Perspectiva é a melhor ferramenta na análise de qualquer peça do mundo entretenimento. Logo, essa série vai abordar diversos filmes e livros relevantes com um olhar distante do calor da batalha.
“In Nolan We Trust”. A brincadeira envolvendo a frase impressa no dinheiro dos EUA transformou-se na grande prova de fé de muitos cinéfilos no trabalho de Christopher Nolan, diretor de Amnésia, A Origem, Batman: O Cavaleiro das Trevas. Incapaz de errar para alguns, superestimado para outros, Nolan assumiu uma posição de destaque e risco em Hollywood, como diretor e produtor, por liderar a vanguarda de uma mistura de gêneros que resulta num conceito melhor expresso pelo termo “Extrapolar Barreiras”.
Como qualidade é subjetiva e sempre questionável, é justo dizer que Nolan conquistou esse respeito do público por arrojo. Quando os deuses da Ficção Científica (Cameron, Spielberg e cia) bandearam-se para o mainstream – nada de errado nisso – e as irmãs Wachowski foram incapazes, narrativa e qualitativamente, de manter o ritmo, Nolan apresentou provocações. O primeiro soco no estômago chegou com Amnésia, que chacoalhou o paradigma de roteiros de Hollywood, questionou a sanidade e a lógica e, mesmo sem dar lucro inicial, virou cult e, melhor de tudo, fez as pessoas pensarem. Sempre digo e repito, a maior responsabilidade da Ficção Científica (e uso aqui o conceito mais amplo, bem distante da chatice dos puristas), em qualquer mídia, idioma ou momento, é questionar o mundo em que vivemos, criticar a sociedade e plantar perguntas.
A maior responsabilidade da Ficção Científica é questionar o mundo em que vivemos, criticar a sociedade e plantar perguntas
O sucesso do mainstream com a trilogia Batman, igualmente provocadora e questionadora, mas, dessa vez, pelo aspecto social – o segundo filme é um tratado sobre sociedade e natureza humana – permitiu uma paulada em todos os sentidos com a chegada de A Origem. Saber se o peão caiu será tão eterno quanto a traição de Capitu. E, enquanto debatemos, sem resposta, continuaremos pensando nas reverberações da pergunta: onde está a realidade? Temos controle sobre ela? Os efeitos são imensos, mesmo que aplicados em universos micro, afinal, cada realidade tem suas proporções e demandas. Por que a decisão de um presidente tem necessariamente que ser mais relevante que a de um professor na sala de aula ou um operário que chega em casa cansado, mas gasta as últimas energias para garantir que o amor pelos filhos é real?
Nessa fase, tive o privilégio de conversar com James Cameron, num dos momentos mais orgulhosos da vida e da carreira, e o papo foi de igual para igual. Dois apaixonados por um tema, criados em mundos cheios de fantasia e possibilidades e, embora ele seja milionário e nem deva lembrar do papo, o jornalista pé rapado aqui nunca vai esquecer. Tanto pela experiência quanto, veja só, pela pergunta que me acompanha desde então. Por que não olhamos mais para o espaço? Eu mesmo interpelei Cameron sobre isso, mas a pergunta surgiu da conversa e, sem surpresa, caímos em Nolan. Ele sugeriu que o sucesso e a qualidade de A Origem vinham da necessidade de um novo ciclo, um que nos forçava a olhar para dentro, procurar razões não no espaço sideral, mas dentro de nós mesmos, onde os sonhos e catástrofes acontecem. A mente era esse lugar e, acertadamente, Nolan a estudava e abordava há um bom tempo, por isso Amnésia é importante nessa discussão. Afinal, quais os limites? Do que somos capazes?
A mente dele sempre foi vanguardista, sempre foi exploradora. Essas constatações não têm nada a ver com fanatismo. Ele faz pensar e merece meu respeito. Está longe da perfeição, mas todos os seus trabalhos merecem votos de confiança pela simples questão de ele estar fazendo algo que pouca gente faz. Arrisco dizer que apenas Duncan Jones tem provocado tanto quanto Nolan no cinema. E isso, de modo algum, faz com que precisemos aceitar suas decisões sem questionamento. Isso seria um gigantesco tiro no pé, pois, se o diretor/roteirista e produtor quer nos fazer pensar, onde está a lógica de se aceitar tudo sem, de fato, pensar? O público precisa desenvolver uma lógica condizente com o trabalho apresentado.
E Interestelar foi um grande teste. Se Amnésia e A Origem buscavam respostas dentro da sanidade e de nossas criações, Interestelar cruza para o outro lado do espectro – e do universo – para explorar, informar, questionar, sentir e imaginar a última barreira do conhecimento humano: o buraco negro, que também serve como metáfora para o desconhecido e a morte. Com o pano de fundo da nossa própria extinção que, ao contrário do que muitos leitores e espectadores jovens pensam (especialmente quem julgou negativamente a decisão do Repórter, em meu livro Filhos do Fim do Mundo), exerce um dos maiores efeitos transformadores sobre os homens. O instinto de sobrevivência é inconteste e entra na dança em Interestelar. Isso talvez venha com a maturidade, a paternidade e o passar dos anos, que trazem a perspectiva do fim inevitável, talvez venha do simples fato de amar demais a vida e se dispor a tudo – mesmo entregá-la – para garantir a continuidade da família, de quem se ama. É uma mistura de idealismo e utopia com amor declarado.
Cooper (Matthew McConaughey) é um homem marcado pelo fracasso, vivendo num mundo moribundo tanto física quanto culturalmente, impedido de sonhar com as estrelas, preso à realidade decrépita enquanto espera pelo fim de tudo, mesmo sabendo que nasceu para ser um explorador, para desbravar o cosmos. E aqui faço uma pausa para trazer um daqueles momentos magníficos que o inconsciente coletivo promove, quando ideias surgem da necessidade social e humana e duas pessoas, desconhecidas, vindas de mundos diferentes, trabalham o mesmo tema: esse foi o conceito base do conto O Céu de Lilly, que, felizmente, publiquei antes da estreia do filme e sem imaginar a temática de Nolan. Acredito muito na perspectiva de Asimov, de que a Humanidade PRECISA conquistar as estrelas e a Terra nunca vai ser o suficiente. Mesmo que uma pequena parcela da população se preocupe, ou se importe, com isso, sempre sentiremos essa motivação de dar o próximo passo. Mas e quando isso nos é roubado? Lilly não pode sequer olhar para o céu, Cooper olha, mas tudo que ele traz é remorso e dor. Ele fica preso à Terra. Prisão, para muitos, é o mesmo que a morte. Nesse caso, é uma morte sem recomeço, sem continuidade, pois ela está ligada ao fim da Humanidade.
A visão de Nolan chega a ser, essencialmente, mais pessimista do que aparenta. E o que assusta não é a Terra moribunda, mas a reação dos poucos heróis que conseguem romper as limitações e partem para o espaço na esperança de encontrar algum futuro – por mais precário e incerto que seja – para a Humanidade. Como Leigh Brackett e Lawrence Kasdan, os roteiristas de O Império Contra-Ataca, bem colocaram na cena da caverna de Dagobah, lá dentro existirá apenas o que levarmos conosco. A cena ecoa a Ilíada e conceitos de Platão, mas vale para o espaço, afinal, contra o infinito, nosso único inimigo é o medo que carregamos dentro da gente. Solidão transforma as pessoas, insegurança provoca decisões equivocadas e o medo coloca tudo a perder, como o personagem de Matt Damon representa. Mas Cooper tem uma motivação maior: família. É cafona? Mas não seria igualmente tolo desconsiderar o maior tesouro dos grandes heróis?
O espaço de Ridley Scott é solitário, sombrio e cheio de perigos, assim como a noite de George R.R. Martin. Mas o vácuo de Christopher Nolan é cheio de possibilidades, de escolhas difíceis e de um peso gigantesco, pois os tripulantes da expedição carregam o peso de todo do planeta. E até mesmo isso é subvertido quando a verdadeira natureza da missão é revelada. Nesse ponto, a história sai do macro e crava no micro. A Humanidade fica em segundo plano. Cooper está preocupado com a filha. Acima de tudo, ele quer que ELA sobreviva. Ele deixa de ser herói e volta a ser o pai. E, agora, precisa provar suas próprias barreiras. Precisa, assim como Ulisses, encontrar um modo de fugir dos monstros e voltar para casa.
A história de Interestelar é essencial. Transporte-a para qualquer outra situação extrema e ela se encaixa perfeitamente. Mas ele escolheu o espaço. Ele escolheu o desconhecido. Ele decidiu transformar essa experiência num chamado de batalha a muitos jovens fascinados pela ciência e que, eventualmente, vão ajudar o mundo – à maneira deles – a romper os limites que contém a Humanidade desde o princípio.
Entretanto, isso gerou a maior polêmica do filme, pois, diferente de A Origem – cujo mundo inverossímil e desregrado dos sonhos foi completamente aceito e debatido por seus muitos níveis –, as explicações científicas foram recebidas com tons professorais, rejeitadas por espectadores que ou não gostam de aprender ou se sentiram desrespeitados por um filme (?!) ter a audácia de se explicar, embora todos os filmes façam isso o tempo todo, mas de forma velada. Assim como na prática do storytelling, é preciso conhecer as regras antes de quebrá-las e essa é uma das discussões básicas de Interestelar. Tenho amigos cientistas e tudo que eles mais fazem é revisitar suas teorias e cálculos antes de dar o próximo passo. Certeza é tudo. Mas certeza é justamente o que Cooper e sua tripulação não têm. Ao passo em que explicam para o público, e o colocam no mesmo dilema, os personagens tentam convencer-se uns aos outros. Afinal, tudo aquilo é uma loucura. Quem, em sã consciência, pularia num buraco negro, ou protegeria um filho de uma bala ou acidente? Se o amor é uma forma aceitável de loucura, de acordo com Spike Jonze, a paternidade está mais do que justificada, embora os méritos de certo ou errado sejam pauta para outra discussão, ou talvez não, afinal, a individualidade faz a diferença quando o futuro do coletivo está em jogo. Asimov pontua bem o fato de que as massas são previsíveis, mas o indivíduo é incontrolável e é o único capaz de mudar rumos de forma decisiva... e às vezes catastrófica.
Os debates gerados por Interestelar são igualmente relevantes aos de A Origem, mas os sonhos estão mais próximos.
Convivemos com eles diretamente. Não é preciso ser um astronauta pra precisar compreendê-los ou aceitar suas loucuras. O espaço parece agir como uma nota de corte e impedir que o conteúdo supere a forma, mas as histórias mais humanas são contadas na vastidão. Alias, há mais vazio do que matéria sólida espalhado por aí, então por que sentimos tanto medo do que há lá fora? Stanislaw Lem questiona, maravilha, assusta, sente e vive nas palavras de Solaris. Clarke provoca quando a Humanidade é confrontada por Rama. E Douglas Adams carrega tudo que é humano numa caixinha de bom humor enrolada numa toalha, mas nos preserva, mesmo com um exército de Vogons mal-humorados à espreita.
Talvez por conta desse medo do desconhecido, e de nós mesmos, o final tenha sido tão controverso? A influência do estúdio está clara ali. Hollywood é desesperada por finais “satisfatórios” para o público, odeia o termo “final aberto” e faz de tudo para deixar qualquer filme o mais amarrado possível, ou seja, algo é proposto no primeiro ato e precisa, obrigatoriamente, ser concluído – de maneira aceitável e clara – no final do terceiro ato. As leituras físicas, quânticas e metafísicas do que acontece quando Cooper atravessa o event horizon e entra no buraco negro são inúmeras e Nolan poderia ir para qualquer lugar. Escolheu questionar o paradoxo do ovo e da galinha, ao fazer com que Cooper navegasse pelo próprio passado e influenciasse seu futuro. Ainda no mundo do “e se”, um final pé no chão, desprovido de esperança, no qual a nave se desintegrasse e ele deixasse de existir? Ter esperança parece ter se tornado algo execrável. Mas, assim como na trajetória do diretor e do gênero, a jornada acaba valendo mais que o destino.
O final escolheu preservar o que existia, dar segundas chances e – sacrilégio! – ter até uma perspectiva de amor nas estrelas. Talvez por culpa do próprio Nolan, que tenha pregado o hiper-realismo de Gotham City e a natureza cruel e seca da vida, esperava-se algo tão inquietante quanto o peão e a expectativa faz sentido, especialmente perante a existência de outro final proposto ainda no roteiro que nunca foi à frente. Surpreender é difícil, superar expectativas no atual formato de divulgação é impossível. Estruturalmente, esse final foi apenas a cereja do bolo, que não influencia tanto no arco e ainda permite o reencontro emocionante de duas gerações separadas pelo tempo, mas sempre unidas pelo amor. Ler isso em voz alta soa piegas. Mas é real. Quantas grandes histórias não foram contadas sobre sentimentos através das Eras? Drácula é a maior delas e todo mundo ama. É uma questão de formato, expectativa e momento.
Mesmo com tudo isso, Interestelar não deixa de ser um filme. Por isso, segue regras narrativas. Apresenta um problema, vislumbra uma solução, coloca tudo a perder e encontra uma saída para o perrengue. A história de nossas vidas, sempre distante do ideal desejado e menos trágica do que imaginamos. Construções iniciadas com conceitos ensinados na infância, concentrados na juventude e compreendidos ao longo da vida adulta. Se Cooper conseguiu encontrar algo em que acreditar enquanto rumava para o coração de um buraco negro, por que é tão difícil acreditar na solução de problemas bem menores ou definitivos que esse? Essa é a jornada. E tudo começa com as perguntas certas.
Quando você olha para o céu, o que você vê? A resposta pode transformar a sua vida.