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A Agência Nacional do Cinema arrumou uma sarna pra se coçar com o edital que vai distribuir R$ 150 milhões para projetos de longas-metragens usando como forma de cálculo um ranking público que lista diretores por sua performance comercial

Leis de incentivo, nos últimos anos, tornaram-se automaticamente sinônimo de treta. Basta falar no diacho da Lei Roaunet numa mesa de bar cheia de gente minimamente envolvida de alguma forma com o mundinho do entretenimento, por exemplo, pra ver o pau comendo solto — e não deve demorar 30 segundos pra surgir de algum lugar a expressão “mamando nas tetas do Governo”.

Esta semana, a ANCINE (Agência Nacional do Cinema), órgão oficial do governo Brasileiro, resolveu comprar uma treta pra chamar de sua ao divulgar oficialmente a primeira retificação do Edital da Chamada Pública BRDE/FSA Fluxo Contínuo Produção para Cinema 2018 (o nome é esse mesmo). Teve gente contra, teve gente a favor, cineastas se manifestaram, produtoras também, distribuidoras idem. E a história rendeu uma importante reflexão sobre esta coisa que a gente ainda tá bem longe de poder chamar de “indústria cinematográfica”.

Este é um programa de fomento do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) cujo início das inscrições acontece a partir de 3 de Setembro e que pretende “distribuir” polpudos R$ 150 milhões a projetos de longa-metragem, com foco em exibição nos cinemas (um novo edital com foco em TV será anunciado em setembro).

Muito legal, te parece? Isso se ele não usasse como critério automático um sistema de pontuação de diretores, produtoras e distribuidoras com base tanto na quantidade de filmes lançados quanto no tal do êxito comercial. Com base na pontuação final obtida, cada projeto será enquadrado em uma faixa de pontuação que dará direito a acessar diferentes tetos de valores, conforme a tabela que pode ser vista aqui. Quem lançou menos filmes (como, talvez, um diretor iniciante?) ou quem não foi um verdadeiro sucesso de bilheteria, tem nota baixa e, portanto, tem direito a pouca grana.

Importante destacar aqui que a palavra “independente”, dentro deste contexto, está longe de significar apenas e tão somente alguém que vai lá e FAZ, coloca a mão na massa com a própria grana mirrada e realiza o seu sonho. Nops. Neste caso, produtoras e distribuidoras independentes são aquelas que não estão ligadas a grandes grupos internacionais. Mesmo tendo registrado, em 2017, uma renda superior a R$ 400 milhões na distribuição de títulos brasileiros junto com a Downtown Filmes (isso sem falar na grana que eles ganharam nos últimos anos com os filmes da saga Crepúsculo, por exemplo), a Paris Filmes ainda é considerada uma distribuidora independente por não fazer parte de um conglomerado como Disney ou Warner. Portanto, não se deixe enganar por esta expressão. ;)

Dito isso, o problema começa, segundo o cineasta Vicente Amorim, do recente Motorrad, no fato da lista ser pública (você consegue acessar aqui). “Nos editais do FSA, sempre houve nota para o diretor, mas ela ficava restrita a quem tinha acesso ao processo e não era divulgada previamente”, explica ele ao JUDAO.com.br. Além disso, ele afirma que há erros na contagem de filmes. “E não parece justo excluírem [da contagem] curtas, séries e filmes estrangeiros”, diz, lembrando que ele mesmo dirigiu Um Homem Bom , de 2008, com o Viggo Mortensen e que, portanto, não vale como “filme nacional”.

Isso se a gente não levar em conta ainda que estão lá nomes de cineastas que já morreram, como Rogério Sganzerla (do clássico O Bandido da Luz Vermelha), que faleceu em 2004; e Nelson Pereira dos Santos (Vidas Secas), morto em abril deste ano.

Vicente Amorim durante as filmagens de Motorrad

Uma das principais reclamações diz respeito à regra do edital que crava que uma mesma distribuidora (ou grupo econômico) poderá receber investimentos de até 25% dos recursos disponíveis em cada modalidade. Vamos pegar o exemplo, portanto, de uma Paris Filmes, que lançou nos últimos anos uma batelada de produções nacionais, indo de Até Que a Sorte Nos Separe a De Pernas Pro Ar, por exemplo. Em tese, ela se encaixaria na modalidade A, que tem R$ 55 milhões pra serem destinados a projetos que tenham como PROPONENTE uma distribuidora brasileira independente. Pela quantidade de filmes distribuídos + bilheteria, a nota deles tá no alto. Parece justo pra vocês que, depois de faturar os 400 milhões sobre os quais falamos lá em cima, a Paris ainda tenha a chance de abocanhar aqui mais pelo menos 13 milhões e uns quebrados?

“As novas regras de pontuação do edital que foi lançado pelo FSA são extremamente concentradoras”, afirmou, em seu site, a ex-diretora da ANCINE, Vera Zaverucha, ainda em julho, quando a primeira versão das regras do edital foram anunciadas e se falava em 30%. “Concentradora nas grandes distribuidoras brasileiras que na verdade são apenas duas. Mesmo as produtoras grandes ficarão reféns destas duas distribuidoras”. E ela ainda pergunta: “Não tenho problemas com os filmes que este edital promoverá, mas será que são apenas estes que queremos?”. Então...

Rola ainda uma reclamação, que faz todo o sentido, de quem está fora deste sempre privilegiadíssimo circuito Rio-São Paulo. A própria ANCINE e os respectivos defensores do edital cravam que a modalidade C tem R$ 25 milhões destinados a projetos que tenham como proponente produtoras independente sediadas nas regiões Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste, além dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Isso é apenas 16% do total de 150 milhões, notou? Ah, bom, as modalidades A e B, em tese, são abertas a qualquer um que queira inscrever projetos, né? Claro que sim: uma produtora de fora da panela SP-RJ já tem acesso mais complicado aos principais distribuidores de cinema, que são praticamente todos aqui do Sudeste. E se a gente for considerar que os critérios de escolha são a tal pontuação do ranking...

Em uma carta-aberta ao mercado audiovisual, o diretor-presidente da ANCINE, Christian de Castro, tenta defender a iniciativa, que ele afirma ter surgido “após mais de um ano de debate, reflexão e pesquisa, com embasamento técnico e a valiosa contribuição dos agentes do mercado”. Querendo reforçar que todo o processo é “público e transparente”, ele diz que, além de valorizar a consistência das empresas proponentes, o novo edital estabelece, pela primeira vez, faixas de investimento diferenciadas, de acordo com o porte, o histórico, o desempenho comercial e artístico e a estruturação financeira das empresas. “Isso garante que projetos de diferentes ambições, tamanhos e orçamentos sejam contemplados de forma equilibrada, em conformidade com parâmetros públicos e objetivos de investimento, mitigando riscos e otimizando a utilização dos recursos”.

“Esta é uma grita inexplicável”, afirmou, em entrevista para a Folha de S.Paulo, Bruno Wainer, diretor da Downtown, a parceira da Paris. Ele tenta explicar que estamos falando de um edital dedicado à ocupação de mercado, calculado com base no resultado comercial. Filmes com outras vocações, autorais, têm outros concursos”, diz ele. E com outros valores, É BOM QUE SE DIGA. Mas, enfim, ele completa que isso é um jeito de fazê-los ter força diante das multinacionais e da máquina dos importados de Hollywood. “Só neste país maluco que a experiência é combatida, em vez de estimulada”.

Dois integrantes de grandes produtoras deste mercado, que foram ouvidos pelo JUDAO.com.br nesta reportagem mas pediram pra não serem identificados, comemoram a existência do edital justamente por ele ser focado no incentivo aos blockbusters brasileiros. “Só deste jeito é que vamos conseguir combater os Vingadores da vida, sabe?”.

Calma aí galera, veja só. Não vamos exagerar. Tá, tudo bem, tá liberado que este edital seja focado em filmes mais “comerciais”, que seja. Mas a nossa dúvida é muito maior do que esta, é primordialmente conceitual: filmes “comerciais”, ainda mais aqueles cujos diretores/produtoras já provaram em outras ocasiões a sua capacidade cavalar de dar dinheiro, são de verdade aqueles que REALMENTE precisam de dinheiro? Ou, pelo menos, de TANTO dinheiro assim? Fazendo as contas, tamos falando de um valor que representa praticamente um quinto de todo o orçamento anual para a atividade audiovisual no Brasil. Em resumo? É COISA PRA CARALHO. E tá errado.

De um jeito bem pouco surpreendente, esta questão nos faz lembrar, vejam vocês, da própria Lei Rouanet, AQUELA. Porque, ao contrário do argumento que C E R T O S setores da sociedade defendem, existe de fato uma crítica bastante pertinente a esta lei de incentivo em particular: no fim das contas, não é o governo que dá dinheiro pra ninguém, mas são as próprias empresas, isso sim, que decidem que projeto vale a pena ou não, seguindo critérios de viabilidade comercial. Isso aí é a tal da captação de recursos. E é aí é que entra justamente a grande contradição.

“A lei é perversa. Só se aplica a quem tem condições de dar retorno de imagem para as empresas que se associam”, afirmou, em entrevista à Carta Capital, o ex-Ministro da Cultura Juca Ferreira. “Não tenho nenhum problema com as empresas, tenho problema com a lei. Ela é injusta, provoca concentração, discrimina, não é capaz de se realizar em todo território brasileiro”.

Aí um projeto GIGANTESCO como o Rock in Rio vai lá, é aprovado pela Lei Rouanet e sai pro famigerado MERCADO pra captar recursos. Mas é ÓBVIO que as empresas vão adorar investir nisso. O grande ponto é: um evento deste porte já mostrou há muito tempo a sua viabilidade comercial e poderia tranquilamente caminhar com as próprias pernas. Não são blockbusters como este que precisam de INCENTIVO. Quem precisa da ajuda da lei não é quem já é enorme, quem já tá garantido, alguém em quem um banco colocaria um caminhão de dinheiro com ou sem a lei de incentivo. Mas é sim o pequeno, que tá começando, que é independente DE FATO, cujo apoio é fundamental pra mostrar a cara. Isso vale igualmente pra este Fluxo Contínuo Produção para Cinema.

Em seu site oficial, o Fundo Setorial do Audiovisual descreve desta forma os seus objetivos: “o incremento da cooperação entre os diversos agentes econômicos, a ampliação e diversificação da infraestrutura de serviços e de salas de exibição, o fortalecimento da pesquisa e da inovação, o crescimento sustentado da participação de mercado do conteúdo nacional, e o desenvolvimento de novos meios de difusão da produção audiovisual brasileira”. Desta forma que se apresenta, o Fluxo parece bem pouco interessado nas palavras-chave “cooperação”, “ampliação” e principalmente “diversificação”.

E ainda tem outro porém aqui: tornar pública uma lista como esta, do jeito que está, cria um precedente agora OFICIAL para muito além deste edital. Toda vez que uma produtora quiser fazer um filme, vai lá olhar a lista e, ao invés de selecionar o diretor mais talentoso ou adequado ao projeto, vai apontar o dedinho direto naquele que “dá mais dinheiro”. Foi isso, inclusive, que os dois profissionais de grandes produtoras ouvidos pelo JUDAO.com.br admitiram abertamente que passarão a fazer a partir de agora.

Cinema, assim como tudo na cultura pop, é uma indústria — seja ela mais ou menos organizada, vá lá, mas ainda assim uma indústria. Um filme é, na maior parte das vezes, um produto artístico, mas que tem que dar dinheiro pra quem fez. Justíssimo que isso aconteça. Mas quando este critério, o do lucro pura e simplesmente, passa a ser o único critério que norteia uma produção, tiramos o “artístico” da jogada e o filme vira apenas e tão somente um PRODUTO. E aí a tal da indústria passa a ser somente uma fábrica de fazer moldes, um filme da Globo Filmes com o Leandro Hassum atrás do outro.

Definitivamente, não é DESTE jeito que se constrói uma indústria sustentável DE FATO.