O personagem, criado nos anos 60 pelo inglês Mick Anglo, se tornou um verdadeiro marco dos quadrinhos dos anos 80 – e, tirando algumas edições esporádicas, era uma grande ausência nas bancas brasileiras. Era.
Miracleman. Ou Marvelman, se você for mais purista. Um dos super-heróis mais marcantes dos quadrinhos britânicos nos anos 80 – e que foi vítima, nas últimas décadas, de um dos maiores rolos jurídicos da história desse mercado, tirando-o das vistas de toda uma geração. Algo que finalmente está resolvido, o que tornou possível não só o relançamento do personagem nos EUA e na Terra da Rainha, como também a correção de um grande erro no mercado brasileiro. Sim, o Miracleman, da grande fase de Alan Moore e Neil Gaiman, finalmente está chegando aos brasileiros pelas mãos da Panini em uma revista mensal em banca.
Talvez você não saiba, mas “rolo” é uma expressão que faz parte da trajetória desse herói. Na real, tudo começou na Inglaterra dos anos 50, quando uma editora chamada L. Miller & Son republicava por lá com sucesso as histórias do Capitão Marvel produzidas pela Fawcett Comics nos EUA. Sim, é aquele mesmo Capitão Marvel que fala Shazam! e que foi acusado de plágio do Superman pela DC. Esse foi um processo complicado e, por mais que a Fawcett estivesse certa, os custos da batalha com a editora do Homem de Aço exauriram a empresa justamente numa época de queda de vendas. Como resultado, a editora deixou o mercado, colocando o herói num limbo por mais de vinte anos. Os coleguinhas britânicos ficaram sem ter o que publicar, lá pelos idos de 1953.
É aí que entra a sacada da L. Miller & Son: se eles não tinham o Capitão Marvel, bora então criar uma versão própria do personagem. Foi o que eles encomendaram para o quadrinista Mick Anglo, que criou o Marvelman. Billy Batson dava lugar a Micky Moran, um jovem repórter (de um jornal chamado...Clarim Diário) que encontra um astrofísico que dá a ele poderes baseados na energia atômica, nada de magia. Afinal, estamos falando do início da Guerra Fria e do medo nuclear. ;) A partir daí, Micky só precisa gritar “KIMOTA!” (atomic, com k e de trás pra frente) para se transformar.
A estreia aconteceu em Marvelman #25, aproveitando a mesma publicação do antigo Capitão Marvel. Pouco depois vieram o Kid Marvelman e Young Marvelman, criando a Família Marvelman, tal qual existia com a contraparte estadunidense. As histórias seguiam um clima inocente típico das HQs que vinham da Fawcett e que também era comum nos gibis dos anos 50 e 60. A grande diferença, na real, é que as publicações seguiam o estilo britânico ao sair semanalmente ao invés de mensalmente.
Foi um sucesso, claro, afinal adicionaram todos os elementos de sucesso do Capitão Marvel ao estilo deliciosamente infantil do Mick Anglo, atingindo diretamente a garotada numa época em que tinham menos formas de se divertir. Esse Marvelman alçou outros voos pelo mundo, chegando inclusive ao Brasil. Foi entre 1953 e 1967, quando a editora RGE publicou algumas poucas histórias, alternando as aventuras do Capitão Marvel com as do Marvelman – meio que como se nada tivesse acontecido, inclusive colocando o herói inglês na capa com as cores trocadas, pra ficar igual à versão ianque, e chamando-o de Jack Marvel, ~parte da Família Marvel. :D
A L. Miller & Son fechou as portas em 1963, após o governo do Reino Unido finalmente liberar a importação de gibis. Sem conseguir competir com o material mais moderno e colorido que vinha da Terra do Tio Sam, o Marvelman morreu.
Até aqui, essa poderia ser a história de mais um personagem que surgiu, viveu e morreu na Era de Prata dos Quadrinhos. Temos algumas dezenas de casos – aqui no Brasil, inclusive. A diferença é que na época o editor Derek “Dez” Skinn, da Quality Communications, resolveu lançar uma revista mensal, P&B, só com antologias. E parecia uma boa ideia retomar com o Marvelman, simplesmente...porque era o Marvelman, ainda bem conhecido entre os leitores. O nome da revista? Warrior.
Buscando um roteirista, Skinn deu de cara com um tal de Alan Moore. Ele havia feito algumas coisas desde os anos 70, escrevendo para fanzines, pra 2000AD e pra Doctor Who Weekly. Parecia uma boa aposta, até porque a própria presença do herói ajudaria a vender uns exemplares a mais. A arte ficou a cargo de Garry Leach.
A escolha não poderia ser melhor – e não só porque o contato entre o editor e o quadrinista também trouxe nada menos que V de Vingança logo para a primeira edição da antologia. Moore entendeu que, como ele, quem tinha 10 anos ao ler Marvelman nos anos 60 já estava na casa dos 30 – e essas pessoas adorariam ver o retorno do seu antigo herói, mas com enredos mais adultos, que fizessem sentido para eles. Por isso reencontramos um Mick Moran (sem o “y” do diminutivo) mais velho, casado, sombrio. Por anos, o passado como super-herói foi apenas um pesadelo, um sonho com um final trágico que ele descobre abruptamente que foi real.
O retorno foi um sucesso, claro. A Warrior botou o nome de Alan Moore em evidência, reviveu o Marvelman e se tornou um marco para os quadrinhos numa época de explosão criativa na Inglaterra. Em pouco tempo, eram os britânicos que estavam influenciando o que saía nos EUA, e não mais o contrário.
Mas quem disse que a vida era fácil para o Mick Moran? A Marvel Comics ficou incomodada com o nome Marvelman em capas de revistas, por mais que a Casa das Ideias só tenha assumido esse nome depois do personagem. Ao mesmo tempo, Alan Moore entrou numa briga financeira com Skinn. Assim, a última história do Marvelman foi publicada em Warrior #21. A revista acabou cinco edições depois.
Pouco tempo, mas o suficiente para os leitores do passado também verem o retorno do Kid Miracleman, agora um adulto sociopata que mantinha todos os poderes do passado. Era o sidekick que havia se tornado um vilão, algo ainda inédito nos gibis. A violência visual também era bem marcante, com o protagonista matando assaltantes carbonizados, por exemplo.
Depois de um hiato, Skinn licenciou o herói para editoras dos EUA. Primeiro pra Pacific Comics, depois pra Eclipse Comics. Foi nessa época que, pra evitar problemas com a Marvel, mudaram o nome do personagem para Miracleman.
As histórias acabaram, o que fez com que a Eclipse abordasse Alan Moore para produzir novas. Na arte, botaram gente como Chuck Austen e Rick Veitch. O material inédito começou em Miracleman #6 e contou com os roteiros de Moore até o número 16, quando ele saiu de vez.
Substituir Alan Moore – que, a essa altura, já era o cara que havia dado Watchmen ao mundo – não era fácil. Por isso, a Eclipse chamou outro roteirista britânico de grande potencial: Neil Gaiman. O cara chegou aproveitando o gancho final da fase do Moorepara fazer algo que seria uma trilogia. A primeira parte, chamada Era de Ouro, explorou a utopia que era liderada pelo Miracleman e que foi criada na edição anterior. Menos sobre os heróis em si, mais sobre as pessoas comuns que viviam nesse mundo que não era exatamente perfeito e dominado por seres superpoderosos. Enquanto isso, o herói ia perdendo a humanidade que havia tido um dia.
Depois dos seis capítulos de Era de Ouro, Miracleman trouxe as duas primeiras partes de Era de Prata, mas o gibi foi cancelado mais uma vez, agora por conta da falência da Eclipse – o que também fez com que a terceira parte da tal trilogia, Era de Bronze, nunca saísse da mente do roteirista. Miracleman Triumphant, um spin-off desenhado pelo brasileiro Mike Deodato, também foi pro limbo.
Como você pode ver, os direitos de publicação do Miracleman/Marvelman nunca foram muito claros. Nos aos 50 e 60, por exemplo, Mick Anglo chegou a colocar um © junto ao nome dele nos gibis. Depois, nos anos 80, Dez Skinn teria adquirido os direitos (algo negado por Anglo) e, depois, os licenciado para a Eclipse – o que não impediu a editora dos EUA de repartir esses direitos com os quadrinistas que produziram as histórias, incluindo aí Neil Gaiman e Alan Moore.
Em 1996, Todd McFarlane, aquele mesmo do Spawn, comprou os direitos da Eclipse, incluindo o Miracleman – fazendo o rolo ficar ainda mais enrolado. McFarlane? Parece estranho o envolvimento dele, né? Calma. Eu explico.
Pouco antes, em 1993, McFarlane convidou alguns roteiristas e artistas para produzir edições especiais do recém-criado Spawn. A edição 9 foi justamente a vez do Gaiman, que, genialmente, criou os personagens Spawn Medieval, Angela e Cogliostro. Em pouco tempo todos se tornaram importantes na mitologia da Cria do Inferno e Gaiman passou a exigir os ganhos pelo uso desses personagens, e não apenas por Spawn #9.
Dizem que McFarlane comprou a Eclipse justamente pra usar como barganha. Já em 1997, tudo parecia estar resolvido. Um acordo foi redigido, com Gaiman abrindo mão dos direitos dos coadjuvantes que criou para o Spawn em troca do Miracleman, mas o documento nunca chegou a ser efetivado. Foi aí que a luta nos tribunais começou.
Foi uma batalha bem longa. McFarlane se viu proibido de reimprimir a edição do Gaiman – e, depois, de usar a própria Angela. Ele chegou a avisar que colocaria o Miracleman naquele universo do Spawn, mas não conseguiu executar o plano. Por outro lado, Gaiman viu adiado o sonho de ao menos completar a trilogia que tinha para o super-herói inglês. Em certo momento a Justiça mandou que os dois parassem com a briguinha, dividissem igualmente 50% das edições e criações, e pronto. Ainda assim, a confusão continuou com apelações e mais apelações.
Em 2001 foi criada por Gaiman a Marvels and Miracles LLC, uma empresa empenhada em levantar recursos para a disputa nos tribunais. Em 2001, o roteirista escreveu a série 1602 pra Marvel, dando os ganhos que teve com a HQ para a Marvels and Miracles. “Para o Todd, por fazê-la necessária”, colocou Gaiman na dedicatória.
Só que... Lembra lá atrás, quando disse que Mick Anglo afirmava nunca ter vendido os direitos do Marvelman? Assim a Eclipse não poderia ter cedido parte dos direitos para o Gaiman, nem vendê-los para McFarlane – que, na real, teria apenas comprado o copyright do nome Miracleman e do logo nos EUA. Sabendo disso, a Marvel Comics, de forma hábil, foi até a Inglaterra, assinando um acordo diretamente com o Anglo e garantindo os direitos pra si.
Em 2009, durante a San Diego Comic-Con, a Casa das Ideias anunciava com orgulho: o Marvelman era dela.
Ou não.
O acordo da Marvel resolveu parte do problema: as antigas histórias dos anos 50 e 60 seriam deles e, em pouco tempo, estavam sendo reimpressas nos EUA em encadernados. Mas o rolo jurídico ainda tornava inviável a republicação da fase dos anos 80 ou de novas histórias. Também começaram a dizer que, bom, Anglo não poderia vender algo que não tinha, já que ele seria só um contratado da L. Miller & Son...
A esperança é a última que morre. Quando parecia tudo estar perdido, Neil Gaiman e Todd McFarlane finalmente resolveram a questão jurídica, isso em 2012. Pelo acordo, o britânico não só conseguiu os direitos do Miracleman, como também da Angela. Com isso em mãos, ele costurou um novo acordo com a Casa das Ideias. Angela se tornou parte do Universo Marvel AND a editora pode finalmente republicar a melhor fase do herói maravilhoso (ou milagroso).
Pra essa retomada, a Marvel prometeu publicar tudo até a edição 25 – até hoje inédita, a última escrita por Gaiman nos anos 90 -, mas é difícil imaginar que vão parar por aí. Tanto é que, no último 31 de dezembro, publicaram a primeira edição inédita do personagem em 20 anos. All-New Miracleman Annual #1 saiu com uma HQ feita com base em um roteiro escrito por Grant Morrison na década de 80, mas que foi vetada por Alan Moore (que, como bem sabemos, tem uma ancestral birra com o escritor careca). Morrison guardou a história e a Marvel, claro, pediu para usar a dita cuja – só que a liberação veio com uma condição: que Joe Quesada desenhasse.
A história traz um esboço do famoso estilo de Morrison, numa aventura que pode ser vista até de forma descolada da série mensal do personagem. Na edição, o Kid Miracleman aparece em sua fase mais louca e sem limites, resolvendo uma treta do passado. Longe da qualidade do que era feito na época, longe do que o Morrison pode fazer agora. Ainda assim, representativo.
Digamos que o já explicado rolo jurídico fez de Miracleman um nome raro nas bancas brasileiras. Ainda no final dos anos 80, a desconhecida editora Tannos publicou as quatro primeiras edições em formato de minissérie e utilizando, para o personagem, o nome que haviam dado nos anos 50, Jack Marvel.
Fora isso, nada.
Com os direitos de republicação nas mãos da Marvel, a Panini pôde finalmente publicar esse material por aqui. Isso finalmente aconteceu em dezembro, em Miracleman #1, só que aproveitando o atual formato de publicação da Marvel e que é bem “tropical”, cá entre nós. Ou seja, revista mensal “mix”, misturando histórias de fases diferentes, de Anglo e de Moore – que, aliás, vem creditado como “o escritor original”.
Explica-se: Moore não se sente confortável em receber qualquer dinheiro por essas histórias, já que o personagem não foi criado por ele, ou mesmo deseja se sentir cúmplice de toda uma batalha jurídica, que, na visão dele, teria roubado algo que sempre deveria ter sido de Mick Anglo. Por isso, como o próprio Moore contou pro The Beat, o barbudão assinou um contrato que não permite à Marvel citar seu nome ao republicar estas histórias.
O lance de ser uma revista mensal, por um lado, é ótimo. Se a editora simplesmente tivesse resolvido lançar tudo como encadernado, seria algo mais caro, talvez inacessível para todo mundo que deveria ler essas HQs. Inclusive com uma provável distribuição exclusiva em livrarias, nos privando novamente do nome Miracleman na banca. Só que, bom, publicar uma história por edição não é exatamente como a banda toca no Brasil. Foram, até hoje, casos raros do tipo, com justamente o Spawn sendo o exemplo mais longevo.
A aventura que abre esta edição brasileira inaugural é de 1956, mas na versão republicada nos EUA em 1985 pela Eclipse – que, basicamente, adicionou cores. O nosso herói vai até o “futuro”, os anos 80, cheios de tecnologia e no qual ele precisa evitar que um vilão volte no tempo e conquiste a Terra de 56. Bobinha, divertida e interessante justamente por revelar como a galera do passado via os “futuros” anos 80.
Isso é potencializado pela HQ seguinte, com o retorno oitentista do herói-título pelas mãos de Alan Moore, publicada em Warrior #1. Afinal, AQUELA era a década de 80, muito diferente da utopia imaginada por Anglo. Longe dos tempos heroicos do passado, Mick Moran é assombrado por suas aventuras, mas sem nenhuma memória delas. É aí que o épico começa.
O gibi ainda reproduz a história que saiu em Warrior #2, com Moran tentando entender o que aconteceu e revelando a verdade para esposa – que, como ele, nunca ouviu falar em Miracleman até então.
Depois, a edição continua com três histórias clássicas do então Marvelman, ainda nos anos 50. As duas primeiras inclusive são de Marvelman #25, com a primeira aparição do herói pós-Capitão Marvel.
A parte negativa desse formato é que, por mais que ele funcione bem para os colecionadores de quadrinhos que querem consumir o material, ele fatalmente afasta as clássicas e infantis histórias do Mick Anglo justamente do público... infantil. Talvez essa fase mereça, depois, um encadernado exclusivo por estas bandas.
Outro detalhe é o preço. R$ 8,20 por 68 páginas – sendo boa parte delas em P&B – parece exagero, principalmente quando lembramos que a editora vende outros gibis com o mesmo número de páginas por R$ 6,50. Enfim, são detalhes pequenos, pouca coisa pra ofuscar o retorno das maravilhas e dos milagres à cultura pop brasileira.
Então... KIMOTA! :)