Por conta de alguns trocados na participação dos lucros dos personagens, a editora pode estar matando futuras iniciativas criativas dos próprios quadrinistas da casa
Créditos. Provavelmente você conhece isso como aquele monte de nomes que aparece no final dos filmes, antes daquela aguardada cena pela qual você espera por intermináveis minutos, normalmente enquanto conversa com quem tá do seu lado, verifica os e-mails ou comenta “nossa, que idiota” sobre aquele cara de camisa polo e gola levantada que levantou e saiu da sala, mal o filme tinha acabado — tudo enquanto, é claro, você ignora sumariamente aquele monte de letras que passeia pela tela. Mas créditos não são SÓ isso — há muita, MUITA discussão sobre ordem em que aparece, com qual destaque aparece, SE aparece... Créditos podem valer muito, MUITO dinheiro.
E é por isso que o quadrinista Gerry Conway — um dos criadores do Justiceiro e responsável, por exemplo, pela da morte da Gwen Stacy — não está nada, nada feliz.
Basicamente, Gerry alega que mudanças ocorridas na DC após a criação da DC Entertainment acabaram com as remunerações pelo uso de diversos personagens criados por ele e que estão sendo usados na TV. São propriedades criadas pelo cara, que rendem lucro para a DC e que, agora, não rendem nada pro cocriador. No máximo, um cheque de US$ 1000 mostrando o “apreço” pela “contribuição”.
Mas a história é um pouco mais longa (e antiga) que isso. Diferente da TV e do cinema, histórias em quadrinhos surgem da mente de poucas pessoas. Originalmente, do artista e do roteirista. Com o tempo, os editores também ganharam importância, assim como os grandes planejamentos editoriais, mas ainda é a equipe criativa que bota a mão na massa, transformando conceitos abstratos em novos personagens e enredos.
Só que isso cria um conflito: quem é dono daquela propriedade? A editora que publicou, ou os caras que criaram? Dá pra ir longe nessa disputa: começou logo com o Superman, o primeiro super-herói, concebido por Jerry Siegel e Joe Shuster, um caso famoso que chama a atenção, que tem muito dinheiro em jogo. Agora pense no caso do Conway, um quadrinista que começou cedo nessa brincadeira de gibis e criou histórias marcantes tanto na Marvel quanto na DC. Tem muita coisa ali pra se ter direito, apesar de não ser nada tão icônico quanto o Azulão.
“Há muitos anos a DC Comics estabeleceu o primeiro programa para prover aos criadores das histórias em quadrinhos uma parte das receitas geradas por suas criações em outras mídias”, explica o Conway. “Este conceito ficou conhecido como ‘Participação do Criador do Capital’, e isso era um pequeno mas significante passo na compensação dos criadores por seu trabalho além de um pagamento por página [que é o padrão da indústria]. Para mim, pessoalmente, foi moderadamente lucrativo. (Valeu, Bruce Timm, por colocar o Killer Croc na série animada do Batman)”, conta. “Mas nos últimos tempos isso também se tornou cada vez mais um frustrante e, recentemente, irritante processo”.”
Antes, a DC Comics era uma editora parte de um conglomerado maior, visto apenas como um repositório de personagens e que publicava gibis, mas sem necessariamente ter lucro diretamente. Quem dirigia tudo era Paul Levitz, um roteirista respeitado, que também criou os seus personagens e que revitalizou a DC com foco em boas histórias – incluindo aí a criação do selo Vertigo.
Em 2009, pressionada pelo fim dos lucros em outros setores, pelo sucesso da Marvel Studios e pela compra da Casa das Ideias pela Disney, a Time-Warner tirou Levitz do cargo de Presidente e Publisher da DC Comics. Foi então fundada a DC Entertainment, chefiada por Diane Nelson (a responsável por converter Harry Potter em $), e a mensagem ficou clara: lucro. E isso refletiu no reboot dos gibis e pela ampliação das ações com os personagens em outras editoras. E, claro, afetou o dinheirinho recebido pelos quadrinistas.
A partir de agora, todo e qualquer personagem “derivado” não dá mais direito a participação no capital. Um exemplo é a Poderosa, criada pelo próprio Conway, Ric Estrada e Wally Wood e que rendia uma grana pra eles no passado. Após as mudanças internas, ficou definido que ela é uma derivação do Superman, já que é a Supergirl da Terra-2. Dessa forma, a editora conclui que a personagem, por não ser uma criação original, não precisa render dinheiro nenhum aos seus criadores.
E essa história é repetida: nos anos 40, a National Periodical Publications (a empresa que antecedeu a DC) alegou que o Superboy era só uma derivação do Superman, personagem do qual eles compraram os direitos. A Justiça decidiu que não, o Superboy era um personagem “único”, e que a NPP tinha mesmo infringido as leis de copyright.
Precedente aberto, sim, mas absolutamente ignorado. A DC continua considerando que criações derivadas, como o Superboy e a Poderosa, por mais “únicos” que sejam, não são nada além do que uma “versão” do Superman e, portanto, não deve dinheiro nenhum a quem os criou.
Isso significa que os herdeiros de Siegel e Shuster recebem essa grana, certo? Não. Porque, ao mesmo tempo, considera que nem Shuster nem Siegel criaram os personagens — o que faz bastante sentido. E aí começa um círculo vicioso, com um monte de dinheiro espalhado em volta dele, que ninguém põe a mão.
É, literalmente, como se ninguém tivesse criado esses personagens, o que Joseph Heller chama de Ardil 22. Da Wikipedia: “uma situação paradoxal, na qual uma pessoa não pode evitar um problema por causa de restrições ou regras contraditórias.1 Frequentemente, essas situações são tais que solucionar uma parte do problema só cria outro problema, o qual acaba levando ao problema original. Situações de “ardil-22″ frequentemente resultam de regras, regulamentos ou procedimentos aos quais um indivíduo se submete, mas não pode controlar”.
Edição BR de Ardil-22, encontrada por Desmond em LOST. Nela, havia uma cópia da foto dele com a Penny...
O que fez com que Gerry Conway reclamar, especificamente, é a vilã Nevasca, que foi criada nos gibis pelo Conway e pelo Al Milagrom. Recentemente, no reboot, uma nova Nevasca foi introduzida, criada por Sterling Gates e Derlis Santacruz e com o alter-ego de Caitlin Snow – sim, a personagem de The Flash. Conway recebe algo? Não, já que não é a personagem que ele criou. Gates e Santacruz também ficam sem nada, por ser apenas uma “derivação”. Com argumentos diferentes, a DC dá desculpas e dá a atender que os personagens surgiram do nada. Que o dinheiro é da empresa e de mais ninguém.
Ainda dá pra receber a tal participação de capital, se você REALMENTE criou o personagem, mas agora a DC te obriga a checar ANTES dos lançamentos pra saber se tem algo com eles – e isso vale pra qualquer coisa, desde um personagem de uma fala numa série a um adesivo de caderno. Se só viu depois, perdeu: não fazem pagamentos retroativos. E só pagam se concordarem com você, claro.
Pra provar seu ponto, Conway fez a requisição sobre os pagamentos da Nevasca / Caitlin Snow. E a resposta é impressionante: “Nós recebemos seu pedido sobre Caitlin Snow, mas você não tem direito a receber nada sobre a personagem, já que ela apareceu primeiro em Fury of Firestorm. Dito isso, se Caitlin Snow eventualmente se tornar a Nevasca em The Flash, você receberá participações por ela. Os criadores da Caitlin Snow NÃO podem receber também, já que a personagem deriva da Nevasca, criada por você e Al Milgrom”. ¯\_(ツ)_/¯
Pagamentos por personagens assim não devem (ou, ao menos, não deveriam) representar muita coisa no caixa dessas empresas. Esse tipo de ação acaba soando como mesquinharia e, cara, acaba voltando contra o próprio grupo.
Um cara como Conway reclamar assim, publicamente, tem um impacto negativo na imagem da DC Entertainment. Não que seja nada que vá ganhar as capas dos portais, mas chama a atenção daquele fã mais engajado. Numa época que todas essas grandes corporações ficam aí se preocupando com “brand love” e medindo isso em milhões de dólares, é uma atitude que não faz muito sentido.
E, o mais importante, os quadrinistas se falam. Trocam ideias. Quem está descontente com o fim dos pagamentos compartilha com os outros e, pronto: quem vai se sentir compelido a criar algo novo pra DC? Ok, a editora é um grande trampolim, você faz seu nome e tudo mais. Mas é melhor guardar as boas ideias pra quando você puder usar esse nome como quadrinista independente. Pode vender menos, mas aquilo vai ser seu pra fazer o que quiser depois.
Mark Millar que o diga.
Num momento que é cada vez mais difícil sair dos nomes consagrados e dos personagens conhecidos, simplesmente dar o recado pros seus colaboradores tirarem as boas ideias de casa não parece ser o melhor caminho. De que adianta a tal Divergência da DC, com certa aposta no diferente, se o seu criador tá preocupado se vai receber o que antes era de direito dele?
Não à toa, a DC recebeu 14 indicações ao Eisner Awards — o prêmio mais importante da indústria de HQs dos EUA — este ano, número igual ao da Image e inferior às 20 indicações da Marvel. Em 2014, só The Wake levou prêmios pra casa (2), sendo justamente uma história autoral do Scott Snyder e Sean Murphy, publicada pelo selo Vertigo. Esse é um bom termômetro de como anda a boa criatividade por lá.
“Apreço” não paga as contas, DC. Nem paga a criatividade. Ou os prêmios que vêm com ela. É hora de entender isso. Ou esperar que os concorrentes menores façam a festa...
— Colaborou Thiago Borbolla