Mais amor por The Get Down, por favor | JUDAO.com.br

Sério, a gente devia falar mais sobre essa série do Netflix

“Será que conseguimos nos manter com um pé em cada mundo?”, pergunta Mylene Cruz ao namorado Ezekiel Figuero no alto de um prédio do sul do Bronx, subúrbio em chamas de Nova York. O ano é 1977. A aspirante a cantora fala sobre a possibilidade de ambos se separarem e ela ir parar no almejado paraíso de luzes e grana chamado Manhattan. Só que a jornada do casal de protagonistas de The Get Down, interpretados por Herizen F. Guardiola e Justice Smith, não os coloca apenas como dois jovens negros/latinos buscando seu próprio caminho em meio a uma vida de sofrimento na periferia, mas também como duas pessoas que, cada uma a seu modo, se sentem divididas ao meio, disputadas por dois mundos diferentes.

Criação e produção de Baz Luhrmann (o diretor de O Grande Gatsby e responsável pelo vídeo do FILTRO SOLAR), The Get Down também é, de certa forma, um musical. Não daquele tipo em que a galera faz todos os diálogos cantando e que tem um monte de gente que não se conhece começando a dançar junta repentinamente no meio da rua. Longe disso. Mas Luhrmann se baseia no nascimento do movimento hip hop, dos DJs, MCs, b-boys e grafiteiros, no final dos anos 70, para contar uma fábula sobre redenção, sobre ter a força para fazer a sua própria história em meio a todas as dificuldades.

Uma mistura de personagens reais com fictícios que acaba soando bastante verdadeira pra desfilar de maneira emocionante um conto de dois mundos através da música, que vira um instrumento de expressão e objetivo de vida dos personagens.

The Get Down

Mylene representa a menina que sonha em cantar profissionalmente, como as divas da disco music que estão bombando nas rádios e nas casas noturnas dos Estados Unidos naquele momento. Voz e presença de palco para atingir o seu sonho ela tem. O grande problema é que Mylene é a filha de uma família tradicionalista e religiosa, que não está nem um pouco satisfeita em perdê-la para uma vida de LUXÚRIA. Seu maior apoio vem de seu tio, o Papa Fuerte, o maior líder comunitário da parada, um homem que até tem boas intenções e ambiciona construir um conjunto de casas populares, mas para isso se vê obrigado a fechar negócios com os políticos e homens de negócios responsáveis por fazer o Bronx queimar em meio a uma grave crise social e econômica. Servir a Deus ou servir à indústria da música?

Já Ezekiel é um moleque que perdeu os pais para a violência de um bairro sem esperanças. Fanático por livros, ele é um mestre na arte da escrita, cujo potencial chama a atenção da professora de literatura a ponto de tê-la intermediando um estágio em uma grande empresa dos brancos de Manhattan, que pode ajudar a garantir uma vida melhor. Mas seu potencial também é o elo de ligação dos chamados Get Down Brothers, um grupo de hip hop (que existe na vida real e ainda nem tem este nome, aliás) que ele forma com três grandes amigos e com um cara que aparece do nada e muda a sua vida pra sempre, uma lenda urbana que batizou a si mesmo como Shaolin Fantastic (Shameik Moore). Se afundar nos livros de contabilidade ou se afundar nas rimas do rap?

Tem muito sangue e ódio, racismo, sexismo, personagens que estão longe de ser bonzinhos, puros e inocentes. São humanos, reais, fazendo um monte de escolhas difíceis e cagadas. Como eu e você faríamos

Num elenco escolhido a dedo, repleto de coadjuvantes dando show (como, por exemplo, Jaden Smith, naquela que talvez seja a atuação de sua carreira até agora como um grafiteiro que começa a descobrir e explorar a própria sexualidade), talvez Moore seja o cara que mais brilha desde a primeira vez que pinta na tela. Cheio de referências aos filmes de artes marciais de caras como Bruce Lee e que se tornaram hits no gueto entre o final dos anos 70 e começo dos anos 80, a sua interpretação potente como Shaolin traz para a trama as guerras de gangues e o poder da pólvora e da cocaína.

É bom que se diga que essa história tá longe de ser povoada por príncipes e princesas da Disney. Não é uma história inocente. “This ain’t no fairy tale“, diz Ezekiel em determinado momento. Tem muito sangue e ódio rolando, tem sexismo que as minas são obrigadas a enfrentar, tem racismo, tudo em meio a personagens que estão longe de ser bonzinhos, puros e inocentes. Eles são humanos. Reais. Se vêem obrigados a fazer um monte de escolhas difíceis e fazem um monte de cagadas. Do tipo que eu e você também faríamos.

A trilha sonora de The Get Down, como era de se esperar, é brilhante. Uma joia rara conduzida por caras como Grandmaster Flash e Kool Herc, pais da cultura hip hop, músicos que existem de verdade e que, nesta história, assumem o papel de sagrados mestres da música, quase como se fossem senseis das picapes. É muito divertido ver a postura de Flash, falando quase como um velho senhorzinho japonês, dando dicas por meio de metáforas por vezes pouco compreensíveis (fica ligado no giz de cera) e se referindo ao aprendiz Shaolin como “gafanhoto” (aliás, Netflix, cêis bem que podiam ter traduzido isso nas legendas, né? Um chamando ao outro de “grasshopper” não faz qualquer sentido e a referência vai pro espaço).

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E sim, tem cultura pop pra caralho em The Get Down também, referências por todos os cantos e que estão tão bem amarradas à trama que acabam saindo bastante naturais, sem forçada de barra. Estamos em 1977, é o ano da estreia do primeiro Star Wars nos cinemas. E adivinha quem estava bombando com seus personagens nos gibis? A Marvel Comics. Então, toma aí metáforas mil envolvendo o Quarteto Fantástico e principalmente os X-Men, cujo tema do preconceito se torna a solução para o momento em que os Get Down Brothers estão se preparando para a sua primeira batalha de DJs com um outro grupo local e precisam encontrar a arma secreta que vá além da batida perfeita. “Superpoderes”, diz Ra-Ra (Skylan Brooks), o nerdzinho de estimação da turma.

Mas o principal segredo do sucesso aqui foi a habilidade em construir personagens profundos, interessantes, envolventes, sem cair no pedantismo. Foi conseguir fazer a gente se identificar com cada um deles, com ou sem música. Quando Ezekiel recita, envergonhado a princípio e depois com um olhar puto da vida e os dentes trincando, o poema em forma de rap que fez sobre a morte dos pais, meu coração se estraçalhou. Mas quando ele compõe a rima que cada um dos amigos vai falar durante uma apresentação crucial, boom, eu sorri e satisfação, aliviado e feliz por vê-lo se encontrando enfim. Quando ele faz um discurso brilhante, em código, em pleno palanque eleitoral, ao lado do cara que promete colocar os grafiteiros na cadeia, eu chorei. E quando os Get Down Brothers colocam seus casacos customizados e botam pra foder no palco improvisado entre os escombros de um dos muitos prédios em ruínas do Bronx pela primeira vez, eu delirei com eles.

Desde a segunda metade de Julho, quando estreou no Netflix, a série Stranger Things é assunto recorrente nas redes sociais, os memes estão espalhados por aí alucinadamente, a galera não para de falar na Eleven e na porra do mundo invertido. E fico aqui pensando que The Get Down é um troço mas tão, mas tão foda, que merecia pelo menos um pouco deste espaço no coração das pessoas.

Tá bom, eu adorei Stranger Things, entendo o poder que tem toda a questão da nostalgia, perfeito. Mas o que The Get Down causou em mim, cara, foi muito diferente. Eu mesmo, um fanático pelo mundo da música, demorei mais do que deveria para assistir, fui adiando, adiando... No primeiro episódio, pedi mais. No terceiro, estava em êxtase. E conforme o final se aproximava, eu já estava completamente apaixonado e tinha encontrado a minha série favorita de 2016.

Estes seis primeiros episódios são apenas a parte 1 da série, que retorna para fechar a história só em algum momento de 2017. Que agonia ter que esperar até lá.