Personagem, que surge como um dos trunfos da segunda temporada da série do Demolidor, tem uma história das mais interessantes nos quadrinhos
Nos anos 1970, os EUA viviam uma estagnação econômica que foi particularmente NEFASTA com Nova York. A cidade vivia uma crise fiscal, com falta de investimentos em diversas áreas, e a metrópole era suja, poluída, perigosa. A situação era tão feia que, em 13 de Julho de 1977, NYC ficou VINTE E CINCO HORAS sem luz, gerando uma onda de crimes – e 3 mil pessoas foram presas. Quase um milhão de habitantes abandonaram a cidade na época e havia gente que acreditava que aquela já era uma crise espiritual.
Foi nesse contexto que, em 1976, um quadrinista iniciante chamado Frank Miller se mudou pra Nova York, tendo passado quase que a vida inteira em Montpelier, uma pacata cidade de 8 mil habitantes do estado de Vermont. Foi um choque cultural. Só que aquela crua realidade não o assustou, mas sim o inspirou. Depois de uma rápida passagem por Peter Parker, The Spectacular Spider-Man — num arco que tinha o Demolidor como coprotagonista –, Miller foi escalado para assumir a arte de Daredevil a partir da edição 158, publicada em Maio de 1979.
A partir de então, Frank Miller e o Demolidor nunca mais foram os mesmos.
Bom, isso é o que a história conta. A realidade não foi bem assim. O Demolidor nunca tinha sido um dos mais famosos personagens criados por Stan Lee, as vendas eram fracas e a fase com roteiros de Roger McKenzie não parecia empolgar. A Marvel chegou a pensar em cancelar a revista, assim como o próprio Frank pensou em deixar o personagem. Por sorte, nada disso aconteceu.
As coisas começaram a mudar com a chegada de Denny O’Neil ao posto de editor da revista. Ele colocou Miller como co-roteirista, ao lado de McKenzie, na edição 165, de julho de 1980. Depois, o antigo roteirista foi dispensado e, após uma edição-tampão com David Micheline, Frank Miller passou a ser o único escritor.
E essa edição de estreia não é qualquer uma. Trata-se de Daredevil #168, de Janeiro de 1981. Na capa, uma ninja aparecia nas sombras, iluminada apenas por um raio ao fundo. Era a ELEKTRA.
O nome daquela personagem, com K e não com C, veio diretamente da mitologia grega, que estabelece que Electra era impulsiva e com muito ódio, tendo orquestrado a morte da mãe (Clitemnestra), uma vingança por ela ter matado o marido AND pai de Electra, Agamemnon. Séculos depois, Carl Jung usaria o nome da personagem mítica pra nomear o Complexo de Electra, que acontece quando a filha tem desejos pelo pai.
Por outro lado, a personagem era também um tributo do Miller à cultura japonesa — incluindo o fato dos heróis normalmente não ganharem poderes externos, mas sim descobrirem o potencial escondido dentro de si. Fica clara também a influência dos arquétipos da cultura japonesa, principalmente do Tsundere, personagens que passam por grandes traumas, possuem relações complicadas com os pais e se protegem de todas as formas para nunca mais passarem por aquela experiência ruim. Assim, evoluem para personagens ambíguos, diversas vezes confundidos com vilões, inclusive com atitudes e sentimentos bipolares — como, por exemplo, ter uma forte lealdade ao mesmo tempo que são manipuladores, ressentidos e até desonestos.
Aquela foi a grande apresentação de Frank Miller como roteirista. Era apenas um FILLER, uma história única e sem continuação, preenchendo linguiça enquanto o novo responsável pelo roteiro ganhava tempo para planejar arcos maiores. Miller já era badalado como artista e naquela época era raro que uma editora como a Marvel confiasse num só cara pra cuidar do roteiro e da arte, principalmente um que tinha poucos anos de casa. Só que o cartão de visitas... ¯\_(ツ)_/¯
A edição estabelece que Elektra Natchios e Matt Murdock tinham se conhecido anos antes, quando o futuro Demolidor ainda estudava Direito ao lado de Foggy Nelson. Ela era filha de um milionário grego chamado Hugo Kostas Natchios, que acabou se tornando embaixador da Grécia nos EUA e, por isso, os dois se conhecem e namoram por cerca de um ano.
Quando tudo parecia perfeito, a tragédia apareceu. Um grupo de terroristas foi tentar sequestrar o Embaixador e, mesmo com Matt já usando seus poderes e impedindo os bandidos, a ação foi mal entendida pela polícia, que atirou e matou Hugo Natchios.
Elektra então foi para a China, deixando o amor de lado, e canalizou toda a sua raiva no treinamento para se tornar uma assassina. Agindo como uma agente independente, ela foi contratada para matar o criminoso Alarich Wallenquist – e, por isso, acabou cruzando mais uma vez o caminho de Matt Murdock, agora usando o manto do Demolidor.
Apesar de derrotar o Homem Sem Medo, Elektra falhou em sua tarefa e, prestes a ser morta por isso, foi salva pelo próprio Demolidor – que, CLARO, revelou sua identidade secreta para a ex-amada no processo.
Como dá pra perceber, a ideia do Frank Miller não era exatamente copiar o desejo da filha pelo pai da mitologia grega, mas fazer uma referência ao fato da filha ser consumida pela morte do pai. E provavelmente porque Elektra é um nome legal pra caralho, né?
A HQ foi tão bem recebida que aquela não poderia ser a única aparição da ninja. Por isso a personagem voltou na edição 174, de Setembro de 1981. Em um grande arco, Wilson Fisk, o Rei do Crime, contrata o Tentáculo – organização ninja que descobrimos ter sido a responsável pelo treinamento da Elektra – para matar o Demolidor. A ninja OBVIAMENTE apareceu para ajudar o AMADO SEM MEDO...
Elektra então se tornou uma personagem recorrente em Daredevil, em uma fase na qual Miller introduziu outro importante ponto da origem do ATREVIDO: o treinamento pelo Stick. Não só isso: o gibi estabelece que Elektra foi outra discípula do sensei cego, antes mesmo de ter sido uma das integrantes do Tentáculo. Parecia que os dois iriam viver ~tranquilas histórias juntinhos dali em diante. Parecia.
Na edição 179, a Elektra se volta contra o Demolidor, se tornando a assassina contratada pelo Rei do Crime. Duas edições depois, a 181, o Mercenário, o antigo ocupante do posto, foge da cadeia e, numa luta entre os dois, mata a Elektra.
Um dos acontecimentos mais chocantes das HQs da Marvel nos anos 1980.
O Tentáculo retornaria poucas edições depois, roubando o corpo de Elektra com o objetivo de ressuscitá-la e, por conta do ritual, ter total controle da assassina. Quando descobre o plano, Matt Murdock ataca e vence a organização ninja — tudo para ele mesmo tentar ressuscitá-la. Só que não dá certo. Quer dizer, ao menos é isso que ele acredita, já que o EPÍLOGO de Daredevil #190 traz Elektra viva e bem, escalando uma montanha e se isolando do resto do mundo.
A essa altura, a fase do Frank Miller no Demolidor já era vista como histórica e a Elektra era uma personagem bastante reconhecida entre os leitores. Origem, vida, morte e renascimento, tudo veio muito rápido, em menos de dois anos. Só que isso não impediu que a Elektra ficasse longe do Demolidor por mais de DEZ anos.
De acordo com Brian Cronin, da coluna Comic Book Urban Legends Revelead, Frank Miller GOZAVA de carta branca na Marvel, dada pelo editor Ralph Macchio. Assim sendo, a Elektra apenas voltaria para a vida de Matt Murdock se Miller quisesse. E ele não quis.
O que ele quis, na verdade, foi contar histórias solo da personagem. Entre 1986 e 1987 a Marvel publicou a minissérie Elektra: Assassina, escrita por Miller e desenhada por Bill Sienkiewicz, que é bem vaga sobre cronologia. A graphic novel é uma das mais marcantes dos anos 80, muito por incorporar um estilo experimental de aquarela, lembrando a clássica revista Heavy Metal. Também foi importante por não ter sido aprovada pelo Comics Code Authority, sendo lançada apenas em comic shops – algo ainda raro naqueles tempos. Outro ponto importante é que a HQ, que teve um total de oito partes, definiu algumas novas características da personagem e de seu background, como o fato dela ter sido estuprada pelo pai quando tinha apenas cinco anos.
Anos depois, em 1990, Miller assinou outra graphic novel, Elektra Lives Again – dessa vez também desenhada pelo quadrinista. Aqui Miller traz a Elektra no presente, sem dúvidas sobre a cronologia, e fugindo do Tentáculo que, por sua vez, recruta e mata o Mercenário, podendo assim revivê-lo sob o controle total da organização. A ninja não só frustra os planos do grupo, como mantém o velho vilão do Demolidor ainda morto.
Depois disso, a Elektra só voltaria em 1994. A essa altura, a Marvel Comics já era uma grande empresa, Frank Miller tinha há muito tempo se aventurado em outros projetos e o antigo acordo foi ignorado. Assim, em Daredevil #325, Matt finalmente descobriu que o antigo amor estava vivo.
Nessa fase de “volta da morte”, incluindo as graphic novels do Miller e o que foi feito depois delas, a Elektra ganhou novos poderes, como a capacidade de “colocar” sua mente no corpo de outras pessoas, ler mentes para descobrir onde as pessoas estão ou o que elas vão fazer em seguida, telecinese e ainda um grande “grito” criado com o próprio chi, tão alto que pode deixar alguém surdo ou até matar.
Foi também a partir dos anos 1990 que a Elektra passou a se envolver com o resto do Universo Marvel, começando pelo Wolverine, na edição 106 do gibi do Carcaju, de 1996, justamente naquela época que o Logan havia perdido o adamantium e estava em sua fase bestial. É, eu sei, anos 90. Foi justamente a Elektra que ajudou o X-Man a novamente conseguir pensar como um humano, e até voltar a falar — além de ter rolado um FLERTE entre os dois.
No mesmo ano, Elektra finalmente ganhou um gibi próprio, escrito pelo Peter Milligan e desenhado pelo brasileiro Mike Deodato Jr (que tinha passado pela Mulher-Maravilha na DC). Ao mesmo tempo que as histórias voltavam aos elementos da época do Miller, com uma revanche contra o Mercenário e aparições do Demolidor e do Stick, a protagonista foi se aventurando cada vez mais com os outros personagens da Casa das Ideias, incluindo encontros com o Dr. Estranho, Wolverine, Samurai de Prata… A última edição, a 19 (de junho de 1998), é também uma das várias vezes que o Stick morre (sendo que a primeira delas ainda tinha sido na fase do Frank Miller…).
Depois de um encontro com o Homem-Aranha no fim da década, Elektra voltaria para um gibi solo em 2001. Dessa vez, a ninja era escalada para a SHIELD, marcando um afastamento ainda maior dos conceitos dos anos 80. Uma das justificativas pra improvável união foi que, do outro lado, Tentáculo e a HYDRA estavam trabalhando juntas. A ideia só acabou depois do fim do segundo volume de Elektra, em Wolverine vol.3 #30, quando Elektra sobrevive à destruição do aeroporta-aviões da SHIELD.
Só que é aí que as coisas ficam estranhas.
No crossover Invasão Secreta, publicado em 2008, é revelado que a Elektra foi sequestrada pelos Skrulls após o incidente, sendo substituída por uma impostora. É justamente a morte dessa infiltrada (que, após PERECER, retorna para sua forma original, como qualquer Skrull) que assusta os Novos Vingadores, afinal nenhuma tecnologia ou os sentidos aguçados do Wolverine puderam identificar a impostora. Algo de muito maior estava acontecendo sem ninguém perceber: a Invasão Secreta.
CLARO que a confusão foi eventualmente desfeita e a Elektra original voltou. Nos últimos anos, a personagem ficou ao lado dos Heróis de Aluguel e, mais recentemente, passou a fazer parte de uma formação dos Thunderbolts com caras como o Agente Venom, Hulk Vermelho, Justiceiro e Deadpool.
É bem claro que a série da Marvel exibida no Netflix se apropria dos elementos da fase do Frank Miller com a personagem. Porém, existem diversas adaptações e mudanças cronológicas — afinal, o Homem Sem Medo da TV tem, ainda, pouco tempo de experiência e o passado com a Elektra não é algo tão no passado assim, como era com o Matt Murdock dos quadrinhos. Por isso, quando o futuro advogado conhece a herdeira da fortuna Natchios ela é muito mais próxima daquela ninja que ela se tornará no futuro.
Ainda assim, como tudo o que foi feito com a Elektra nos quadrinhos a partir dos anos 1990, não é aquela personagem criada pelo Frank Miller. “Podem fazer o que ela quiser, não é ela”, disse o quadrinista aqui no Brasil. Na cabeça dele, a afirmação tem validade: a Elektra, mesmo sendo da Casa das Ideias, é praticamente uma personagem autoral, fruto das experiências, gostos, vivências e loucuras do Miller. Um pai que criou uma filha pra si e que a prefere imaginá-la morta do que deixá-la viver a própria vida, com outras pessoas…
Algo que fica bem claro quando lembramos daquele acordo com o Ralph Macchio nos anos 80.
Quer saber? Não encane com isso. Curta as HQs, sendo clássicas ou novas. Veja a série. Mais do que nunca, a Elektra agora é parte da mitologia do mundo moderno. Elektra Lives Again. ;)