Com roteiro de Amy Chu, publicação da Dynamite Entertainment que chegou ao mercado no final da semana passada é inspirada na mitologia de Music From The Elder, de 1981
Dentre as muitas “verdades absolutas” do mundo do rock, uma que parece ser inabalável é a que diz que toda grande banda que se preza tem um esqueleto no armário. Um daqueles chamados “discos malditos”, álbuns que são uma “mancha” em sua discografia, talvez fracassos de público e crítica, um ponto fora da curva em termos de sonoridade, odiados por grande parte da base de fãs e que os músicos preferem simplesmente esquecer que um dia existiram, evitando tocar suas músicas ou mesmo falar no assunto.
Exemplos não faltam: Metallica com St.Anger, Iron Maiden com Virtual XI, Judas Priest com Turbo, Pink Floyd com The Final Cut, Black Sabbath com Born Again, Rolling Stones com Their Satanic Majestic Request, Queen com Hot Space, Led Zeppelin com Presence... No caso do Kiss, o “disco maldito” viria em 1981, um tal de Music From The Elder. Com produção do mesmo Bob Ezrin de The Wall, o álbum conceitual era nitidamente o Kiss tentando mostrar que podia ser uma banda séria, flertando com o progressivo e tentando ganhar a atenção dos críticos depois de uma dupla de discos bem comerciais, quase pop, os grudentos Dynasty (1979) e Unmasked (1980).
A superprodução cheia de ORQUESTRAÇÕES fracassou miseravelmente. Os fãs não reconheceram naquele lançamento a banda festeira que tanto amavam. As vendas foram uma bosta. E Music From The Elder se tornou uma verdadeira pedra no sapato do Kiss. “Este disco somos nós pensando exageradamente muito à frente e tropeçando em nossos próprios pés”, diz Paul Stanley, guitarrista da banda, em entrevista para a Loudwire. “Eu não me envergonho dele de maneira alguma, mas digamos que este disco e o filme para TV Kiss Meets the Phantom of the Park (1978) são bons exemplos de como conseguimos pegar a saída errada”.
Paul Stanley: “Não teríamos feito Creatures of the Night sem fazer o Elder”
O ponto aqui é que, como todo bom (?) disco maldito, Music From The Elder também é considerado por uma parcela de fanáticos como sendo um “disco injustiçado”, daqueles que merecem uma audição diferente, uma “segunda chance”. Este ano, talvez a obra receba esta nova chance graças a uma história em quadrinhos. O novo gibi dos quatro músicos mascarados, publicado pelo Dynamite Entertainment e batizado apenas de Kiss, teve seu primeiro número publicado no mercado americano no finalzinho da semana passada. A HQ é descrita pela editora como uma “aventura dark sci-fi”. Em um mundo sem sol e sem heróis, quatro jovens amigos embarcam em uma missão perigosa: descobrir a verdade sobre o misterioso Conselho de Anciões e seu lar subterrâneo, a cidade de Blackwell.
A trama original do disco girava em torno do Garoto, que foi recrutado e treinado por uma organização chamada Conselho dos Anciões, uma sociedade secreta que era parte de um grupo maior chamado Ordem da Rosa, cujos objetivos eram combater o mal num esquemão bem super-herói (pela honra, pela verdade, pela justiça). Sob os cuidados de uma figura paternal chamada Morpheus, o Garoto encara uma série de problemas e dúvidas durante seu treinamento, mas é claro que ganha confiança e acaba se tornando aquele que está destinado a ser.
“Qual é o verdadeiro poder do Kiss?”, pergunta-se a roteirista do gibi, Amy Chu (Poison Ivy: Cycle of Life and Death), em comunicado oficial. “Eu estava tomando café dia destes com a fabulosa escritora Kelly Sue DeConnick. Quando ela descobriu que eu estava escrevendo esta série, foi como se fogos de artifício tivessem sido liberados no restaurante, ela ficou empolgadíssima. Então, estou fazendo não apenas para os fãs das antigas (como Kelly Sue), mas também para os mais novos, como os filhos dela. É um grande desafio para mim. Lendário. Eles são uma marca global e que ultrapassa gerações”, explica ela.
Para o Bleeding Cool, Chu ainda contou que a Dynamite ofereceu um monte de títulos legais para que ela pudesse escrever. Mas a autora foi direto no Kiss. “Na minha infância e adolescência, todo mundo ouvia Kiss. Minha família era muito severa e odiava tudo que não fosse música clássica, por isso meus irmãos e eu não entramos para o Kiss Army como todo mundo que conhecíamos. Pensei que esta podia ser a minha chance”.
No entanto, a ideia sempre foi experimentar uma abordagem diferente do que tinha sido feito até o momento com eles nas HQs. “Muita gente tinha experimentado coisas mais malucas e divertidas. Então, pensei, por que não ir para um lado mais sério? Na minha pesquisa, ouvi e me aprofundei na história do disco Music from The Elder. Exatamente como rolou com o filme Blade Runner, quando saiu, muita gente não pegou o espírito da coisa de primeira. Acho que, se o álbum saísse nos dias de hoje, teria uma recepção inteiramente diferente. Então, esta história é focada na mitologia, heroísmo e inspirada nos temas, letras e títulos de canções daquele disco”.
A arte fica a cargo de Kewber Baal, conhecido pelo trabalho à frente das adaptações/derivações de Evil Dead nos gibis.
Tendo perdido o baterista original Peter Criss, que abandonou a banda dois meses antes das gravações de Music from The Elder começarem, o Kiss chamou Eric Carr para assumir as baquetas. O músico ficou ao lado do guitarrista Ace quando a intenção do álbum se tornou algo mais do que “é hora de deixarmos as faixas mais suaves de lado e voltarmos para uma pegada mais hard rock”. Com isso, a dupla concordava, era a hora de recuperar sua credibilidade como banda que faz rock mais pesado. Mas quando Simmons e Stanley, os donos da bola, decidiram que o próximo disco precisava ser mais do que um álbum, mas sim uma declaração de intenção com uma demonstração de qualidade técnica e de composição quase megalomaníaca, eles se opuseram totalmente. Foi à toa, no entanto. Tanto é que Ace, desapontado, mal compareceu às sessões de estúdio.
As gravações se iniciaram em março de 1981 – e tudo foi feito no mais pleno isolamento, para que ninguém ouvisse qualquer trecho da parada até que estivesse pronta. Mas como uma série de instrumentistas e cantores clássicos estiveram envolvidos no processo, da American Symphony Orchestra e do St. Robert’s Choir, a história toda acabou demorando mais do que deveria e Music From the Elder acabou ficando pronto apenas em setembro. Quando o resultado final foi apresentado para a gravadora Casablanca Records, os executivos ficaram sem entender muito bem. Mas os músicos insistiram, não arredaram o pé, e disseram que seus fãs entenderiam e apreciariam os esforços para que sua sonoridade fosse expandida além dos parâmetros normais. Pô, estamos falando de um disco que não traz, pela primeiríssima vez, nem sinal dos rostos de nenhum dos quatro músicos, com ou sem maquiagem. Ousadíssimo, não?
Mas Simmons e Stanley, no fim das contas, estavam errados. O disco estreou apenas no número 75 das paradas da Billboard em novembro e, no começo do ano seguinte, já tinha desaparecido das listas. Rumores dão conta que, no total, Music From the Elder vendeu meras 500.000 cópias em toda a sua trajetória, globalmente, o que pode ser considerado uma tragédia para uma banda acostumada aos sucessos comerciais como o Kiss. Não rolou turnê de divulgação. E apenas um single foi trabalhado: A World Without Heroes, justamente uma das duas canções que não contaram com a participação de Frehley.
Desde então, a banda vem evitando a todo custo tocar as músicas deste disco ao vivo. Rolou o single A World Without Heroes em 1995, no acústico da MTV. Em um show de 2004, na Austrália, tentaram tocar The Oath e I, mas fãs presentes afirmam que Gene simplesmente esqueceu o diacho da letra. Depois disso, as faixas apareceram apenas em ocasiões mais intimistas, na forma de um “presente” para os seguidores mais leais, como nos shows que o quarteto fez durante o Kiss Kruise.
Os planos originais eram tornar não apenas The Elder uma sequência de discos, mas também torná-lo a trilha sonora para um filme de fantasia, que acabou nunca saindo do papel. Mas o escritor e cineasta independente Seb Hunter começou a desenvolver, há cerca de quatro anos, uma versão para cinema — mas sem necessariamente precisar da autorização dos músicos. Segundo Hunter, claro, se Simmons & Stanley dessem o seu aval, seria lindo. Mas não mandatório.
“Estamos fazendo isso com muito respeito e adoraria a autorização deles. Estou realmente esperando que eles vejam o potencial disso”, afirmou, em entrevista ao Blabbermouth, lembrando que não quer dinheiro da banda, pois pretende tirar o projeto do papel com a participação de investidores e o apoio dos próprios fãs. Três décadas depois, ele acredita que a história precisava de uma atualizada. “Decidi reiniciar como uma espécie de road movie pós-apocalíptico, mas com todos os significados no lugar certo. Os personagens são os mesmos e a narrativa geral também. Basicamente conta a mesma história: a busca do garoto e o bem contra o mal”.
De acordo com o diretor, a intenção é fazer um filme de baixo orçamento e que tenha apelo para todos os tipos de público. “Vai ser subsidiado pelos fãs do Kiss — desde que o Kiss não nos processe, claro”. Apesar de já ter divulgado até um trailer prévio para chamar atenção para o filme, as informações a respeito do desenvolvimento do projeto são escassas no último ano. Basta dar um pulo no site oficial da parada. O último post do blog (dizendo “desculpem pela falta de notícias, mas o projeto está 100% vivo”) é de fevereiro de 2014. No Facebook oficial, a última notícia é de janeiro de 2015. E em sua conta pessoal do Twitter, Seb Hunter tem postado essencialmente notícias dos Provincial, grupo inglês no qual toca guitarra. Ou seja... Será que os advogados de uma certa banda de rock americana foram bater na porta do cara?
Com ou sem filme, com ou sem gibi, Stanley defende, no entanto, que Music From the Elder teve a sua importância de alguma forma para a carreira do Kiss. “Sinto que nossa banda sempre funcionou com a regra de não ter que seguir regras. E embora eu leve os fãs na mais alta estima, também espero que eles entendam que nem tudo que fazemos vai ser apenas para que eles gostem – e eles podem mostrar que não gostaram simplesmente não comprando. E foi o que aconteceu quando este disco saiu. Só que seria loucura se não seguíssemos pelo caminho que achamos o mais certo. Não teríamos feito Creatures of the Night (o álbum seguinte, de 1982) sem fazer o Elder. Não me arrependo de nada que fizemos porque sei que tudo que fizemos ajudou a gente a chegar onde estamos”.