Depois de caminhar pelos corredores do Artists Alley durante a CCXP de 2014, a curitibana Mylle Silva pensou: “bom, eu também posso escrever um roteiro de HQ”. Dividiu a graphic novel batizada de A SAMURAI em 8 capítulos de 8 páginas cada e convidou 8 artistas para embarcar no projeto. A obra conta a história de Michiko, uma moça que foi criada para ser uma gueixa mas decide se tornar uma samurai para realizar o grande sonho da sua vida: conhecer a própria família. E este conto, liberado com exclusividade pro JUDÃO, serve como prólogo do gibi.
Enquanto colhia café, Michiko observava suas mãos calejadas e mal pagas. Já estava muito longe do sonho primeiro, da riqueza fácil que encontraria no Brasil. Seus pais, já velhos e cansados, mal conseguiam trabalhar metade do dia. Dos seus quatro irmãos, só restavam dois: Yuichi e Keiko. Os dias passavam e ela nunca encontrava uma saída para tal destino. O quanto sonhara em voltar ao Japão, ou ao menos dar a chance de seus pais voltarem. Perguntava-se sobre os tios, os quais vira duas ou três vezes na vida, estariam vivos?
– O que aconteceu, Keiko?
– Nosso pai... Nosso pai está morrendo!
– Morrendo?
Saíram ambas correndo numa espantosa velocidade. O coração de Michiko saltava no peito, dezenas de pensamentos inundavam sua mente, o que restava de todos os sonhos partilhados estava prestes a transformar-se em pó.
Lembrou-se do dia em que seu pai, assustado, carregou-a no colo após ter machucado a mão esquerda. Michiko não tinha mais do que seis anos, sua família havia acabado de desembarcar no Brasil e ninguém sabia ao certo o que estava por acontecer.
O barulho foi aumentando, foi aumentando. A mulher ficou presa no chão. Sua mente esvaziou-se, nada mais ouvia nem via. Chegava ao ponto final o sonho de voltar ao Japão. Voltar. Voltar...
Abriu os olhos lentamente, sua vista estava embaçada, mas aos poucos voltava a definir os objetos
claramente. Quando estava prestes a levantar a cabeça, ficou paralisada de susto: percebera, pois, que se encontrava em sua antiga casa no Japão. Encantou-se ao ver seus antigos móveis, o lar simples no qual residira nos seus primeiros anos de vida. Por mais que de nada daquilo recordasse com clareza, mergulhou nas mais profundas e tenras memórias que jamais foram jogadas fora.
– Não grite assim, Keiko!
Michiko sentiu seus olhos marejando. Suas duas irmãs, Aida e Keiko, ainda crianças e ao alcance de suas mãos. Aida era a mais velha e faleceu por causa de uma forte gripe que a derrubara por semanas. Era ainda muito jovem, deixou o marido e a filha para trás.
– Está tudo bem agora.
– De onde você veio? Nunca a vi aqui por perto.
– Não faça tantas perguntas, Keiko! Deixe-a descansar.
– Já me sinto melhor. Só me incomoda o fato de não saber ao certo como cheguei até aqui.
– Descanse um pouco. Quem sabe você lembre. Vou cozinhar algo para comermos.
– Onde estão seus pais?
– Trabalhando, eu acho. Nosso irmão Yuichi deve estar com o papai. Já Michiko...
– A Michiko não consegue largar da mamãe, NE... Ela bem que podia ficar aqui conosco.
– Michiko é nossa irmã mais nova. Chora o dia todo sem a mamãe aqui.
A mulher sorria a cada detalhe de que suas pequenas irmãs relembravam-lhe. Memórias de um passado sagrado que os duros dias de trabalho nunca lhe deram tempo de revirar. Michiko cozinhou, cantou, conversou, brincou e riu com Aida e Keiko, mas em nenhum momento contou quem era: temia quebrar tal encanto.
Os pais chegaram, bem como Yuichi e a pequena Michiko. Ao se defrontar assim tão de repente com sua própria pessoa de apenas quatro anos de idade, deu-se conta de que realmente havia voltado no tempo. Em nenhum outro momento, tal pensamento havia ficado tão claro em sua mente.
Ficou muito tempo em silêncio, sequer respondia as perguntas que sua família lhe fazia. Estava encantada com a beleza daquele casal ainda tão jovem, seus queridos pais. Yuichi, que era mais velho do que Keiko, já tinha um rosto cansado, mas também bastante esperto.
– Que estranho! Será que ela está passando mal?
– Ela disse o nome pelo menos?
– Fu... Meu nome é Michiko.
– Mi... chiko? Qual o seu sobrenome?
– Fukuda... Michiko.
Todos a olharam longamente. A pequena Michiko, depois de algum tempo, caminhou até a mulher e a abraçou com toda a força que possuía.
– É, isso mesmo. Nossos nomes são idênticos.
No silêncio a família de Michiko concluiu que aquela mulher era a Michiko do futuro. Entre a dúvida e a emoção, ninguém conseguiu dizer-lhe nada até que ela mesma começou a falar:
– Com quantos anos está agora?
– Trinta e cinco. Estamos todos até hoje morando no Brasil.
– Não conseguimos juntar dinheiro algum?
– Não. Nós todos continuamos trabalhando como loucos para que ao menos os meus filhos e sobrinhos possam estudar tranquilos.
– Mas então é melhor não sairmos do Japão.
– Não temos mais saída, já está tudo acertado. Nossas últimas economias já foram gastas com a viagem.
– Isso quer dizer que... São nossos últimos dias no Japão sem esperança alguma de voltar?
– Pelo menos não nos próximos trinta anos.
– Michiko, você sabe como voltar para o seu tempo?
– Não. Tudo que lembro é que estava prestes a morrer quando fui trazida para cá.
– Se não descobrir como voltar até a próxima semana, não quer viajar conosco até o Brasil? Não posso deixar você para trás, afinal é minha filha.
Michiko não conseguiu dormir, ficava pensando se realmente gostaria de voltar ao seu tempo, já que estava vivendo uma grande felicidade ao lado dos seus pais e do seu passado. A todo instante, cheiros, sabores e objetos refrescavam ainda mais suas lembranças, fazendo com que ela desejasse uma pausa no tempo. No entanto, também pensava nas pessoas que havia deixado para trás no Brasil, nos seus três filhos, seus irmãos e pais. Como eles estariam agora? Será que ela morreu e seu espírito foi transportado para o passado como uma forma de atender ao seu último pedido? Atormentada por seus pensamentos, Michiko decidiu levantar-se e ir até um templo.
– Como sabe meu nome?
– Não é qualquer um que consegue realizar tal feito.
– Então você já sabe o que me aconteceu.
– Quando eu acordei nessa manhã, já sabia que viria. O mais interessante é que parou exatamente onde desejava. Isso é fantástico!
– Como cheguei aqui?
– Não faça tantas perguntas. Primeiro olhe o que há em seus bolsos.
– São... Pepitas de ouro!
– E o que você carregava antes consigo?
– Era café!
– Todo o café que você trouxe na sua viagem transformou-se em ouro.
– A bolsa...
– Você saiu tão apressada para ver seu pai que nem deixou a bolsa na qual colocava os grãos de café recém colhidos. Há uma fortuna naquela casa agora, quantia suficiente para que sua família não precise mais voltar ao Brasil.
– Está tudo resolvido então!
– Está? Já se perguntou o que aconteceu no seu tempo quando você veio até aqui?
– O que aconteceu?
– No instante em que você saltou no tempo, tudo ficou parado. Está até agora assim, só aguardando a sua decisão.
– Então existe uma maneira de voltar?
– Não exatamente. Tudo o que sei é que você tem que decidir se dará ou não todo o ouro que trouxe para a sua família. Infelizmente não poderei te dizer ao certo o que acontecerá. Pode ser que, mesmo que consiga mudar, toda a história da sua família tenha mudado, uma vez que você atravessou a barreira do tempo. O único fato que você pode interferir diretamente é na ida ou não da sua família ao Brasil.
A mulher decidiu não contar para ninguém sobre sua conversa com o monge, nem sobre o ouro que carregava consigo. Apesar de ser questionada por seus familiares constantemente, ela tentava desconversar e aproveitava para contar qualquer coisa maravilhosa sobre a terra distante. Michiko passou seis dias maravilhosos ao lado das pessoas que mais amava no mundo e aos poucos foi esquecendo sua vida no Brasil. Foi apagando filhos, marido, tristeza e alegrias de sua memória, restando apenas o mais essencial em sua alma: o desejo de fazer com que sua família fosse feliz. Sua decisão já estava tomada. Contou sobre o ouro que tinha consigo e pediu para que não viajassem ao Brasil. Chorando muito, Michiko se despediu de sua família e dirigiu-se ao templo.
– Sei. Nada será como antes mesmo que eu queira, então é melhor que fiquemos todos aqui no Japão.
– Sua vida inteira mudará. Não tem medo do que pode lhe acontecer?
– Não sinto mais medo de nada. Só quero a felicidade para a minha família.
– Como pode afirmar com tanta certeza de que ficar no Japão será a garantia da felicidade de todos vocês?
– Todos sofremos muito naquele lugar, isso ficou muito claro para mim. Se eu posso mudar o curso do destino, prefiro que fiquemos aqui.
– Acontecerão coisas que você não poderá controlar. A única chance que você tem de mudar as coisas é agora.
– Tem certeza de que é minha única chance?
– Não, mas você deve se portar como se fosse. Michiko, as pessoas não são marionetes que você pode controlar como quiser.
– Se eu saltei o tempo uma vez, certamente conseguirei de novo.
– Mesmo que você mude o curso das coisas, ainda sim existe algo destinado para cada um de nós e não há como escapar disso. A partir do momento em que você ultrapassar os portões deste templo, irá saltar novamente para o seu tempo. Não sou capaz de precisar onde você estará, mas nunca se esqueça de que será um caminho sem volta.
Convicta de sua decisão, Michiko caminhou lentamente em direção ao portão. Seu coração estava embriagado pela saudade de sua família, e suas lembranças, confusas. Ao olhar para fora, começou a notar que a paisagem ia mudando aos poucos e teve um leve receio de continuar sua caminhada. Quando ameaçou diminuir a velocidade de seus passos, foi sugada para fora do templo com tal força que desmaiou.
Ao acordar, notou que estava rodeada de lindas mulheres, todas maquiadas e com os cabelos arrumados. Levantou-se apressadamente, correu até um espelho e percebeu que seu rosto estava pintado como o de uma gueixa. Lembrou-se de que, ainda muito pequena, fora vendida por seus pais em troca de uma bolsa cheia de ouro.
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