O som que ajuda você a aguentar as surras da dita cuja
Sabe uma época da sua vida que você não curte muito comentar? Pois é, vou começar o texto com a minha. Sem maiores detalhes, mas, por causa dela, quase uma década atrás, após alguns sustos, acabei encarando a terapia. Entre outros grilos que eu comentava nas sessões, e que nunca tinha aberto para ninguém, a não ser parcialmente em meio a um ou outro porre, falei finalmente de minha obsessão por escolher a música que ia tocar no meu funeral.
Eu tinha essa ideia fixa de escolher a música da minha despedida e ela estranhamente me confortava, não sei se porque simbolizava que toda agonia um dia tem fim ou mesmo, no final das contas, lembrava que quando alguém morre rola uma grande celebração da pessoa e eu achava digno parar por ali, com os conhecidos comentando meus parcos feitos enquanto rolava um som que eu tinha selecionado cuidadosamente.
Não era eu inteiro que pensava assim, que fique claro, mas hoje em dia não vejo problema em assumir que uma parte de mim, maior do que gosto de admitir, realmente acreditava nisso. Algumas horas atrás, vi Capitão Fantástico e, curiosamente, tinha uma cena de cremação com uma trilha maneira que provavelmente é o que trouxe meu inconsciente a ditar esse começo de texto aqui.
Aprendemos com o cinema que fatos variados da nossa vida podem ser mais legais e marcantes com uma boa trilha sonora como companhia. Algumas vezes, escolhemos a música que queremos que simbolize aquele momento específico. Em outros, parece mesmo que elas nos escolhem.
Você lembra da faixa que serviu de pano de fundo para sua grande paixão da adolescência? Às vezes, a canção nem é romântica, mas simplesmente icônica dentro daquele momento que você vive. Acredite em mim, seja qual for, ela vai ser sua perseguidora por toda a vida. E isso é bom pra caralho!
Imagina seus quase 40 de idade, como eu tenho hoje, uma pilha de louças para lavar, você resolve se debruçar sobre a pia, daí coloca uma playlist aleatória. Ou, sei lá, LIGA O RÁDIO. Eis que toca a música que lembra aquela pessoa lá dos idos de 20 anos antes. Tudo distante, mas, naquele instante, é presente. Já diziam Sandy & Júnior, rola aquele turuturuturu no meu, no seu, no nosso peito.
Não tenho imagens das suas lembranças, tampouco vou revelar as minhas, mas coloco aqui um exemplo de trilha casual adolescente acompanhada de uma figura apaixonável, como mera ilustração, claro, mas que serve de exemplo para todos nós: Adéle Exarchopoulos em Azul é A Cor Mais Quente. A grande musa dos nossos tempos, bolada como todos nós, apaixonada como todos nós, livre como todos nós gostaríamos de ser, bonita que só ela.
Nessas horas eu tenho saudades do shuffle do meu falecido iPod Nano, ele era o rei dos acasos musicais, éramos unha e carne. Com ele, lembrava de outros tempos, outros trampos, outras xaropagens, outras vidas, outras cidades, outras viagens e até mesmo de outros iPods.
Ele me trazia, de lambuja, trilhas fodidas para momentos fodidos e outras, gloriosas para momentos gloriosos. No entanto, a grande jogada era estar andando na calçada, pensando em contas atrasadas, na goteira do banheiro, nas tretas de família, no chefe que andava estranho com o andar da minha carruagem e, de repente, surgia aquele som que transformava tudo em volta.
Não tinha cenário sem graça que derrubasse, mala onda que afundasse ou boleto que botasse pra baixo. Vinha aquele clipe protagonizado por mim, de preferência uma cena bem acabada, que ia deixar clara minha cancha de anti-herói. Tudo isso borbulhando nas ideias. Viagem fodida. Se fosse uma trilha de filme bombando na moleira, então, daí não tinha pra ninguém. Ou você nunca ouviu algo como Girl You’ll Be a Woman Soon e se colocou mentalmente ali, no meio da ação, montando cada peça do elenco segundo seu próprio critério pessoal e intransferível?
Meus anos de pensar na trilha da minha despedida desta Terra muito doida já passaram. Psicanálise, I love you pra chuchu. A gente acha que está sendo profundo quando pensa no próprio adiós desse mundão, mas há a possibilidade de ser apenas uma voadora no peito passageira que a vida deu. Vai ver a gente pegou ela num dia ruim ou mesmo está pensando demais naquele telefonema que recebemos dela e que acabou ficando mudo.
É necessário ter humildade para procurar a reconciliação com a dita cuja. Dar um chega pra cá, minha vida, que a partir de hoje eu vou lhe usar.
No final das contas, independente da quantidade de voadoras e demais golpes que possam acometer a gente, justa ou injustamente, é nos segundinhos absolutos de felicidade absoluta, geral e irrestrita que a gente vive. E por eles, principalmente com a trilha apropriada para cada vez que a gente se levanta, vale aguentar quantas surras surgirem.
Taí a Frances Ha que não me deixa mentir. ;)
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