The Walking Dead botou o Terror na sala de jantar durante o horário nobre. A popularização do gênero é prejudicial à ele? Afinal de contas, qual a graça de ter medo?
Quando eu era moleque — e isso não faz tanto tempo — terror, fosse filme, história em quadrinhos, videogame, era uma coisa meio cabulosa. Era algo que ficava escondido na locadora e você conhecia através daquele seu primo mais velho fã de Sepultura que tinha a filmografia completa do Zé do Caixão em VHS pirata. Lembro de ter visto muitos dos meus primeiros filmes do gênero, como A Hora do Pesadelo, Halloween, Alien – O 8º Passageiro, O Massacre da Serra Elétrica, O Exorcista e Sexta-feira 13, tudo escondido na casa de amigos ou coisa assim. Porque segundo os pais de todo mundo, “dava medo”, “não era coisa de criança” ou “era do Demonhu”.
Posso dizer que isso mudou muito de lá pra cá. Lembro que ainda criança, Pânico era uma sensação entre os adolescentes, todo mundo tinha que ver a obra quase metalinguística do Wes Craven que acabou ficando icônica. Hoje, The Walking Dead, um dramalhão com zumbis está no horário nobre da Fox, logo depois d’Os Simpsons, algo inimaginável há alguns anos.
Não só isso, mas os monstros voltaram mais fortes, no terror ou não. Vampiros em Crepúsculo e True Blood, monstros clássicos em Monster High para crianças, zumbis por todos os lados. Para os puristas, não se fazem filmes assustadores como antigamente. O Terror mudou? Ou foi nossa forma de consumir esses produtos? O gênero se deturpou ou apenas elementos dele estão sendo usados de forma diferente?
Para Fabrício Cordeiro, mestre em Comunicação e Cinema pela Universidade Federal de Goiás, de certa forma, o Terror sempre foi mainstream. “O Expressionismo alemão já fazia Terror nos anos 10, como O Gabinete do Dr. Caligari (1919, Robert Wienne) e nos anos 20, com seu maior exemplo, Nosferatu (1922, F.W. Murnau). Mas nos anos 30 a Universal banca vários títulos de Terror, que ficaram conhecidos como ‘os monstros da Universal’: o Drácula com o Bela Lugosi no papel, Frankenstein com Boris Karloff, A Múmia, também com Karloff, e, nas décadas seguintes, Lobisomem, O Monstro da Lagoa Negra, entre outros. A Universal ganhou muita fama com esses filmes, que se tornaram muito populares, tanto é que geraram diversas sequências, crossovers e tudo mais”.
Fabrício também lembra o retorno destes monstros à popularidade nos anos 1950, com a Hammer Films e suas produções de orçamento médio, meio que dando início ao cinema Trash. “Se pensarmos em fases, acho que podemos falar de trash a partir dos anos 50, com as produções da Hammer e, claro, o Roger Corman”.
[three-fourth]Márcio Júnior, um dos criadores da Mostra Goiana de Filmes Independentes, mais conhecida como Mostra Trash, que aos trancos e barrancos já passou da sua 7a edição, acredita que o interesse do público por Terror é meio cíclico. “O cinema da Universal em cima disso nos anos 30 era rentável, a Hammer também foi muito bem-sucedida. Essas coisas vem e voltam, o medo, os monstros. São produtos comerciais, podem marcar, mas também podem cair no esquecimento. O interesse do público sempre existiu, ele só fica meio latente”.Tanto Fabrício quanto Márcio acreditam que não é o Terror que muda, nem sequer o público, mas sim a forma de ganhar dinheiro e explorar aquele gênero e sua mitologia. “O que muda de fato, penso eu, não é uma popularização específica do terror, mas um novo meio de vender filmes e produtos de cinema e TV, e que é apenas uma continuação muito mais brutal da noção de mercado num evidente raciocínio via indústria cultural: filme estreia, já tem livros sobre ele nas livrarias, comerciais na TV a todo momento, ator presente em talk shows, promoções no McDonald’s, cadernos, mochilas... e hoje você soma a tudo isso a internet, videogames, os aplicativos, as capinhas de celular, um sem número de promoções, banners, eventões como a Comic-Con, virais etc. O terror também entrou nessa, sendo vendido da mesma maneira, às vezes massivamente”.[/three-fourth][one-fourth last=”true”][text-box title=”Hammer Films” width=”100%”]
A decadência da produtora iniciou-se em meados dos anos 70, sendo que suas últimas produções datam da década de 1980, com séries de terror para a televisão. Em 2007 voltou à ativa com novos filmes, entre eles A Mulher de Preto, com Daniel Radcliffe. Wikipedia
[/text-box][/one-fourth]Fabrício dá como exemplos os gigantes sucessos Jogos Mortais e Atividade Paranormal, filmes de baixo orçamento que entraram para a história do gênero e da cultura pop com um marketing de guerrilha, utilizando o próprio público como divulgação.
Em relação aos monstros e o surgimento de séries como Supernatural, Grimm, Once Upon a Time, entre outros, Fabrício questiona o gênero em que elas se encaixam. “Quantos de fato poderíamos categorizar como ‘terror’ e quantos como apenas ‘resvalando’ no tema? Porque uma coisa curiosa do terror, principalmente nas origens de sua popularização nos anos 30, é que ele se aproveitava de seres já presentes no imaginário literário: vampiros, lobisomens, alienígenas... Até onde uma série como Supernatural seria terror? Talvez seja, de algum modo. Um terror Capricho, limpinho, que aliás é bem comum em alguns dos remakes, como o de O Massacre da Serra Elétrica (2003), por exemplo, em que a refilmagem parece ter passado xampu”.
“Toda essa onda com zumbis, Crepúsculo, não conheço bem, mas sei: não são Terror. Eles usam partes dele, como a mitologia e os monstros. E existe Terror mainstream? Claro que existe! Sempre existiu! Assim como um lado completamente marginal”, disse Márcio.
Merchandise: a forma de consumir mudou (Foto: abirdinthehand / Etsy)
“Nos filmes de monstro, entra também a expectativa. Alien (1978), do Ridley Scott, por exemplo: o monstro não aparece, ou aparecem apenas partes de seu corpo, isso depois de boa parte da duração, desenvolvendo a curiosidade para saber o que é aquilo. É um filme muito mais de clima, de atmosfera. O Tubarão de Spielberg é a mesma coisa, porque vira um filme de monstro, o Tubarão é narrado como um pesadelo, algo nunca visto, ninguém acredita que uma criatura daquelas possa existir, e até o final pouco se vê do bicho. No Encurralado, também do Spielberg, ninguém vê o motorista, o motivo da ameaça é inexplicável, e aquele caminhão vira uma espécie de monstro. São três grandes filmes que trabalham muito bem com um elemento essencial para o medo, ou níveis de medo: a imaginação”.
[one-half]O sumo-sacerdote do cinema de Terror no país é e continua sendo José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Na última Mostra Trash, Márcio até separou uma parte da mostra só pra ele – que já participou pessoalmente três vezes – com sete dos seus filmes. Mojica é lembrado não só por sua filmografia marcante, mas por ter sido um verdadeiro guerreiro. Mesmo hoje, não é fácil fazer cinema no Brasil, ainda mais de Terror.[/one-half][one-half last=”true”]
[/one-half]Fabrício acredita que existe uma forte resistência a se fazer cinema de gênero no país, ainda mais de Terror, principalmente por uma certa mentalidade intelectualóide injustificada. “Esse gênero no Brasil é mais complicado, não importa se dentro ou fora do eixo RJ-SP. Por mais que a gente tenha um Zé do Caixão, com toda a carreira dele, e provavelmente ainda mais reconhecido lá fora do que aqui, a história do cinema no Brasil nunca se apegou a uma ideia de terror e horror, talvez por encarar o gênero como algo sem muito potencial comercial, ou, num pensamento herdeiro do Cinema Novo, não tão intelectual, ou “político de menos”, o que é uma forma besta de se pensar”.
Márcio foi um dos que se aventurou no marasmo lançando O Ogro em 2011. O curta-metragem de animação adapta a história homônima dos quadrinhos de Julio Shimamoto e Antônio Rodrigues e foi um grande sucesso. O curta ganhou 15 prêmios, inclusive dois internacionais e às vezes aparece em mostras até hoje.
Ele dirigiu o filme ao lado de Márcia Deretti e conta que foi uma luta desde o ínicio: “você pega um cinema marginal e difícil e pega a coisa mais marginal e mais difícil dentro do audiovisual, que é animação. PUTZ! Se fala que é animação de Terror então... só foi possível através de edital. Tivemos que quebrar muito a cabeça em cima”.
“Existe um desejo de começar um cinema de gênero. Está caminhando pra isso, mas é muito difícil fazer acontecer, há uma resistência muito grande a se fazer cinema de gênero no país, talvez porque não seja intelectual demais ou cinema de arte. Bobagem. Temos um audiovisual muito frágil, que depende da verba pública. Cinema de gênero é mercadológico, um filho da indústria. Sem fins mercadológicos é difícil”, diz Márcio.
Ano passado, foram mais de 200 filmes inscritos para a Mostra Trash, dos quais foram selecionados cerca de 40. “Hoje em dia o acesso ao equipamento ficou muito mais fácil. Com pouco dinheiro dá pra fazer um curta decente. Tem filme da Trash que passa no Goiânia Mostra Curtas, uma mostra ‘de cinema sério’, mais conservadora, porque o nível técnico das produções melhoraram, assim também como tem aqueles que são fuleiros de propósito, como uma escolha estética. Hoje a gente seleciona os filmes pra Trash avaliando a ousadia do cara, a piração dos filmes”.
Também se destcam no gênero Marco Dutra e Juliana Rojas. “Eles tem uma coleção de curtas de cinema fantástico que fizeram juntos, depois a Rojas dirigiu solo o curta O Duplo, e os dois tem o longa Trabalhar Cansa, tudo na área do terror e do fantástico. O Dutra tá lançando agora o Quando Eu Era Vivo, que tem tido uma divulgação muito boa e tudo indica que deve ir muito bem nos cinemas”, indica Fabrício. Kleber Mendonça Filho de O Som ao Redor, indicação do Brasil ao Oscar 2014, já flertou com o Terror em curtas como Vinil Verde (2004).
Outro nome grande é o de Rodrigo Aragão, do Espírito Santo, especialista em maquiagem e filmes de mostro que encerrou ano passado uma trilogia composta por Mangue Negro, A Noite dos Chupa-Cabras e Mar Negro. No Paraná, Paulo Biscaia Filho fez Morgue Story (2009) e Nervo Craniano Zero (2011), o pessoal da Chernobyl Milk Company fez Registros Secretos de Serra Madrugada (2013) e tem também a Canibal Filmes, produtora especialista no assunto, de Petter Baiestorf em Santa Catarina.
Entre os iniciantes, temos os curtas Sugestão, de Nilson Alvarenga, do interior de Minas Gerais e os do maranhense Lucas Sá, O Ruído Branco e O Membro Decaído. Em Goiás, além de Márcio, quem se arriscou recentemente no gênero foi Getúlio Ribeiro com o curta O que aprendi com meu pai, do ano passado, e Amarildo Pessoa com O Dia de Ira.
Márcio inclusive quer produzir mais dois curtas de Terror este ano: outra animação adptando HQs, O Retrato do Mal, de Jayme Cortez, e uma história original filmada em super 8, chamado Boneca Chinesa.
De qualquer forma, o que podemos concluir com tudo isso é que não, Crepúsculo não denegriu a imagem do Terror; o gênero continua firme e forte e tão ou mais envolvente do que antes.