Novo disco da banda é diferente de basicamente tudo o que eles fizeram até hoje, mas também se mantém completamente ligado ao que o grupo é em sua essência
Algum tempo atrás, no meio de uma conversa sobre o cenário musical atual, me surgiu uma dúvida: quem seria o maior nome do progressivo hoje?
Oras, as grandes bandas dos anos 60 e 70 permanecem, mas apoiadas nos grandes clássicos do início da carreira e não em algo realmente relevante lançado recentemente (se isso é bom ou ruim, é outra história). A questão mesmo é sobre quem seria aquela que hoje, à menor notícia ou lançamento, causaria um impacto que extrapola a sua base de fãs estabelecida.
Sim, é o Dream Theater.
Podem-se procurar outras opções, claro. Mas você também pode contar em apenas alguns dedos quais foram as bandas das últimas décadas que definiram um novo estilo, perturbando a realidade com a idolatria exagerada de parte de seus fãs ou o ESCÁRNIO daqueles que não digerem os malabarismos técnicos. Sempre houve um sentimento de amor e ódio em relação a estes americanos. E provavelmente sempre haverá, mesmo com as recentes mudanças.
Após a saída de Mike Portnoy (e toda aquela papagaiada de processo seletivo para a vaga de baterista), muito se falou sobre o futuro da banda, em como eles perderam uma peça que era muito mais importante que o músico em si. A Dramatic Turn of Events foi o primeiro álbum dessa nova fase, soando menos tenso mas eventualmente ainda preso ao modo automático e artificial no qual o Dream Theater havia engrenado após o megalomaníaco Octavarium. As coisas começaram a mudar apenas no trabalho seguinte, com o claro retorno à sonoridade da década de noventa, sem descaracterizar tudo o que eles haviam construído ao longo dos anos. Literalmente um recomeço.
Então veio este recém-lançado The Astonishing.
Um álbum duplo conceitual, dividido em TRINTA E QUATRO músicas sobre o distópico ano terrestre de 2285. Todos os elementos necessários para intrigar tanto os mais esperançosos fanáticos quanto para alimentar os mais desconfiados, com referências diretas às óperas rock que tornaram o rock progressivo tão grandioso e megalomaníaco.
É hora de deixar qualquer preconceito de lado, se ajeitar em sua poltrona, desligar o celular e esperar o espetáculo começar enquanto as luzes vão abaixando e as cortinas se abrem.
Ruídos começam a ecoar, como mecanismos de inteligência artificial sobrevoando e se aproximando lentamente em Descent of the NOMACS, as cenas iniciais antes de Dystopian Overture e os primeiros raios de sol se erguerem e iluminarem lentamente o universo ao qual estamos sendo apresentados, revelando o Grande Império Norte das Américas com uma colagem de trechos instrumentais que se mostrarão importantes mais pra frente. The Gift of Music traz alguns aspectos interessantes que direcionarão a banda durante a obra: músicas de menor duração, de complexidade intrínseca sem soar opressora ou além de certos limites e com referência direta ao progressivo entre as décadas de oitenta e noventa (e um riff inicial que facilmente poderia estar em um álbum do Rush).
O cenário político que guia The Astonishing é apresentado por um James LaBrie cada vez mais seguro nos vocais e sintonizado com o instrumental, seguindo a tendência dos álbuns recentes, e ainda mais evidente na contemplativa The Answer. Basta acompanhar os versos e imaginar o personagem sentado sobre um alto telhado, apenas observando a cidade abaixo durante a noite. Um senso de imaginação que se torna mais forte com os sons de marcha no início de A Better Life e a interpretação sobre as intenções da revolução de Ravenskill na história, até então sem fugir muito do metal progressivo lapidado pela banda ao longo dos anos.
O primeiro grande impacto vem em Lord Nafaryus, exatamente no momento em que você começaria a questionar a peça: teatral como nunca se ouviu na obra deles, um musical de proporções grandiosas acompanhados por uma banda que se desenvolve completamente em prol do desenrolar do conceito e do aprofundamento dos personagens – imediatamente se vislumbra um grande salão aristocrata enquanto o espectador se inclina em sua poltrona aguardando o que virá a seguir. A Savior in the Square descreve detalhadamente o primeiro encontro entre os antagonistas, com uma atmosfera que cresce no mesmo passo em que versos carregados de veneno vão sendo cantados. O clima pesado é quebrado pela canção When Your Time Has Come e a sua aura quase hipnótica, uma balada completamente inocente montada sobre mensagens inspiradoras cantadas por Gabriel, considerado o messias pela revolução, com um dom não exatamente explicado (ainda). Não é difícil se sentir no meio da multidão.
Os efeitos desse momento são descritos logo em seguida na flutuante Act of Faythe, com o choque sentido pela personagem e a reflexão que faz sobre sua própria vida. A tensão volta de forma magistral, quase overacting, em Three Days, faixa que lembra consideravelmente o Dead Winter Dead do Savatage em um formato mais galhofa, sobre a tirania quase insana do vilão da história (e talvez exatamente por isso muito mais perigosa), interrompida apenas pelos sons robóticos mais uma vez inesperados no interlúdio The Hovering Sojourn.
Brother, Can You Hear Me? dá prosseguimento ao lado mais épico de The Astonishing, com coros, melodias marcantes e arranjos orquestrais que poderiam ser o fruto de um encontro entre Roger Waters e Howard Shore, elevando ainda mais a curva de tensão até aqui. A Life Left Behind e o seu instrumental mezzo-Rush mezzo-Yes com uma roupagem completamente noventista que serve de base para Faythe (a filha do imperador Lord Nafaryus) deixar para trás a sua vida após descobrir uma realidade completamente nova e buscar por ela em Ravenskill. Mais um momento interessantíssimo, de instrumental amórfico focado apenas em auxiliar na criação da atmosfera que não apenas descreve em notas as cenas como também os sentimentos das personagens. O oposto da excessivamente ordinária Chosen, que apesar de importante liricamente pela reflexão parece saída da mesma forma que o Dream Theater usa desde o início da carreira.
Até agora foi possível notar como James LaBrie definitivamente é o condutor desse trabalho? Se ainda não, A Tempting Offer é o argumento final, graças às alternância de vozes, interpretando múltiplas personagens, um embate que remete diretamente aos melhores momentos do Ayreon. Falando em confusão, o clima de dúvida paira de forma assombrosa em The X Aspect, com questionamentos um tanto quanto profundos sobre família e lealdade, em uma combinação entre violão e sintetizador tão natural que a repetição da melodia principal de Brother, Can You Hear Me? ao final chega a congelar a sua espinha.
A New Beginning, uma conversa entre o tirano e sua filha, traz novamente as múltiplas vozes ligadas estreitamente às passagens instrumentais que parecem uma personificação rhapsodiana e blind-guardiana do Dream Theater, levantando inúmeras dúvidas no enredo e deixando uma ascendente sensação de esperança, o tenso cenário imediatamente se iluminando enquanto Jordan Rudess e John Petrucci assumem os holofotes. Com um clima de encerramento, The Road to Revolution transborda uma visão épica que lembra vagamente a tranquilidade espacial do Stratovarius, deixando ainda mais cordas soltas na história, fechando bruscamente as cortinas ao seu fim.
As luzes se acendem. É hora de levantar um pouco das poltronas, ir ao banheiro, comprar algo pra beber. E pensar na experiência que está sendo e como irá acabar. Se você acompanhou profundamente cada faixa até agora, não será difícil fechar os olhos e imaginar. O ato final logo começará.
A música cresce novamente em 22085 Entr’acte, um chamado para retornar ao universo que se expande mais uma vez diante de seus olhos e ouvidos, principalmente porque Moment of Betrayal traz um senso de urgência, melodias que soam como desconfiança e medo, bem aos moldes das mais soturnas composições do Dream Theater. Na mesma veia, Heaven’s Cove cria uma imagem mental ampla, ecoante, que passa do contraste entre o barroco e o eletrônico para algo próximo do doom metal, de peso opressor interrompido quando as primeiras notas de Begin Again começam, resgatadas diretamente da década de noventa na Europa.
Aquele clima de tensão retorna nas batidas de The Path That Divides, um acelerar rítmico semelhante ao de um coração tomado gradativamente por adrenalina até atingir o frenesi de batalha e uma espécie de êxtase doentio que se prolonga até The Walking Shadow. Traições, duelos de espadas e uma reviravolta na trama que condiz com a aura carregadíssima nessa parte da história, quando Faythe é assassinada por engano pelo seu próprio irmão. O lamento se personifica em My Last Farewell enquanto Gabriel entra em desespero, testemunhando uma morte tão agonizante e desesperadora quanto o andamento da faixa, diminuindo até o último suspiro e a reprise das mesmas melodias na continuação Losing Faythe, porém de sentimento completamente diferente.
A serenidade dá lugar à dor de forma extremamente coerente, um pesar que prossegue em Whispers on the Wind, quando o verdadeiro dom do personagem principal é revelado: ele é capaz de ressuscitar alguém com o poder de sua voz (conveniente talvez, mas quem liga?), porém está completamente afônico. Com isso, a população se reúne em Hymn of a Thousand Voices para auxiliá-lo: com estilo que lembra relativamente as canções mais reflexivas do Bruce Springsteen, com coros, violinos e palmas montando um cenário incrível, de milhares de pessoas ao redor de uma fogueira no início da noite para testemunhar o milagre acontecendo.
O encerramento é tomado pelo clima de positividade e esperança de Our New World, assistindo ao esplendor do novo dia que nasce, iluminando um mundo agora completamente diferente após o desligamento das máquinas artificiais em Power Down e a conciliação entre os lados rivais em Astonishing, que utiliza de trechos chave do restante da história para deixar inúmeras mensagens interessantes e um calafrio enquanto as vozes vão abaixando, as cortinas se fecham novamente, as luzes se acendem e você parece despertar de um transe.
Dentro de seu universo até então inabalável, de engrenagens matematicamente encaixadas, metrópoles movidas em ritmos constantes como um maquinário de macro proporções em seu eterno fluxo de produção, o Dream Theater se revela como a própria mudança dentro do emaranhado artificial que ele mesmo criou. James LaBrie, John Petrucci, John Myung, Jordan Rudess e Mike Mangini são os responsáveis por trazer a imprevisibilidade da vida neste ambiente mecânico, representando como poucas vezes em sua história o sentido literal de seu nome, uma peça teatral fantasiosa.
Invariavelmente você se verá imaginando cada cena descrita nos versos com imaginação catalisada pelo instrumental, que trabalha efetivamente em prol da arte como um todo. Não há a frigidez em explorações técnicas inumanas gratuitas, mas sim uma combinação de habilidades que converge para a criação de uma obra completa, indiferente se é perfeita ou não.
The Astonishing consegue ser diferente de basicamente tudo o que o Dream Theater fez até hoje, mas também se mantém completamente ligado ao que ele é em sua essência. Se é o caminho que seguirão a partir de agora, é irrelevante. A reflexão que fica é como algumas pessoas conseguem viver diariamente sem ter a música como elemento essencial em suas vidas. <3
■ Rodrigo Miwa tem 27 anos, é um dos fundadores do Progcast, interiorano convicto e garimpeiro descontrolado do submundo do heavy metal.