Cronenberg: consumismo, paranoia e horror | JUDAO.com.br

O cineasta lança seu primeiro romance, Consumidos, sob influência de sua bagagem cinematográfica

Se o nome David Cronenberg não traz nenhuma memória à cabeça, talvez alguns de seus filmes sim: A Mosca (1986), Videodrome – A Síndrome do Vídeo (1983), Scanners – Sua Mente Pode Destruir (1981), Marcas da Violência (2005), Senhores do Crime (2007), Um Método Perigoso (2011), Cosmópolis (2012). Estes são só alguns de uma extensa obra que varia e mistura gêneros, mas o cineasta é muito conhecido por sua abordagem para o horror, pela forma como retrata a violência e o sexo e, esporadicamente, por se aventurar em filmes mais experimentais e conceituais.

Com 71 anos, o diretor canadense resolveu se aventurar em outras paragens: Consumidos (Alfaguara, 304 páginas), seu primeiro romance, foi recentemente lançado no Brasil e no exterior. Na trama, o casal de jornalistas Naomi e Nathan acaba envolvido na investigação de um crime bárbaro: o filósofo francês Aristide Arosteguy matou sua esposa, a também filósofa Celéstine, a fez em pedaços e depois comeu. Seu paradeiro agora é desconhecido. Nisso, Naomi embarca em uma aventura atrás de um furo único, mas tanto ela quanto Nathan vão encontrar coisas muito diferentes do que imaginavam.

Insetos invasores de corpos, impressoras 3D realistas, pênis tortos em 90 graus, a Coreia do Norte e até pancadaria no júri do Festival de Cannes são alguns dos elementos deste romance que começa em uma espiral ascendente e nunca volta a descer. Mas se você está procurando um romance policial, calma: talvez este não seja o livro pra você. Cronenberg é conhecido por ser viajandão e seu romance de estreia é, em uma palavra, frito. Uma vez que a insanidade e o absurdo começam a entrar – inclusive com algumas passagens falando de Samuel Beckett, um dos dramaturgos mais importantes do teatro do absurdo – ela aumenta exponencialmente.

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O consumo, inclusive, não está só no nome, mas permeia tudo o que acontece no romance, até em sua forma narrativa. Todos os personagens principais são geeks, fascinados e dependentes de alta tecnologia, seja das câmeras que os jornalistas usam para fotografar, seja dos aparelhos auditivos dos idosos filósofos franceses. Cronenberg, inclusive, faz questão de citar por nome TODOS os modelos de aparelhos, carros e máquinas que aparecem na narrativa e ainda dá detalhes: suas diferenças, o que elas fazem e como. O que entra em outros dois aspectos que estão por toda parte: fetiche e erotismo.

É quase um talento do autor: a forma como descreve as máquinas, os objetos e a forma como as personagens se relacionam com elas. Muitas vezes, elas estão numa situação que não seria sexy sob nenhuma luz, e mesmo assim, ele é bem-sucedido em erotizá-las. Tudo isso em grande parte acontece por causa dos personagens, não exatamente dos protagonistas, que como jornalistas às vezes parecem apenas testemunhas, mas o mundo ao seu redor é pintado com cores fortes.

É impossível não destacar o casal Aristide e Celéstine, inspirados descaradamente em Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, notórios por se envolverem sexualmente com seus alunos – assim como sua contraparte ficcional – , fato que acaba sendo de suma importância na trama. O autor disse que sua obra cinematográfica não tem a ver com o livro, mas isso é mentira.

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David Cronenberg

Pra quem viu seus filmes, vários elementos serão reconhecidos. O terror corporal, os cientistas loucos e a medicina como deturpação de A Mosca e Gêmeos – Mórbida Semelhança; a fascinação tecnológica, o fetiche que vira sina de Videodrome; e a exaltação unida à crítica do consumismo de Cosmópolis. Conforme a paranoia cresce, é possível fazer vários paralelos sobre o consumo em nossa vida e como ele é: no fundo, até relacionamentos podem ser uma relação de consumistas.

O canibalismo que move o enredo inicial nos leva a ver nossos próprios hábitos de consumo como algo se não canibalesco, ao menos perverso, torpe, se escondendo atrás de várias facetas diferentes, da intelectualidade dos Arosteguy e até das lentes antropofágicas das câmeras fotográficas de Naomi. Acaba que não importa muito como, se fisicamente, moralmente ou psicologicamente, seremos consumidos. A parte assustadora é que isso pode não ser como você pensa e nem precisa ser algo ruim.

Se você é fã do diretor, não tem erro, será fã de Consumidos. Se você não conhece seus filmes, pode ler com a cabeça limpa, mas tenha a mente aberta de que neste romance, nada é o que parece e nem se caminha nas direções que você espera. Rápido e frenético, é um livro que, assim como tudo ao seu redor, deve ser consumido ávida e vorazmente.