20 anos depois, um grito por amor continua ecoando na Alemanha | JUDAO.com.br

Canção da banda alemã Die Ärzte volta às paradas, servindo de hino contra os protestos que não querem a entrada dos refugiados sírios no país.

No último final de semana, cerca de 20.000 refugiados chegaram à Alemanha – em sua maioria, vindos da Síria. O país é um dos destinos mais procurados pelas pessoas que querem reconstruir suas vidas longe das zonas de conflito e, justamente por isso, a chanceler Angela Merkel afirmou na segunda-feira (7) que pretende destinar 6 bilhões de euros para administrar este fluxo de migração. “O que vivemos agora é algo que continuará nos ocupando pelos próximos anos, nos mudará e queremos que a mudança seja positiva”, afirmou ela, em comunicado oficial. “É incrível que a Alemanha tenha se transformado em um país que as pessoas associam à esperança. É algo muito valioso se relembrarmos a nossa história”.

O grande ponto é que, enquanto centenas de voluntários se posicionavam nas estações ferroviárias do país para recepcionar os refugiados com água, comida e cartazes de boas-vindas, uma pequena parte da população do país faz questão de relembrar justamente o pedaço mais sombrio da história alemã. Militantes de extrema direita, em sua maioria convocados pelo partido neonazista NPD, têm liderado ataques contra abrigos para refugiados, em especial nas regiões leste e noroeste do país, nas cidades de Dresden e Heidenau. Gritando palavras de ordem (incluindo um assustador “Heil Hitler”) e atirando garrafas e artefatos incendiários contra a polícia, eles defendem que os estrangeiros sejam mandados embora e seus pedidos de asilo sejam negados.

Há cerca de duas semanas, o Google chegou a tirar do ar um mapa criado no Google Maps que revelava a localização de cerca de mil abrigos para refugiados na Alemanha – criado por uma conta ligada justamente a um destes grupos neonazistas.

Andreas Zick, professor do núcleo de estudos sobre a violência da Universidade de Bielefeld, revela que pequenos grupos neonazistas e xenófobos ficaram mais violentos e organizados na Alemanha. “Se isso continuar, teremos de falar sobre o surgimento de um movimento terrorista no país”, afirma, em entrevista para a Folha de S.Paulo. Para o estudioso, os grupos encontram caminho livre porque a sociedade e o governo alemão ainda são tolerantes demais com os xenófobos e muitas vezes as pessoas sabem muito pouco sobre os recém-chegados em suas cidades. “Se os cidadãos não se envolverem no planejamento dos abrigos, populistas de direita sempre terão um caminho aberto para incitar o ressentimento contra os imigrantes”,

A situação repete algo que se viu no país há cerca de 20 anos, quando grupos nacionalistas atearam fogo à centros de recepção aos refugiados vindos da batalhas na região da Iugoslávia. E, da mesma forma como aconteceu naquele momento, uma determinada canção tomou conta das paradas de sucesso, como uma espécie de hino contra os extremistas. O ano era 1993 e a música era Schrei nach Liebe – que, em português, significa “Chorar por Amor”. A faixa estava no disco Die Bestie in Menschengestalt (“A Besta em forma Humana”), que marcou o retorno do tradicional grupo punk alemão Die Ärzte, depois de uma separação que durou cinco anos.

Primeira música essencialmente política do trio, ela tem um trecho especialmente divertido que sugere que o problema destes neonazistas é falta de amor. É, isso mesmo. “Sua violência é apenas um grito silencioso por amor”, diz a letra. “Suas botas militares estão em busca de gentileza / Você nunca aprendeu a se expressar / E seus pais nunca tiveram tempo pra você”. E então completa, com a pouca sutileza comum aos compositores punks. “Oh oh oh seu cuzão”. <3

Gostamos muito de garantir que os nazistas e seus simpatizantes tenham um péssimo momento de entretenimento

A retomada de Schrei nach Liebe começou por uma iniciativa do professor de música Gerhard Torges, chocado com os crescentes ataques dos radicais de direita. “Eu quis trazer a faixa de volta para a mídia porque ela já ajudou as pessoas a tomarem uma posição de resistência contra a violência uma vez. Talvez ela possa ajudar a mudar esta compreensão novamente”, afirmou ele, em entrevista ao site da rádio alemã RBB.

A ideia inicial, tendo como ponto central um site batizado de Aktion Arschloch, era fazer com que os alemães começassem a pedir loucamente a música do Die Ärzte nas rádios, nos clubes e nas festas, além de comprá-la nos serviços de downloads como Amazon, Google Play e iTunes – e executá-la como se não houvesse amanhã nas plataformas de streaming como o Spotify.

A iniciativa parece ter dado resultado. Rapidamente, as hashtags #SchreinachLiebe e #AktionArschloch se tornaram trending topics na versão germânica do Twitter. O link oficial do vídeo no YouTube se encheu de comentários nas últimas semanas – e acabou ultrapassando a marca de 1 milhão de visualizações, marca inesperada até então para uma canção lançada há duas décadas. No Google Play, logo ela se tornaria campeã de vendas duas vezes na mesma semana. E as rádios passaram a executar a música voluntariamente, sem que as pessoas tivessem que sequer passar a mão no telefone.

Die Ärzte

Die Ärzte

Obviamente, surgiram questionamentos – com o súbito aumento de vendas digitais e das execuções em streaming, os lucros iriam diretamente para os bolsos dos caras do Die Ärzte, ao invés de ajudar os refugiados? Claro que não demoraria até que a banda se manifestasse também a respeito. Em seu site oficial, Farin Urlaub (guitarrista/vocalista), Bela B. (baterista) e Rodrigo González (baixista, ele mesmo um imigrante, vindo do Chile) declararam que todos os lucros com a música serão devidamente revertidos. “É claro que não queremos fazer dinheiro com isso. Vamos doar tudo para a Pro Asyl”, revelam, referindo-se à instituição criada nos anos 1980 para ajudar na garantia da proteção e abrigo às pessoas que sejam vítimas de perseguição política, étnica e religiosa.

“Gostamos muito de garantir que os nazistas e seus simpatizantes tenham um péssimo momento de entretenimento”, ainda brincaram os músicos. Interessante lembrar ainda que, no final dos anos 80, o Die Ärzte sofreu nas mãos dos órgãos reguladores do governo alemão, tendo pelo menos três canções polêmicas (abordando assuntos como incesto e zoofilia) proibidas no país, para execução em shows, o que obviamente refletiu nas suas vendas. Seu disco mais recente até o momento, Auch, foi lançado em 2012.

Enquanto isso, num simpático país sul-americano que fala português e que é um verdadeiro caldeirão de culturas e raças devidamente misturadas, certas camadas da sociedade insistem num movimento de resistência contra egressos do Haiti – que estariam chegando para, como é mesmo?, “roubar os nossos empregos”. Sei. Já que a nossa pegada aqui é música, acredito que Caetano e Gil, sabe, parecem ter algo de interessante a dizer a respeito disso...