Seus integrantes têm as carreiras entrelaçadas a algumas das maiores bandas do mundo da música – mas, juntos, fizeram algo que poderia ter sido histórico
Quando Glenn Hughes ingressou no Deep Purple em 1973, seu nome ficou, de imediato, famoso em todo o mundo. Mas, ao contrário de seu novo companheiro David Coverdale, que antes de responder a um anúncio da Melody Maker e passar a fazer parte do Purple tinha apenas experiência com grupos desconhecidos, Hughes não era nenhum novato.
O baixista e vocalista, nascido em 21 de agosto de 1952 na cidade inglesa da Cannock, já havia impressionado meio mundo com a sua passagem pelo Trapeze, uma das melhores bandas de hard rock da primeira metade da década de 1970.
O Trapeze surgiu em março de 1969 na cidade de Wolverhampton, Inglaterra. Seus fundadores foram o vocalista e trompetista John Jones e o guitarrista e tecladista Terry Rowley, responsável pelo nome do conjunto. Os dois haviam se conhecido em uma banda chamada The Montanas. A dupla foi atrás de músicos com pensamentos parecidos com os seus, e os encontrou nas figuras do guitarrista Mel Galley e do baterista Dave Holland, além de Glenn Hughes.
Após vários ensaios e um número cada vez maior de shows pelos clubes londrinos, o então quinteto assinou com a Threshold Records, criada pelo Moody Blues inicialmente para lançar apenas os álbuns do grupo e os trabalhos solos de seus integrantes, mas que acabou se transformando em um selo com catálogo próprio, subsidiado à gravadora Decca.
Em 1970 chegou às lojas o primeiro play, tendo com título apenas o nome da banda. A produção foi de John Lodge, baixista do Moody Blues. O álbum traz um hard rock calcado no blues, e apesar de ser um bom disco, passou meio batido pelo público. Logo após o lançamento, John Jones e Terry Rowley saíram fora, retornando para o Montanas, onde permaneceriam até 1978.
Reduzido a um trio, o Trapeze voltou ao estúdio para gravar o seu segundo álbum. Lançado em novembro de 1970, Medusa é muito superior ao primeiro trabalho. Novamente produzido por Lodge, o disco apresenta um hard rock coeso e afiado, com passagens instrumentais requintadas e de muito bom gosto, adornadas pela voz singular de Glenn Hughes, um dos maiores vocalistas do hard rock.
Medusa abre com Black Cloud, faixa que apresenta uma das características marcantes do Trapeze: a alternância entre momentos mais pesados com outros mais calmos, levando o ouvinte por estradas muito bem construídas, que desembocam em trechos onde o pau come solto. Ótimo começo!
Na sequência temos um dos ápices da carreira do trio. Jury começa como uma balada, onde os destaques são a interpretação de Hughes e a guitarra de Galley. Após essa breve e excelente introdução mais lenta, a faixa cai em um hard clássico, mudança feita pelo antológico riff de guitarra de Mel Galley, que Hughes e Dave Holland seguem com precisão cirúrgica. Essa segunda parte da canção evolui, com Hughes cantando muito, enquanto Galley rege os trechos instrumentais. E, no final, tudo volta para o começo, como uma viagem em loop em uma máquina do tempo. Sensacional!
O tempero funk, outra das características do Trapeze, aparece em Your Love is Alright e Makes You Wanna Cry, com o embalo sendo apimentado com generosas dose de peso. Já o rock bate ponto forte em Touch My Life, uma das melhores faixas do disco, que conta com um dos grandes riffs de toda a carreira de Galley. Mais uma vez percebe-se a variação entre momentos mais calmos e outros mais explosivos, tornando a canção muito interessante.
Uma das mais belas composições gravadas nos anos setenta vem a seguir. Seafull é uma espécie de blues carregado com ainda mais emoção e sentimento, onde Hughes canta como se fosse um anjo caído. As linhas vocais criadas pelo baixista e vocalista são tão lindas que chegam a doer. A parte instrumental mostra toda a sensibilidade do trio, conduzindo o ouvinte por uma odisseia regada com imagens do passado e sonhos de um futuro melhor.
O disco fecha com sua faixa-título, uma canção que não poderia ter nascido em outra época que não naquele trecho final dos anos sessenta e início dos setenta. O belo arranjo mostra o quanto o grupo influenciou todo o hard subsequente. Os trechos acústicos tornam a canção ainda mais bela, revelando todo o poder da voz crua de Hughes. Um encerramento perfeito para um álbum de tão alto nível.
Apesar da ótima qualidade do trabalho, e também de seu sucessor, o excelente You Are the Music ... We’re Just the Band (1972), a repercussão continuou muito pequena. Ainda que ambos tenham recebido boas críticas, em relação às vendas, que é onde a coisa pega, os resultados não foram satisfatórios. Não avistando um futuro muito animador, e com um irrecusável convite para entrar no Deep Purple na manga, Hughes abandonou o barco em 1973 e foi fazer história ao lado de Coverdale, Blackmore, Lord e Paice, gravando dois álbuns muito bons com o Purple – Burn e Stormbringer, ambos de 1974, além do injustiçado Come Taste the Band, lançado em 1975 já com Tommy Bolin no lugar de Ritchie Blackmore.
A entrada de Glenn Hughes no Deep Purple chamou a atenção do público para os três discos do Trapeze, até então praticamente ignorados. As vendas dos álbuns cresceram, bem como a reputação do grupo. Buscando capitalizar em cima disso, foi lançada em 1974 a coletânea The Final Swing, que vinha com um bem visível “featuring Glenn Hughes” na capa, para não deixar dúvidas de que se tratava da antiga banda do então baixista do Deep Purple. O disco traz faixas de Trapeze, Medusa e You Are the Music ... We’re Just the Band, além de duas canções inéditas com Hughes, Good Love e Dat’s It. Como curiosidade, vale dizer que essa última já era conhecida do público, pois vinha sendo executada nos shows durante os dois últimos anos de Hughes no Trapeze, sendo inclusive um dos momentos altos das apresentações da banda.
Em 1974, Galley e Holland anunciaram a entrada do guitarrista Rob Kendrick e do baixista Pete Wright, e lançaram o bom Hot Wire, onde os vocais principais foram assumidos por Mel Galley. Galley manteria a banda ativa até 1979, quando o Trapeze encerrou as suas atividades.
Dave Holland foi para o Judas Priest, onde permaneceu por dez anos, vivendo a fase de ouro da banda na década de 1980. Mel Galley reaproximou-se de Hughes após o primeiro fim do Deep Purple, em 1976, e tocou inclusive no primeiro disco solo do baixista e vocalista, Play Me Out, lançado em 1977. Depois isso, ingressou no Whitesnake de David Coverdale em 1982, onde gravou os álbuns Saints & Sinners (1982) e Slide It In (1984).
Falando nisso, vale dizer que existem duas mixagens diferentes de Slide It In, cada uma com um tracklist diferente, uma lançada no mercado inglês e outra no norte-americano. As diferenças entre as duas? A primeira apresenta uma sonoridade mais crua, na linha do que a banda havia feito no disco anterior, Saints & Sinners, enquanto que a norte-americana é mais super produzida e tem a inclusão da guitarra do ex-Thin Lizzy John Sykes, além de as partes de baixo terem sido regravadas por Neil Murray – na versão inglesa, o instrumento foi executado por Colin Hodgkinson.
Aliás, está em Slide It In a composição mais conhecida da carreira de Mel Galley, o mega hit Love Ain’t No Stranger, que o guitarrista escreveu em parceria com Coverdale. Galley iria participar da turnê do álbum, mas sofreu um acidente que danificou alguns nervos de seu braço, ficando impossibilitado de tocar por um tempo e, consequentemente, tendo que sair do grupo. Galley ainda montaria o supergrupo Phenomena, com quem gravou quatro discos – Phenomena (1985), Phenomena II – Dream Runner (1987), Phenomena III – Inner Vision (1993) e Psycho Fantasy (2006).
Já Glenn Hughes, após a sua saída do Deep Purple em 1976, gravou o citado Play Me Out com a participação de Galley e Holland, além de inúmeros outros músicos, e fez participações especiais em diversos discos dos mais variados artistas até a metade dos anos oitenta. Alguns exemplos são as suas participações nos álbuns Teaser (1975) de Tommy Bolin, Makin’ Magic (1977) de Pat Travers, Lucky for Some (1981) da Climax Blues Band, Midnight Madness (1983) do Night Ranger, Where Angels Fear to Tread (1983) do Heaven e Run For Cover (1985), de Gary Moore. Além disso, participou dos dois primeiros discos do Phenomena – e também do quarto, lançado em 2006 -, e ainda montou o projeto Hughes/Thrall com o guitarrista Pat Thrall, com quem gravou um LP em 1982.
Em 1986, Hughes ingressou no Black Sabbath, onde gravou os vocais do álbum Seventh Star, lançado naquele ano. O vocalista chegou a sair em turnê com a banda, mas o estado avançado de seu vício em cocaína e álcool acabou fazendo com que se desligasse do grupo de Tony Iommi.
Em 1991, a formação clássica do Trapeze se reuniu novamente. Glenn Hughes, Mel Galley e Dave Holland saíram em turnê, com a adição do tecladista Geoff Downes (ex-Yes e Asia) para um pequeno giro, que rendeu o ao vivo Welcome to the Real World, lançado em 1993 pela Purple Records. Outra reunião ocorreu em 1994, quando o trio tocou em um show tributo ao vocalista Ray Gillen (do Badlands, que teve uma passagem pelo Black Sabbath justamente substituindo Hughes na turnê de Seventh Star), que morreu de AIDS em 1 de dezembro de 1993.
Em 1 de julho de 2008, Mel Galley faleceu, vítima de um câncer no esôfago. Seus últimos meses foram acompanhados com agonia por fãs de todo o mundo, já que o guitarrista anunciou a doença através de seu site, causando comoção entre admiradores e músicos. David Coverdale, Glenn Hughes e outros artistas vieram a público prestar solidariedade a Galley, mas, infelizmente, o estado avançado do câncer fez com que não fosse possível outra atitude que não apenas a espera pelo inevitável fim.
Já Dave Holland, após sair do Judas Priest, além das citadas reuniões do Trapeze, tocou também com o The Screaming Jets, produziu algumas bandas, tocou com Al Atkins (primeiro vocalista do Judas Priest) e participou de sessões de gravação que reuniram Glenn Hughes, Tony Iommi e o tecladista Don Airey (atualmente no Deep Purple). Holland passou também a ministrar clínicas e a dar lições de bateria. Foi em uma dessas aulas, para um garoto de 17 anos com problemas mentais, que Holland foi acusado pelos pais do menino de tê-lo assediado sexualmente. O baterista foi preso e levado a julgamento, onde recebeu uma pena de oito anos de prisão, que está atualmente cumprindo. Todo esse processo fez com que Tony Iommi substituísse as partes gravadas por Holland no álbum The 1996 DEP Sessions, por não querer ter o seu nome associado a alguém envolvido com crimes sexuais.
Glenn Hughes engatou uma sólida carreira solo, na qual já lançou mais de vinte discos. Em seus álbuns solo, Hughes desenvolveu uma sonoridade onde mescla duas de suas maiores paixões: o funk e o hard rock. Entre seus trabalhos, merecem destaque a estreia Play Me Out (1977), From Now On ... (1994), o ao vivo Burning Japan Live (1994) – com sons do Deep Purple e do Trapeze -, a homenagem ao chapa Tommy Bolin em A Tribute to Tommy Bolin (1997), Building the Machine (2001), Soul Mover (2005) e o elogiado First Underground Nuclear Kitchen, lançado em 2008. O baixista também montou o Black Country Communion ao lado de Joe Bonamassa, Derek Sherinian e Jason Bonham, e gravou três discos com o quarteto – Black Country Communion (2010), Black Country Communion 2 (2011) e Afterglow (2012). Também com Bonham, formaria mais tarde o bom California Breed, que lançaria apenas um álbum autointitulado em 2014.
Quem curte um hard rock bem feito, com ricas passagens instrumentais e um vocal muito acima da média, irá encontrar no Trapeze uma ótima banda, e em Medusa uma joia esquecida. Ouça no volume máximo e comprove!