A dificuldade da pequena Imovision em lançar o Blu-ray de Azul é a Cor Mais Quente serve para mostrar o quanto o mercado de home video brasileiro ainda é provinciano — e quanto o sexo ainda choca
A arte – seja ela comercial, hipster, o que for – é pra te fazer sentir algo. Uma dor, uma alegria, compaixão, raiva, um imenso WTF. Quem sabe até tirar você da sua zona de conforto fazendo pensar o que nunca pensou, ver o que nunca viu, sentir o que nunca sentiu.
Foi o que a graphic novel Le Bleu Est Une Couleur Chaude, da francesa Julie Maroh, conseguiu. Não só pelos desenhos, monocromáticos, mas também pela história, que é “só mais uma de amor”. Ou, pelo menos, deveria ser.
Abdellatif Kechiche, diretor tunisiano, um belo dia estava passeando por uma livraria em Paris quando encontrou o “BD” (bande dessinée, o francês pra história em quadrinhos, ou HQ) numa estante. Comprou, leu e resolveu transformar aquilo em um filme. E, assim, o amor de Clémentine e Sabine virou o amor de Adèle e Emma em Azul é a Cor Mais Quente. A base, o amor independente de gênero, ainda continuou a mesma. Mas a série de polêmicas estava começando.
Críticas às condições de trabalho na produção, acusações das duas protagonistas ao diretor, críticas do próprio ao resultado final do longa e, claro, recepções calorosas DEMAIS — no mau sentido — às cenas de sexo entre as personagens principais. Nesse contexto, a Palma de Ouro em Cannes atraiu mais atenção para o filme, mas, o principal, a história de amor, ficou em segundo plano. Falava-se mais do sexo e das polêmicas nos bastidores.
Ou melhor: ainda se fala. em Fevereiro de 2014, em sua página no Facebook, a distribuidora Imovision jogou no ventilador: replicadoras no Brasil estariam se negando a produzir o disco do filme em alta definição, justamente por conta do seu “conteúdo”. “Ainda estamos batalhando para reverter essa situação, mas não conseguimos acreditar que tratariam dessa forma a história de amor mais linda de 2013, vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes e diversos outros prêmios”, dizia a nota.
“É uma pena que as pessoas foquem nisso”, contou a atriz Adèle Exarchopoulos, que interpreta a Adèle do filme, em entrevista para o JUDÃO. Pra ela — e pra qualquer pessoa normal — essa é a parte menos importante da história. “Sexo faz parte da vida, mesmo pra quem tem alguma coisa religiosa. Faz parte de você, foi o que te construiu. É intimidade, quando você se oferece pra alguém. Você se abre, você se doa, seja por uma vida ou por uma noite”.
Não, não tem a ver com homofobia. Talvez seja até pior, já que o problema é simplesmente o sexo — algo que homossexuais, transsexuais, panssexuais e até os heterosexuais fazem. E, apesar de bastante GRÁFICAS, você encontra coisas “piores” em 10segs no Xvideos. Há, aliás, cenas de sexo MUITO mais, digamos assim, pornográficas em filmes mainstream por aí. Sexismo? Também não. O problema não é o gênero, ou a quantidade de pessoas de um mesmo gênero.
O problema, mesmo, é o difícil relacionamento entre distribuidoras, empresas de autoração e replicadoras no nosso País — e é isso o que o JUDÃO vai tentar explicar pra você.
Em nota oficial, a Imovision informou que “Depois das dificuldades encontradas para a replicação do DVD” do filme, “procurou a empresa brasileira Sonopress, que replica seus títulos em Blu-ray, mas a mesma se recusou e ainda alegou que nenhuma outra empresa faria o serviço. A Imovision então contatou a Sony DADC, que também se recusou a produzir o Blu-ray do filme, por considerar o conteúdo inadequado devido às cenas de sexo, apesar do filme já ter sido classificado para maiores de 18 anos”.
São apenas três empresas que replicam títulos em Blu-ray no Brasil — Sonopress, Sony DADC e AMZ. Ou seja, sem elas, fica impossível lançar o título em alta definição – ao menos com produção nacional.
Segundo Jean Thomas, presidente da Imovision, as duas empresas apenas avisaram que “é por causa do ‘conteúdo’”, sem maiores detalhes sobre a recusa. Oficialmente, as companhias citadas pela distribuidora não estão se pronunciando sobre o assunto, mas nossas FONTES, diretamente ligadas a esse mercado, afirmam que a decisão tem um pé em um problema do passado, quando um filme infantil teve as capas trocadas com um título pornô. A partir daí, esse cliente (no caso, uma grande distribuidora) passou a exigir em contrato que as replicadoras não trabalhassem mais com esse tipo de título.
Como diz o ditado, manda quem tem dinheiro, obedece quem tem juízo. Ou algo assim.
Essa história é confirmada com a informação do jornal O Globo, para o qual o departamento jurídico da Sonopress informa que contratos com “empresas como” Disney a Microsoft “exigem esse tipo de limitação”.
Mas, Azul é a Cor Mais Quente é PORNOGRAFIA, por conta das cenas de sexo? Talvez, na análise fria de um documento jurídico, acabe sendo, infelizmente. É como nos disse a própria Adèle: “As pessoas só se focam nisso porque... Eu não sei porque”.
É claro que, quando você analisa o contexto com mais calma, encontra discrepâncias – principalmente na linha tênue entre arte, entretenimento, violência e pornografia.
Veja, por exemplo, o caso clássico do também clássico filme Calígula, lançado nos cinemas em 1979. Quando a produção passou a ser comandada pelo então publisher da Penthouse, Bob Guccione, foram adicionadas cenas de sexo explícito ao filme. Porém, isso não impediu do filme ser lançado em Blu-ray no Brasil em 2010 pela Europa Filmes — e com replicação da Videolar, hoje parte da AMZ.
(Quem em sã consciência colocaria o responsável por uma empresa de pornografia pra cuidar de um filme mainstream? Seja quem for, tem nosso respeito!)
Porém, não existem filmes pornôs em Blu-ray no Brasil. Não sabemos nem se eles existem a VENDA por aqui, mas nenhum é produzido. Mas sabe o que existe em todos os lugares? Outros tantos filmes e jogos que nós adoramos e achamos absurdo cada vez que resolvem culpar todos os males do mundo neles — e ninguém, nem “empresas como” Disney a Microsoft, exigem que isso seja proibido, em contrato.
“O sexo choca os americanos, por exemplo, que são tão acostumados com violência”, diz Adèle. “É como uma reação em cadeia, quando seu pai diz pra você não assistir a um filme porque é violento e você vai lá e assiste escondido. Eles agem como crianças”.
Não, não estamos tentando comparar filme com jogo, live action com algo gerado por computador — nós ainda não chegamos ao ponto de achar Hentai edificante em algum nível. Mas pense comigo: imagina se por acaso confundem as capas de Disney Infinity com a de Saints Row IV?!
Lembre-se também de que o PlayStation 3 é um dos tocadores de Blu-ray mais populares do Universo. A relação é mais direta do que você imagina. :)
[text-box title=”Viu como se faz?” width=”100%”]A distribuidora é a empresa que distribui o conteúdo. No caso dos grandes grupos de mídia, como Warner e Disney, as empresas têm a sua própria distribuidora, que tem acesso aos conteúdos e produções próprias, ou ainda de parceiras. No caso das distribuidoras pequenas e independentes, elas entram em acordo com quem produziu para trazer o conteúdo para o Brasil.
Seja a empresa pequena ou grande, ela precisa “autorar” o disco quando quer fazer um lançamento em Blu-ray ou DVD. Basicamente, é o trabalho de escolher a versão do filme/episódios e os extras que vão para os discos (no caso das independentes, muitas vezes esses extras são negociados separadamente), fazer menus, animações e por aí vai. A vantagem das grandes é que, em muitos casos, os discos são autorados para toda a região – por isso temos filmes lançados nos EUA com dublagem e legendas em português.
Por último, o “master” do disco chega à empresa responsável pela replicação. É a grande fábrica, na qual entra o arquivo e são produzidas tiragens do filme, série, game, o que for. No Brasil, apenas três empresas do tipo replicam Blu-rays: AMZ, Sony DADC e Sonopress – que possuem contratos com as grandes distribuidoras daqui.
[/text-box]O fato é que tudo isso comprova como o mercado de cinema e home entertainment no Brasil ainda são pequenos. Ou melhor, praticamente NULOS. Um lado, pra sobreviver, força (nem que seja indiretamente) a diminuição do outro. E isso é uma pena.
Até o momento, ainda não há uma definição para o destino de Azul é a Cor Mais Quente em Blu-ray. O DVD tá garantido (mas isso você já imaginava, né?). E, no final das contas, é uma derrota de uma história de amor. Podemos discutir a qualidade do filme? Não, porque é BEM fraco — ainda mais conhecendo a história em quadrinhos, que serviu apenas como base para o trabalho de Kechiche. Se resolvessem se negar a replicar o filme baseado nisso, a gente não se oporia (BRINKS).
O fato é que é SÓ MAIS UMA HISTÓRIA DE AMOR. E, gostando ou não do filme, ela deveria poder ser vista pelo maior número de pessoas, com a melhor qualidade possível. Ou, se não pelo maior número de pessoas, por quem quisesse ver. Uma, duas, todas. É um filme, só mais um filme. Uma história.
Mas, Adèle Exarchopoulos, com um inglês carregado de sotaque francês, resume bem o mundo em que a gente vive — infelizmente. “Sexo é paz, você se sente bem depois que faz. Não consigo entender porque é tão...”
Nem a gente, Adèle. Nem a gente.