Tem rap, tem pop, tem soul, tem R&B, tem uma porrada de coisas que ainda dá tempo de você curtir antes do ano acabar
Aproveitando essa época do ano, cheia das listinhas que só aumentam suas anotações do quê assistir, ler e ouvir, compilamos alguns álbuns de 2016 que talvez não tenham chegado ao seu radar durante o ano e que foram produzidos por pessoas negras.
Tentamos deixar de fora os grandes nomes da música atual (as irmãs Knowles, Kanye West, Frank Ocean, Kendrick Lamar...) e dar mais espaço a sons que talvez não tenham aparecido na sua timeline durante o ano.
O primeiro passo é notar a diversidade. Vem.
A série Community não abriu caminho apenas para John Oliver e seu ótimo Last Week Tonight, mas ainda para as incursões no estranho (e cada vez mais vasto) mundo do músico/ator Donald Glover. Das faixas que misturavam um fascínio específico por fumar maconha e passar muitas horas na internet à evolução de temas sérios como o isolamento, problemas psicológicos e negritude na série Atlanta – na qual é produtor e roteirista – Glover conseguiu arrumar tempo, ainda, para lançar um novo álbum. Feito sob medida para bagunçar todas as listas de melhores discos do ano ao ser lançado aos 45 do segundo tempo de 2016, Childish Gambino traz Awaken, My Love! diretamente de alguma experiência de comunicação extraterrena com Prince. Organizado em onze faixas, nele brilham guitarras, grooves e falsetes, elementos que habitavam as encarnações mais recentes de um Prince a caminho da criação de um funk psicodélico nos moldes de Sly & The Family Stone, mas com as experimentações estéticas de um Flying Lotus. Bom saber que seu legado segue de alguma forma protegido do lado de cá.
Chance The Rapper se considera um artista de palco. Em tempos de guerra entre músicos e serviços de streaming por centavos a mais em exibições por faixa, Chancelor Benett distribui produções gratuitamente em seu site oficial. Fruto da mudança dos tempos, o norte-americano foi o primeiro a conseguir indicações ao Grammy por uma mixtape, já que um dos pré-requisitos de inscrição na premiação exigia que o álbum/faixa fosse vendida comercialmente em algum ponto de seu lançamento. Sim, Coloring Book é bom a ponto de mudar as regras do jogo. Diverso ao conseguir abraçar experiências tão opostas quanto atualizar o hip hop em moldes clássicos de verborragia (Mixtape), letras sobre se manter positivo (Same Drugs) e até música gospel (Blessings), Chance reúne amigos como Kanye West, Young Thug, Francis and the Lights, Justin Bieber e Ty Dolla Sign nas participações do álbum e encontra como resultado faixas para fazer sorrir.
Jamila Woods não tinha exatamente entre seus planos a gravação de um disco. Professora e poetisa em Chicago, o envolvimento com a música surge a partir de sua ativa participação com a comunidade local. A amizade com os músicos Chance the Rapper e Donnie Trumpet trouxe a bela voz de Jamila a público no refrão de uma das canções mais delicadas de 2014: Sunday Candy. HEAVN é a estreia de Woods em um álbum e carrega, além do timbre imerso em calma, as histórias de uma mulher negra com raízes profundas em sua ancestralidade e orgulho de raça. Retirando tanto da poesia quanto da experiência o estofo para escrever suas letras, Jamila fala de repressão policial, da importância de transmitir às crianças os heróis negros de que não ouviram falar na escola e do fortalecimento da esperança diante das adversidades – vindos de sua cidade e da rede de pessoas que a cerca.
É pouco provável que você se lembre de Maxwell. O último disco do norte-americano data de sete anos atrás (!) e representava a abertura de uma trilogia que obedece às palavras do título BLACKsummers’night, e portanto, se relaciona a uma temática específica a cada lançamento. No segundo álbum do projeto (SUMMER), o músico remonta a uma atmosfera altamente sensual e de R&B mais clássico: sonoridades sugestivas, apreço por vocais melosos e uma produção competente arrebatando tudo. Maxwell bebe em fontes como Sade, Marvin Gaye e Barry White sem necessariamente se isolar em uma década específica ou fechar seu escopo a atualizações e experimentações discretas.
Levantando o dedo do meio à cena tradicional e costumeiramente preconceituosa do rap nova iorquino, emergiu há mais de uma década Michael David Quattlebaum Jr e seu alter ego Mykki Blanco, uma mulher negra transgênero – segundo sua própria definição, representando a linha de frente do “queer rap”, vertente do hip hop que não abre concessões polidas ao falar de sexo, drogas e festas. Apesar de uma das precursoras do movimento e de ter lançado inúmeros singles/mixtapes, data de 2016 a estreia de Blanco em álbum de inéditas. Das sonoridades, grande parte das faixas é acompanhada pelo mínimo de base: elementos eletrônicos discretos e bases cruas tiradas do punk contrapostas pela velocidade das rimas caóticas de Mykki.
Foram anos tentando se firmar no meio do rap até Anderson .Paak perceber a potência da própria voz e flexibilizar as rimas em nome de trechos cantados em suas faixas. Quão distintas foram se tornando suas influências até finalmente incorporar o sobrenome à alcunha de palco no lançamento do ótimo Venice (2014). Sua segunda incursão numa soul music que encontra espaço para experimentações com hip hop e reverências a gigantes como Marvin Gaye e James Brown chega em Malibu. Próxima o suficiente do caminho aberto no álbum anterior, mas ainda mais embebida em vertentes da música negra, .Paak comemora a chegada à linha de frente da sonoridade concorrendo em premiações com Beyoncé e cavando participações em faixas de Dr Dre.
Não sabemos o que você fez das suas festas em 2016 se não tocou nenhuma faixa do projeto Kaytranada. Capitaneada pelo produtor haitiano-canadense Louis Celestin, a estreia oficial vem em 99.9% e ignora as milhares de regras que restringem a house music para misturá-la a hip hop, R&B, funk e mais qualquer outro gênero que cause efeito dançante. Nos vocais, um time de colaboradores com a difícil missão de carregar as faixas às mais diferentes direções, sem deixar a impressão de um álbum feito de recortes. AlunaGeorge, Syd The Kid e até um sampler de Gal Costa entregam um registro de ambientações, feito pra tocar de cabo a rabo.
Rio de Janeiro, uma brisa leve, sol em fim de tarde e teclados oitentistas. O disco de estreia da carioca Mahmundi traz junto às suas sonoridades dançantes e de voz leve um acompanhante visual que dificilmente não se forma na cabeça de quem o ouve: as praias do Rio em versão VHS, tomadas por cores saturadas da TV dos anos 80. Álbum que parece acompanhar o avanço das horas, sua primeira parte sai de momentos solares (Hit e Eterno Verão) para adentrar na melancolia do início de noite num verão de dias longos (Leve, Sentimento). Mahmundi se relaciona com qualquer parte de uma memória que você pode ter vivido ou não, regada por dias preguiçosos ao som de Guilherme Arantes e tardes de sábado.
As obscuras rimas de Quincy Haley vêm de histórias igualmente tortuosas. Alemão criado por um tio viciado em crack na América, viu a oportunidade de se tornar um atleta profissional durante a faculdade virar pó sob uma prisão por tráfico de drogas e uma lesão que o afastou do esporte. Encontrou lugar no mesmo coletivo de rap que lançou Kendrick Lamar e, desde então, segue escrevendo sobre o que viu das ruas em tempos menos nobres. Investiga seus demônios interiores, dá novos tons ao vício em drogas prescritas e agora aprende a anuviar suas letras não só com as bases lisérgicas de costume, mas com o uso de personagens que confundem suas narrativas. No quarto e mais diverso álbum de sua carreira, Schoolboy Q encontra uma forma de se ausentar de seus caóticos contos urbanos, transformando-se em espectador e narrador ao mesmo tempo.
Talvez você se lembre de Corinne Bailey Rae como uma daquelas one hit wonders, compositora da MUITO executada Put Your Records On no longínquo ano de 2006. Corinne é muito mais que uma faixa, entretanto, raro caso de voz tão sutil quanto suas composições e, talvez por isso, um tanto quanto invisível depois de baixada a poeira de seu gigantesco sucesso. Fugindo de interpretações grandiloquentes e extensões de voz que servem apenas para mostrar que tem capacidade de segurar notas no gogó por longos minutos (vício comum da soul music), Bailey Rae curva sua delicada voz às necessidades de suas canções. The Heart Speaks in Whispers é exemplo de um disco onde todos os arranjos e vocais parecem calculados de modo a demonstrarem simplicidade e beleza em qualquer direção que se olhe (ou ouça).