E isso está longe, muito longe, de ser uma coisa ruim
O diretor francês Luc Besson, subestimado em comparação aos seus confrades norte-americanos, sempre soube fazer ótimos filmes com boas doses de ação – e, em sua grande maioria, protagonizados por personagens femininas fortes e muito interessantes. Basta lembrar da Nikita de Anne Parillaud, da infante Mathilda vivida por Natalie Portman em O Profissional ou da esquisita Leelo da ficção científica O Quinto Elemento, interpretada por sua musa Milla Jovovich.
Logo, quando foi anunciado o filme Lucy, no qual Besson coloca Scarlett Johansson sob os holofotes, justamente quando a moça celebra sua parcela ruiva mais badass nos filmes da Marvel, era de se esperar que todo mundo juntasse 2 + 2. “Putz, Lucy é um filme de ação no qual Scarlett Johansson chuta as bundas da bandidagem durante duas horas”.
E o trailer do filme não ajuda muito em NÃO criar essa imagem...
Só que então. MUITA calma nessa hora. Esqueça esse papo de que Lucy é um filme de ação no qual Scarlett Johansson chuta as bundas da bandidagem durante duas horas. Porque não é isso que Lucy é. Pelo menos, não SÓ isso. Essa sinopse simplificada só ajuda a reduzir um filme que, em dado momento, envereda por um lado mais reflexivo que lhe dá um tempero bem diferente e pode até causar algum estranhamento. Estranhamento, aliás, que pode acabar assustando parte do público. O sujeito que entra despreparado na sala pode tomar um susto. :) Pra mim, o susto foi bom. Gosto de filmes que me incomodam, que me tiram do lugar comum, do conforto da poltrona. Manja Clube da Luta? Sem querer criar comparações gratuitas (“ó, o cara do JUDÃO disse que Lucy é tão brilhante quanto Clube da Luta”), mas veja: Clube da Luta não é um filme sobre um circuito ilegal de lutas. Isso é só o começo. Só o pano de fundo, o ponto de partida para questionar a nossa ânsia por querer consumir e acumular cada vez mais. A porradaria é pano de fundo para o questionamento.
Então.
Não quero acabar com a graça de ninguém, mas preciso contar: as grandes cenas de ação do filme estão todas expostas, de uma forma ou de outra, neste trailer. A fuga do cativeiro, a perseguição de carro, a invasão ao covil do malfeitor oriental, o corredor repleto de capangas armados que ela coloca pra dormir. Mas tudo bem. Elas são sequências ótimas, muito divertidas, com ótimo timing e uma pitada de humor. Mas depois de, sei lá, uns 40 minutos de exibição, Lucy se liberta destas amarras da adrenalina e da testosterona e Besson se permite contar um outro tipo de história, uma reflexão sobre o futuro da humanidade, sobre como existe muito mais para ver do que a gente consegue enxergar.
Um dos primeiros diálogos do filme afirma que Lucy, a personagem-título vivida Scarlett Johansson, é também o nome dado a um fóssil de Australopithecus afarensis de 3,2 milhões de anos, uma fêmea que talvez seja o nosso mais antigo ancestral direto. A moça, uma estudante e aspirante a atriz/modelo/algo assim tentando carreira em Taiwan, não dá muita bola quando um de seus casos, um trambiqueiro que faz serviços ocasionais para poderosos de moral questionável, conta esta história – mas ela vai voltar a incomodar Lucy mais pra frente. Quando a moça topa, a contragosto, levar uma valise de conteúdo misterioso para um tal Sr.Jang (Choi Min Sik, o personagem principal do Oldboy original, aqui incrível no papel de vilão) em seu hotel, ela acaba envolvida em uma trama internacional para transportar uma nova droga sintética para milionários compradores na Europa. Lucy se torna, ao lado de outros gringos desavisados, uma “mula” – pacotes da substância azulada são colocados em seu corpo a contragosto e ela vai ter que fazer com que a encomenda chegue ao seu destino.
Mas, obviamente, algo acontece no meio do caminho, antes que Lucy embarque – e a tal droga (no caso, feita a partir de uma substância natural que mulheres grávidas produzem na sexta semana de gestação, chamada CPH4) acaba vazando na corrente sanguínea da moça. Os efeitos colaterais? Ela passa a desbloquear a sua capacidade cerebral, ampliando brutalmente suas habilidades, inicialmente apenas as físicas. Se o ser humano normal usa apenas 10% de sua capacidade cerebral, o que ele faria se fosse capaz de ampliar esta porcentagem? Com este ponto de partida, Besson começa a costurar um filme de super-heroína da Marvel sem precisar usar qualquer um dos integrantes do plantel da Casa das Ideias.
Além de tirar Jang de seu caminho – causando, é claro, um processo de emputecimento do camarada, que tem métodos pouco sutis de lidar com a vida, todos eles envolvendo muito sangue e chumbo – Lucy vai viajar pelo mundo em busca das outras doses da droga, impedindo que elas caiam em mãos erradas. E enquanto acessa ainda mais outras regiões de seu cérebro, a moça vai ficando cada vez mais racional e menos sentimental, deixando de sentir dor e/ou pena, experimentando sensações completamente novas. É aí que entra em cena o eterno “mentor do herói” de Hollywood, Morgan Freeman, que vive o professor e pesquisador Samuel Norman, especialista em pesquisas sobre o potencial cerebral humano. É em busca deste homem que Lucy vai para descobrir o que pode acontecer com ela se os 86 bilhões de neurônios do cérebro humano fossem ativados de uma só vez…
O material oficial do filme diz que, nesta jornada, enquanto é perseguida pelos incansáveis capangas de Jang, nossa Lucy “vira a mesa e se transforma em uma guerreira”. Tsc, tsc. Não, gente, nada poderia estar mais longe da verdade. Depois que Lucy tem seus primeiros contatos com o professor Samuel, a trama passa a enveredar por um lado mais existencial, de uma garota que não queria nada daquilo entendendo que pode ser mais do que qualquer ser humano na Terra. Sim, tem lá os seus momentos de ação, os seus tiros, uma espécie de tensão sexual com o policial francês Pierre Del Rio… Mas isso é acessório. Porque os novos poderes de Lucy vão além da habilidade de chutar bundas. Ela passa a ter controle sobre o próprio corpo e também sobre os corpos alheios. Pode acessar as memórias mais profundas dos outros. Pode enxergar e controlar ondas sonoras, magnéticas, elétricas, gravidade. E pode ver como as coisas funcionam – incluindo o sublime processo de absorção de energia do solo diretamente por uma árvore.
Este é o ponto. É neste tipo de momento de observação que o filme acerta em cheio. É quando Lucy passa a questionar o nosso papel como seres humanos, o quanto nos desenvolvemos tão pouco em comparação ao tamanho do universo ao nosso redor. Tem tanta coisa acontecendo, tantas energias vibrando, tantas pequenas lutas pelo crescimento e pela evolução acontecendo entre as plantas de um jardim ou os micróbios flutuando no ar, que a gente não imagina, simplesmente porque estamos preocupados demais com as buzinas dos carros parados no trânsito. Quando ela encontra um grupo de cientistas liderado por seu amigo Samuel, a discussão que se segue beira o filosófico. Onde o ser humano poderia chegar se parasse de enxergar o micro e começasse a pensar no macro?
Tudo bem, sabemos que existe uma corrente de neurocientistas que afirmam que este papo de que a gente só usa 10% do nosso cérebro é uma balela, um mito criado e fomentado pela indústria da auto-ajuda (“ah, você pode ser melhor, mais criativo, mais bem-sucedido”), devidamente desmentido pelos caras do Mythbusters, inclusive. Mas isso é um filme, vá. E, dentro da ideia da película, a história toda funciona amarradinha. Deixemos a discussão real de lado por um momento e vamos curtir a pseudo-ciência da cultura pop.
O final, ah, o final, é um caso à parte. Enquanto o pau está comendo ao seu redor, Lucy consegue alcançar 100% de sua capacidade cerebral e... maluco, eis que Besson pira até não poder mais. A garota entra em uma verdadeira viagem de espaço-tempo, absolutamente não-linear, um mergulho quase que lisérgico, um estudo de imagens que, num primeiro momento, podem parecer aleatórias. Mas fazem total sentido. Eu acho. :)
Quando as luzes da sala de cinema se acendem, tudo que você consegue pensar é “caraca, mas que final pirado foi este?”. Confesso que passei horas, depois da exibição, afundado em meus pensamentos sobre como minhas preocupações diárias, minhas dores de cabeça sobre contas a pagar, podem ser pequenas em comparação ao todo. Me fez pensar. Refletir.
Lucy não é o filme que você queria. Não é o filme que você imaginava. Mas talvez seja o filme que você precisava.