A partir desta semana, quadrinista brasileiro é protagonista de exposição especial no Itaú Cultural, em São Paulo
Dos chamados “Los Tres Amigos”, tríade máxima de quadrinistas brasileiros que fez história na lendária revista Chiclete com Banana, meu preferido sempre foi o Angeli, com seu sarcasmo cinza e casmurrice assumida. Personagens como o Bob Cuspe e Os Skrotinhos foram parte importante da minha formação como leitor de gibis, um tipo de leitor pré-adolescente e cheio de espinhas que aprendia que o mundo das HQs era muito mais do que apenas super-heróis, patos falantes e meninas baixinhas, gorduchas e dentuças.
Sinceramente, nunca fui lá muito com a lata do trabalho do finado Glauco, cujo Geraldão sempre me soou tosco não apenas no traço, mas no resultado final das piadas: era tudo menos sutileza e mais grosseria. Mas preciso confessar que, nos últimos anos, o paulistano Laerte Coutinho subiu tanto no meu conceito que, arrisco dizer, tomou o posto do Angeli. O cara refinou o seu estilo narrativo a um ponto que passou a flertar com o non-sense e com o poético, com o onírico, mergulhando de cabeça nas referências literárias e deixando parte de seus fãs confusa e outra parte maravilhada. Eu me incluo nesta segunda metade.
Dá muito prazer ver o que ele vem publicando em seu espaço diário em jornais como a Folha de S.Paulo (que merece parabéns pela coragem, aliás). É uma das partes mais mágicas e singelas do meu dia. Do crítico incendiário e esquerdista da época dos Piratas do Tietê, ele foi tornando-se um observador delicado do cotidiano. No meu ponto de vista, tudo começou com o Homem-Catraca, um de seus personagens mais fantásticos – mais até do que o Overman, por mais que meus instintos marvetes relutem em admitir – e com uma abordagem inicial mais provocativa. A mudança já se fazia presente em sua obra, cada vez menos óbvia.
Na comparação com a Santíssima Trindade dos quadrinhos gringos, Glauco sempre foi uma espécie de Frank Miller: pouco papo e muita ação, do tipo “vou esfregar isso na sua cara”, splash page. Para o Angeli, ficou o papel de Alan Moore – mal-humorado, por vezes meio ignorante e genial. No caso do Laerte, a comparação com o Neil Gaiman de Sandman não poderia ser mais apropriada.
É este Laerte, do alto de seus 63 anos, com seu saiote e as pernocas de fora, que ganha uma exposição especial chamada Ocupação Laerte. Inaugurada na capital paulista no último sábado (20) no Itaú Cultural, na Av. Paulista, a mostra reúne mais de dois mil trabalhos feitos pelo artista a partir da década de 1970, desde a participação de Laerte no movimento sindical até a mudança de estilo a partir de 2004 e o ativismo em prol do movimento LGBT. Com curadoria de seu filho Rafael Coutinho, Ocupação Laerte fica em exposição até dia 2 de Novembro, de terça a sexta das 9h às 20h e sábados, domingos e feriados, das 11h às 20h.
Depois de concluir, em 1968, o Curso Livre de Desenho da Fundação Armando Álvares Penteado, Laerte chegou a estudar comunicação (jornalismo) e música na ECA, dentro da USP, mas nunca chegou a se formar. Mas foi aí, no ambiente universitário, que se iniciou sua trajetória nos quadrinhos – junto com o camarada Luiz Gê, fundou, nos anos 1970, uma revista universitária chamada Balão, que ajudou a revelar uma série de talentos naquela época. Profissionalmente, começaria a trabalhar com ilustrações em 1970, ao desenhar o personagem Leão para a revista Sibila – o que o levaria a trabalhos ocasionais para títulos como Banas e Placar.
Em 1974, começou uma virada em sua carreira. Foi quando foi publicado seu primeiro trabalho para um jornal, uma charge na finada Gazeta Mercantil – abrindo um relacionamento com uma mídia que se estenderia até os dias de hoje. Neste mesmo ano, ganhou seu primeiro prêmio, na edição inaugural do Salão Internacional de Humor de Piracicaba. E foi também em 74 que sua inspiração marxista começou a falar mais alto, levando a se envolver com movimentos sociais/sindicalistas/políticos. Fez material de campanha para o MDB; desenhou um personagem para a publicação oficial do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. E chegaria até a fundar, quatro anos depois, uma agência chamada Oboré, em parceria com jornalista Sérgio Gomes, que era especializada em produzir material especificamente para sindicatos.
O prestígio que o artista tem hoje começou a ser moldado na década de 1980, quando começou a colaborar nas revistas da chamada Circo Editorial. Foi neste período que começou a trabalhar com as tiras e as histórias mais longas dos Piratas do Tietê – que apareceriam inicialmente em Chiclete com Banana (editada pelo Angeli) e Geraldão (editada pelo Glauco), além da publicação-título da editora, a Circo. Mais tarde, ele lançaria a Piratas do Tietê, sua própria revista – em cujas páginas começariam a surgir personagens como os Gatos e Fagundes, O Puxa-Saco. Mesmo com o fim das revistas, Laerte se manteria em plena atividade. No seio de suas colaborações para O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo, surgiriam a paródia de super-heróis Overman, a doce artista circense Suriá (com foco no público infantil) e a sua brilhante representação de Deus, que não é assim tão onipotente...
Laerte ainda faria, com igual talento, uma passagem importante pela televisão. Como roteirista, colaborou com o marcante programa humorístico TV Pirata, até hoje uma referência de comédia anárquica, experimental e sem amarras. Também faria parte da equipe de roteiristas do programa infantil TV Colosso, talvez um dos últimos programas infantis na televisão aberta, fora da tela da TV Cultura, que sabia fazer humor para crianças respeitando a inteligência dos pequenos.
A partir da década de 2000, Laerte passou a questionar a si mesmo como artista – e, por que não dizer, como ser humano. Aos poucos, começou a abandonar o humor focado em personagens e começou a se dedicar a outros tipos de narrativas, explorando metalinguagem, non-sense, um quê de absurdo. Começou a misturar traços, a questionar a dinâmica dos três quadrinhos das tiras de jornal, a usar simbologias diferentes – às vezes falando menos e sugerindo mais.
Em 2004, Laerte aproveitou a tira de Hugo Baracchini, o personagem que ele usava para fazer piada do homem contemporâneo, brincando com a já nascente dependência tecnológica, para criar a situação abaixo.
“Joguei a tira do Hugo na qual ele se vestia de mulher gratuitamente, não estava fugindo da máfia nem nada. Ele simplesmente se veste de mulher e sai à rua”, conta Laerte, em um papo aberto com a Revista Trip. Ele revela que a tira chamou a atenção de uma crossdresser, de uma travesti, que lhe mandou um e-mail e disse “será que você não tem isso também?”. Funcionou como uma porta aberta, que colocou uma pulga atrás da orelha do artista. “Foi em 2004 que eu percebi que essa ideia estava desvinculada de qualquer fantasia, era uma vontade mesmo. Vontade de frequentar a área cultural do outro gênero, o reservado das mulheres”. Demoraria, no entanto, mais cinco anos até que Laerte resolvesse adotar o estilo de vestimenta pelo qual é conhecido hoje – e também para que Hugo se transformasse na Muriel das tiras atuais.
Mas o principal ponto de mudança aconteceria no ano seguinte, em 2005. Foi quando, num acidente de carro, Laerte perdeu Diogo, 22 anos, um de seus três filhos. Laerte se transformou de vez. A dor de uma tragédia tão repentina o fez passar por uma das mais significativas reviravoltas dos quadrinhos nacionais – quiçá até do mundo. Começou pelas tiras da Ilustrada, o caderno de cultura do jornal Folha de S.Paulo. Os personagens caricatos foram sumindo, dando lugar a visões mais filosóficas e poéticas sobre o mundo. Um tipo de humor que, por vezes, pode nem parecer necessariamente humor.
Tudo bem, o caso é o seguinte: Laerte passou a se apresentar, em suas aparições públicas, com roupas femininas. Saias, meias-calças, saltos altos, brincos, unhas pintadas. É o que se chama tradicionalmente de crossdresser – um homem, geralmente heterossexual, que gosta de usar vestimentas de mulher. O diretor de cinema Ed Wood, mestre dos filmes trash como Plan 9 From Outer Space, é outro exemplo célebre desta prática. Eu poderia dizer ainda que esta postura é nitidamente um ato de protesto do cara, totalmente alinhada com as últimas obras que ele publica. Mas, sinceramente, existe esta necessidade? Eu preciso defender a sexualidade do cara, qualquer que ela seja? Por quê?
Isso faz dele um artista menos relevante ou talentoso? Isso justifica ficar dizendo “putz, não creio, o Laerte virou uma bichona” ou “perdi totalmente o respeito por ele” – mencionando apenas duas frases que li em fóruns de sites especializados? Ele poderia ter se assumido metaleiro, punk, fã do Restart, vegetariano, lésbica, garoto de programa, feirante, vestibulando, repórter do programa do Datena, fã da Hebe. Nada disso importa. Nada disso muda o fato de que ele é um dos meus ídolos. Tudo isso são escolhas pessoais, às quais o Laerte tem direito como qualquer um de nós. Isso não apaga a constatação de que a recente virada no tom dos seus trabalhos (que já eram fantásticos, leia-se bem), o tornou ainda mais genial, mais relevante, mais intenso, mais moderno, mais reflexivo. Esteja ele usando roupa de homem, de mulher ou um cosplay de Sailor Moon.
“Neste labirinto que é a sua obra, existe uma figura que ronda, tal como no mito do Minotauro”, diz o texto escrito por Rafael para um dos pedaços do labirinto na Ocupação Laerte. Inquietação ou angústia, um superego solto, uma entidade sem sexo, que ataca, acuada. (...) Pode ser o próprio Laerte, criatura entre nós”. A referência, que tem sido usada frequentemente para se referir ao trabalho recente do autor (e dá até nome ao seu blog), fala sobre “os vários Laertes, as diferentes carreiras dentro da carreira de quadrinista”. E tem uma origem muito clara: a história chamada Minotauro, publicada na revista Geraldão entre 1987 e 1989, na qual o herói se torna o próprio Minotauro depois de matar a criatura mitológica.
Alguns descrevem esta fase de Laerte como estranha. Eu a descrevo como especial e única.
O Laerte de hoje em dia se diz em crise. Pode parecer egoísta, mas nós agradecemos.