Saga de fantasia misturada com elementos da nossa cultura em pleno Brasil Colônia, cortesia do americano radicado em Porto Alegre Christopher Kastensmidt, vai ganhar nova chance no mercado internacional ao ser publicada pela editora escocesa Guardbridge Books
Quando a gente fala em cenários de fantasia na cultura pop, claro, imediatamente vem na sua cabeça aquele combo meio Tolkien / Dungeons & Dragons, com elfos, anões, orcs e afins, né? O pacote completo da ambientação clássica dos RPGs. Mas isso tudo soa bastante europeu, vamos combinar: um bando de cavaleiros da Idade Média com uma considerável dose de magia, orelhas pontudas, cabelos longos e loiros ao vento, raças de monstros grotescos de dentes afiados que raptam a princesa igualmente loira e alva e levam pra torre mais alta do castelo...
Grande da mitologia tolkieniana e de seu bestiário padrão acaba vindo dos mitos nórdicos e, portanto, têm muito desta cara aí. Mas e se o tempero fosse outro? E se o cenário de fantasia fosse inspirado nos mitos BRASILEIROS? Esta é a ideia por trás das histórias de A Bandeira do Elefante e da Arara, uma saga protagonizada por um aventureiro holandês chamado Gerard van Oost, que atravessa o Oceano Atlântico em busca de aventuras na nascente colônia brasileira do século XVI. Ele encontra um grande parceiro no ASTUTO iorubano Oludara, e os dois enfrentam os perigos da selva, num mundo onde as criaturas do folclore nacional são reais. Ao mesmo tempo, eles visitam os principais povoamentos da época (Salvador, Olinda, Rio de Janeiro, São Paulo e outros) e interagem com as diferentes culturas que formaram o núcleo do país que temos hoje.
Segundo o autor, Christopher Kastensmidt, as histórias que depois viraram um livro único foram inspiradas em obras dos gêneros “espada e feitiçaria” e “baixa fantasia”, além de ficções históricas como Os Três Mosqueteiros. “Diferente das fantasias ‘épicas’, como O Senhor dos Anéis, os personagens são mais preocupados com consequências pessoais do que as globais”, explica o escritor, em entrevista ao JUDAO.com.br. “Muitos leitores comparam com a franquia The Witcher, onde Geralt de Rivia enfrenta criaturas do folclore polonês da mesma forma que os meus personagens enfrentam os monstros do imaginário brasileiro”.
Estão lá boitatá, curupira, mapinguari, mula sem cabeça e toda aquela galera que por vezes a gente infelizmente esquece e só lembra quando vem alguém brigar que celebrar o Halloween no dia 31 de outubro é colonialismo e afins... “Saci-pererê é um tipo de Mestre dos Magos de Caverna do Dragão: aparece para encher o saco, oferece muito pouco de útil e some antes de explicar qualquer coisa”, brinca ele.
Bom, você pode estar achando estranho o NOME do escritor da obra, mas a gente te garante: não, não é um pseudônimo. O Christopher é realmente americano, nascido em Houston, no Texas. Depois de estudar por lá e trabalhar alguns anos como engenheiro de computação, o cara acabou vindo parar no Brasil em 1999, onde se tornou sócio de um estúdio de games chamado Southlogic Studios, se mudando pra cá de forma definitiva em 2001. OITO anos depois, quando vendeu o Southlogic pra Ubisoft, chegou a ocupar o cargo de diretor criativo das operações nacionais da empresa, mas do outro lado, já tinha sido picado pelo bichinho da escrita. E resolveu se dedicar a isso de corpo e alma.
“A primeira semente foi plantada durante as minhas primeiras visitas ao Brasil, ainda nos anos 90. Na época, eu prestava consultoria técnica para empresas de software (principalmente games), e o Brasil virou meu foco principal”, conta ele. “Comecei a estudar português e algumas das primeiras obras que adquiri eram livros de história. Depois, mais ou menos em 2001, a minha antiga empresa tinha um projeto de shooter na Floresta Amazônica, e procurei referências de mitos nacionais para usar como elementos fantásticos. O game nunca foi lançado, mas o conhecimento ficou”.
As tais sementes brotaram em 2006, quando ele teve a ideia de criar uma fantasia histórica ambientada no Brasil. “Achei que podia ser algo interessante para uma audiência internacional, já que o folclore Brasileiro é completamente desconhecido fora do país. Terminei a primeira história em 2007, que levou 3 longos anos para ser publicada”. Para escrever aquela primeira história, Chris leu cerca de 20 livros para acertar a ambientação. “Até hoje, já consultei mais de 300 livros sobre culturas indígenas, exploradores, a fundação das cidades, a escravidão, a atuação dos jesuítas, armas, comida, folclore e tudo a mais relacionado às histórias de A Bandeira do Elefante e da Arara“.
Ele revela que uma de suas principais influências foram As Crônicas de Lankhmar, as aventuras da dupla Fafhrd & Gatuno escritas por Fritz Leiber, um dos mais icônicos nomes da literatura fantástica. “O que eu mais peguei destes livros era a essência: aventura, humor e uma dupla de aventureiros carismáticos que podiam oferecer perspectivas contrastantes sobre o mundo ao redor deles”. Chris diz que preferiu deixar a roupagem medieval para trás – e sacou que a época colonial, lá no século XVI, já pede outro tipo de ação e pensamento. Por exemplo, o fato de ter armas de fogo muda o gênero de “espada e feitiçaria” para o que ele gosta de chamar de “mosquetes e magia”.
O autor escreveu as histórias pensando em um público estrangeiro, introduzindo estes elementos culturais dentro de boas histórias de aventura pra ganhar os leitores procurando algo de diferente. E deu certo: a primeira história foi publicada na revista norte-americana Realms of Fantasy — na época, uma revista com dezenas de milhares de assinantes. “A história ganhou o prêmio, votado pelos leitores, de melhor história do ano. Também foi finalista do Prêmio Nebula, um dos prêmios mais importantes do mundo na área de literatura fantástica. Aquela primeira história foi logo traduzida para tcheco, holandês e romeno”.
Aqui no Brasil, as histórias tiveram uma boa aceitação também, apesar do preconceito contra o folclore nacional que ele sentia na época, mas percebe que mudou muito ao longo desta década. “Douglas Quinta Reis (Devir) publicou as primeiras três histórias da série nos livros Dupla Fantasia Heroica, mas estes nunca receberam uma distribuição muito grande. Foi quando a Devir lançou o livro em quadrinhos, em 2014, a primeira obra a utilizar o nome A Bandeira do Elefante e da Arara na capa, que este universo começou a ter um alcance maior no mercado nacional”.
O gibi, no caso, foi uma parceria com a artista Carolina Mylius, com quem ele desenvolveu uma adaptação da primeira história, um tipo de origem da dupla, lá em 2010. Logo, porém, ficou claro que a dupla ia precisar de algum apoio financeiro para terminar a produção da obra. “Em 2014, consegui financiamento pelo Grupo DLL através da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério de Cultura do Governo Federal. SulaMoon entrou no projeto como colorista e o livro foi publicado pela Devir no final daquele ano. Dentro do projeto, conseguimos distribuir exemplares para cerca de 300 escolas”.
Já a ideia de lançar um RPG clássico, de mesa, com dados e planilhas, surgiu em 2008, antes da publicação da primeira história. “Na época, eu já organizava as minhas anotações em um formato que lembrava de um livro de regras de RPG, para poder publicá-las em algum momento. Levou quase uma década, mas em 2017 consegui financiamento outra vez pela LIC para produzir o livro de regras”, revela.
A primeira edição do livro de RPG esgotou em torno de quatro meses e, durante aquele período, o romance e o livro em quadrinhos voltaram a vender mais exemplares do que na época dos seus lançamentos. “A comunidade ao redor do RPG é muito grande e ativa — e são criadores de conteúdo. Há um grupo de mediadores no Facebook com mais de 500 pessoas”, afirma. Aliás, Chris conta ainda que o RPG é o foco de desenvolvimento no momento. Além do livro básico, eles já publicaram uma aventura digital online (escrita pelo autor de fantasia J. M. Beraldo) e a ideia é ter mais quatro lançamentos do RPG este ano: uma edição expandida, um escudo do mestre, um suplemento e outra aventura online. “A demanda é alta e eu espero continuar neste ritmo, o de lançar 3 ou 4 produtos por ano”.
Ele se empolga ao falar principalmente da aceitação nas escolas, que tem sido incrível. “Vejo professores usando o livro como ferramenta paradidática para ensinar história, geografia, mitologia e até economia. Ao mesmo tempo, o RPG de mesa é um incentivo à criatividade e um estudo de empatia para os alunos. É o que mais dá orgulho de todo o trabalho desenvolvido ao longo destes anos”. Ele ainda diz, em tom misterioso, que em breve vai poder compartilhar novidades “internacionais” sobre o RPG.
Mas se estamos falando sobre internacionalização, o livro original é aquele que tem as maiores novidades, já que os direitos acabam se ser comprados pela Guardbridge Books, editora escocesa cujo catálogo inclui justamente autores cujas obras ultrapassam os ambientes e clichês típicos do gênero, como o escritor argentino Gustavo Bondoni e o norte-americano Daniel Ausema.
A ideia dos escoceses é publicarl, em formato romance, uma compilação de onze histórias deste universo, em formatos digital e impresso, para distribuição mundial. “Já fizemos isso no Brasil, na edição lançada pela Devir em 2016 (e também distribuído aos assinantes de Nerd Loot na época), mas o engraçado é que esta versão é diferente. Troquei a ordem de alguns capítulos, mudei uns personagens e inclui um capítulo a mais. Estas histórias são orgânicas para mim, sempre aproveito das reedições para melhorar o conteúdo”, revela.
As histórias já estão sendo comercializadas em chinês (desde 2016, pela Douban Read) e espanhol (desde 2017, pela Sportula) — mas vai ser a primeira vez que saem oficialmente em inglês. “Então posso dizer que, com certeza, o público internacional está gostando da proposta”. O lançamento vai acontecer durante a Convenção Mundial de Fantasia (WFC), que acontece entre 1o e 4 de novembro, em Baltimore, nos EUA. “A primeira edição vai ser vendida fisicamente em lojas no Reino Unido e vai estar disponível mundialmente em formato físico e digital pela Amazon. Também vai estar disponível em muitos dos principais eventos de literatura fantástica do mundo: a Convenção Mundial de Ficção Científica (Worldcon), Readercon e outros”.
Além da HQ e do RPG, claro, Christopher tá aproveitando sua experiência como “homem dos joguinhos” pra fazer um jogo ELETRÔNICO também. O projeto nasceu de uma parceria com Pablo Abraham (criador do card game Zueira Never Ends) e está terminando uma fase de sete meses de pré-produção, com a pretensão de entrar na produção no final de setembro. “Montamos uma equipe excepcional e vamos começar a anunciar os nomes em breve. O game é muito ligado ao RPG de mesa. Ainda não temos imagens para compartilhar, mas não vai demorar muito. A expectativa é de lançar o jogo no final de 2019 ou no primeiro semestre de 2020”.
Mas no que diz respeito ao livro ganhando real projeção internacional, será que isso não abre caminhos para planos ainda mais ambiciosos... tipo um filme? Afinal, “adaptação” é a palavra-chave na indústria cinematográfica tem uns bons anos... “Tem um estúdio estudando a possibilidade de produzir um filme live action”, conta ele, sem querer dar mais detalhes até que a coisa esteja de fato acertada. Mas aí vem a novidade: “também tenho um projeto de desenho animado há anos em parceria com Fabiano Pandolfi da ATOON studio. Há um longo caminho pela frente, mas espero viabilizar este projeto em algum momento”.
E aí, com exclusividade pra nóis, ele libera pela primeira vez o primeiro teste de animação, com música de ninguém menos do que Hique Gomez, o embaixador da Sbørnia do lendário duo Tangos e Tragédias.