Kraftwerk lutou 19 anos por apenas dois segundos. E perdeu. | JUDAO.com.br

Tribunal alemão decide contra a veterana banda eletrônica no caso de um sample usado pela rapper Sabrina Setlur. Ainda bem.

Agora é definitivo: os caras do Kraftwerk, banda da Alemanha que é considerada um dos nomes mais importantes e influentes da música eletrônica, perderam um processo lendário que vinham movendo contra a rapper Sabrina Setlur, anteriormente conhecida como Schwester S. A treta começou por conta da faixa Nur Mir (Somente Eu), que tem um trecho de 2 segundos de Metall of Metall (Metal em Metal), clássico do Kraftwerk de 1977.

Percebam aqui que estamos falando de 2 SEGUNDOS. Contaí. 1 mississipi, 2 mississipi. Cabô.

A história, no entanto, está longe de ser nova: o vocalista do Kraftwerk, Ralf Hütter, entrou com a ação judicial em 1997, há exatos 19 anos. O processo, na verdade, era contra o produtor de Sabrina, Moses Pelham, executivo veterano do mercado fonográfico alemão, responsável pela gravadora 3p Records.

O trecho da canção era o que a gente chama de sample, que é basicamente um pedaço de uma música, seja cantado ou instrumental, retirado de seu contexto original e reutilizado de forma diferente em OUTRA música.

Hütter dizia que o sample era “roubo” (chegando até a citar o mandamento “não roubarás”, da Bíblia, como argumentação durante um julgamento), enquanto Pelham argumentava que o ato de samplear é um componente essencial para o hip hop, e que proibi-lo acabaria abrindo um precedente perigoso, limitando a liberdade artística dos artistas. Fato: desde os anos 1970, os DJs de hip hop fazem largo uso dos samples, não apenas de outras músicas, mas também com frases célebres de filmes, da TV, de comerciais, de discursos políticos...

Em 2008, a corte civil da Alemanha tinha decidido a favor do produtor, mas em 2012 a instância superior para assuntos legais não-constitucionais (a Bundesgerichtshof, ou Corte Federal de Justiça) reverteu a decisão, dizendo que Pelham poderia ter usando uma batida em loop qualquer sem precisar do sample. A música estava proibida de ser veiculada, sob pena de infração de direitos autorais. Só que o cara não desistiu, tava mesmo disposto a brigar. E levou o assunto ainda mais pra cima.

Agora a decisão do juiz da mais alta corte alemã — a chamada Corte Constitucional, o equivalente ao nosso Supremo Tribunal — foi claríssima: um sample não impacta significativamente os direitos de uso do artista original. Desta forma, a liberdade artística ultrapassa os interesses do dono da obra sampleada.

Além de concordar que o sample é um dos elementos que ajudam a definir o hip hop enquanto estilo musical, afirmou que a proibição da canção poderia “inibir a criação de canções neste gênero em particular”. Para fechar com chave de ouro, o tribunal declarou que os artistas devem ser livres para criar sem restrições ou riscos de processos judiciais, dizendo ainda que o sample pode ser realizado desde que a nova composição não seja uma competição direta com a música original e não infrinja os detentores da patente de maneira significativa.

É mais ou menos o mesmo pensamento que vemos na Justiça dos EUA, por exemplo, onde a doutrina do “fair use” garante que samples possam ser utilizados livremente se forem considerados “transformadores” (algo novo) e não apenas “derivativos” (mais do mesmo) – o que significa que não afeta o valor do trabalho original.

Antes da decisão sair, o sindicato da indústria fonográfica alemã já tinha se manifestado em defesa do Kraftwerk, dizendo que a atitude de “liberdade artística pode tudo” poderia ter consequências mais graves. “Seria exatamente o que adorariam ouvir todos aqueles que acreditam que tudo é permitido na internet”, afirmou Florian Druecke, porta-voz da entidade.

Um discurso de executivos dizendo “calma lá com este negócio de liberdade artística”? Uau. Por que será que isso não me surpreende? ;)

O que me surpreende, de fato, é o discurso RETRÓGRADO de uma banda (que influenciaria nomes como David Bowie, Depeche Mode, Björk e Joy Division) reconhecida pela experimentação, pela inovação e pelo inesperado.

E tem mais: Nur Mir está longe de ser a única música na qual um artista do hip-hop sampleia o Kraftwerk – e eles foram encasquetar justo com os dois segundos da Sabrina Setlur. Já teve Afrika Bambaataa & Soulsonic Force (que, em Planet Rock, sampleia trechos de Trans-Europe Express e Numbers), já rolou Jay-Z (em It’s Alright, ele usa um pedaço de The Hall of Mirrors) e até Lil B (que, na sua In a Hearst, busca um recorte de Kometenmelodie 2). Dá pra ver (e ouvir) estes e muitos outros exemplos bem aqui, neste site.

Em um artigo de 2013 a respeito do hit Harlem Shake, do produtor Harry Bauer Rodrigues, o jornal inglês The Guardian já questionava o futuro do sampling em uma indústria que se tornou louca por advogados desde que o Napster mostrou a cara. Pouco depois da explosão da sua faixa, Bauer seria processado pelo cantor Hector Delgado, que canta a frase “Con los terroristas” em sua música Maldades, e pelo MC Jayson Musson, que é a voz que fala “Do the Harlem Shake!” na música Miller Time, de seu grupo Plastic Little.

“Esta é uma área cinzenta moldada pela confusão jurídica, pela necessidade financeira, pelos avanços tecnológicos, pelos argumentos de mais liberdade artística e pelas reclamações à moda antiga”, diz o jornal.

“O critério é nebuloso e os julgamentos quase sempre subjetivos. A lei é uma bagunça, mas às vezes a lei não é sempre tudo aquilo que conta”. O artigo defende ainda que o julgamento do tribunal alemão em 2012, a favor do Kraftwerk, mostrava um total desconhecimento sobre o ato do sampling. “Produtores usam samples precisamente porque eles querem brincar com a aura do original. Que graça teria se eles refizessem o som por conta própria?”. E ainda completa: “Pelos critérios daquele juiz alemão, Andy Warhol deveria ter pintado suas próprias imagens de Marilyn Monroe?”.