diego Comic-Con, chamado Batman 75: Legends of the Dark Knight.
Inclusive, nesse mesmo painel da SDCC, o roteirista britânico Grant Morrison revelou que foi por meio da série dos anos 60 que conheceu o Batman, experiência vivida também por Scott Snyder, mais jovem e atual roteirista do Homem-Morcego nas HQs. “Quando eu era criança, aquilo era sobre vida e morte”, explicou Snyder. Pois é. Pra todos nós, quando crianças, aquilo era sobre salvar o mundo. Pros adultos, é sobre galhofa. Como querer entretenimento mais “família” do que isso? :D
No caso dos dois quadrinistas, a produção foi a porta de entrada. Morrison contou que, instigado pela TV, procurou os gibis e conheceu a grande fase de Denny O’Neil e Neal Adams, fazendo-o entrar de vez nesse universo e querer trabalhar como roteirista. Snyder revelou que foi O Cavaleiro das Trevas que o fez ver o herói com outros olhos. No final, Morrison e Snyder retroalimentaram esse próprio universo, redefinindo o Batman das duas décadas com novos conceitos e o reaproveitamento de tantos outros – tudo motivado pelo olhar que viveu aquele mundo camp.
“Batman é um personagem muito grande, um diamante multifacetado como qual você pode fazer qualquer coisa e fazer isso funcionar”, definiu Frank Miller. “Você pode fazer comédia, você pode fazer programas de TV no estilo camp, você pode fazer a versão mais sombria possível – é como aquele diamante. Você pode atirar contra as paredes, você pode jogá-lo contra o teto e não vai quebrar. Tudo funciona”. Tudo mesmo. Desde o Cavaleiro das Trevas que carrega o corpo de um ensaguentado Robin nos braços a até um colorido, exagerado, capaz de inspirar a maior redublagem underground no Brasil. Sim, estou falando de Feira da Fruta.
Pra fechar, mais uma frase do Miller: “Batman é sexy”. Sim, ele é. Está comemorando 75 anos de quadrinhos, daqui a pouco faz 50 de TV, mas continua deixando todos nós apaixonados – não importando a roupa que ele use. ;)